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Leia homenagem de Florestan Fernandes ao Partido Comunista do Brasil

22 de julho de 2022

Por ocasião dos 70 anos do PCdoB, em 25 de maro de 1992, o sociólogo Florestan Fernandes discursou durante a sessão solene na Câmara dos Deputados que homenageou os 70 anos do PCdoB.

Por ocasião dos 70 anos do PCdoB, ocorreu uma sessão solene na Câmara dos Deputados que avaliou as etapas históricas e a importância do Partido para a história nacional. O professor Florestan Fernandes, patrono da sociologia brasileira, esteve lá, fez sua homenagem, falecendo três anos depois.

O portal Grabois publica, agora, 30 anos depois, a íntegra do discurso:

Sessão Solene, em 25 de março de 1992 – Câmara dos Deputados

O SR. PRESIDENTE (Waldir Pires) – Com a palavra o nobre Deputado Florestan Fernandes, que falará pelo PT.

O SR. FLORESTAN FERNANDES (PT – SP) – Sr. Presidente, Waldir Pires, que nos honra presidindo esta sessão após a magnífica oração que nos dirigiu e que elevou no espírito dos que estão presentes aquilo que há de transcendente no Partido Comunista do Brasil, um partido que transcende o seu tamanho e que corresponde à sua projeção e ao alcance dos seus ideais. Exmoº Sr. Presidente do Partido Comunista do Brasil, Deputado João Amazonas, homem que honra a história das lutas sociais no Brasil e que preserva o Partido Comunista do Brasil como um partido capaz de manter-se firme em suas posições – nas trincheiras das lutas de classes – e, ao mesmo tempo, desvenda para o futuro que nós ainda temos algo a realizar e que não somos um País infeliz, em declínio para o Quarto Mundo; Exmº Sr. Líder do Partido Comunista do Brasil, Aldo Rebelo, lúcido e corajoso Deputado que representa São Paulo nesta Câmara, sucedendo a Haroldo Lima, figura inestimável em nossa consideração, ambos meus amigos e pessoas que honram seus ideais políticos, ilustríssimo Embaixador Jorge Alberto Bolanos Suarez, representante de Cuba, que aqui corporifica que o socialismo não é uma quimera na América Latina, mas uma realidade, que terá de crescer, apesar de tudo o que se diz e não obstante todos aqueles, da direita, da esquerda ou do centro, que confundem as aparências com seus desejos ou fantasias; meu caros colegas Deputados e Deputadas, minhas senhoras e meus senhores, apenas hoje me foi dado tempo para pensar um pouco sobre aquilo que iria falar aqui. Na verdade, somente ontem à tarde o líder do meu partido, Deputado Eduardo Jorge, comunicou-me que eu deveria fazer a saudação ao Partido Comunista do Brasil, não me dando tempo para fazer um estudo apropriado, a fim de prestar a homenagem que este partido merece. 

Mas o Deputado Haroldo Lima já traçou aqui o perfil do partido, já indicou as suas etapas, desde o seu nascimento até hoje. Portanto, seria duplicar a tarefa reelaborar tudo o que está na nossa memória, nos livros de História, nos acontecimentos que vêm desde a Revolução Russa, principalmente desde a década de 20, em nossa evolução como nação e em nossa tentativa de modificar uma sociedade de origem colonial, em que permanece firme a tendência de pretender ser até hoje colonial. As ideias de modernização, importadas pelo Presidente da República, segundo moldes chamados neoliberais (depois que o liberalismo perdeu qualquer significado histórico ou político), constitui exemplo disso. 

A esta homenagem o PT deve corresponder – como aliás, já correspondeu brilhantemente o Deputado Waldir Pires – com algo que brota do coração. Combatemos nas mesmas trincheiras, queremos as mesmas coisas; apenas divergimos nos métodos para alcançar fins comuns, métodos que a história corrigirá e unificará, para que uma minoria não continue a monopolizar toda a riqueza, a cultura, a educação, todo o poder em nossa sociedade. O Partido Comunista possui uma trajetória na qual aparecem alguns relevos. E um partido que percorreu uma linha ascendente. Enfrentou dissensões – e eu as respeito, porque elas também são produto da história, da vontade política de chegar-se ao socialismo e ao comunismo. No entanto, é preciso que se entenda primeiramente o que significa o Partido Comunista do Brasil no momento em que nasceu, dividindo o espaço político de uma nação, ainda mais atrasada que hoje, com socialistas e anarquistas. 

Os anarquistas foram os primeiros combatentes na luta pela liberdade, nos embates libertários pela fraternidade humana. A eles se juntaram, em seguida, os socialistas. No início do século XX os operários mostraram, pela ação prática, que desejavam transformar o mundo. Os próprios socialistas e anarquistas não poderiam organizar as greves de 1910 e 1916, dadas assuas proporções. Eles foram o fermento político e ideológico e a resposta à violência que vinha brutalmente de cima. Hoje os historiadores se perguntam: por que essa violência, por que as reivindicações foram recebidas à pata de cavalo, com espadas desembainhadas? A resposta é simples. Acostumados a lidar com escravos, os senhores da República achavam que a questão social era “caso de polícia”. Essa concepção infundiu violência extrema’ àquelas greves, porque foram os de cima que provocaram, além da angústia, o ódio que extravasou nas manifestações de massa dos de baixo. 

Esses fatos, extremamente bem documentados, mostram que os anarquistas, os socialistas e os liberais radicais, que aderiram àqueles combatentes pela igualdade, liberdade e justiça, não podiam sozinhos enfrentar as exigências da situação. Naquele mesmo momento brotava na Rússia a revolução socialista, a revolução proletária. Pouco tempo depois, em 1922, nascia o Partido Comunista do Brasil. Portanto, o partido nasceu num clima de grande efervescência. Note-se: o partido não era filho da violência, vinha para converter a violência em força social capaz de transformar o modo e produção, a cultura e a sociedade. Por isso, grandes líderes políticos republicanos, que mais tarde poderiam ser chamados de “progressistas”, saíram às ruas, apoiaram seus companheiros, bateram-se lealmente a seu lado, e deram sentido nacional à sua luta. Esse, o primeiro momento, no qual os operários começam a construir, com as suas mãos, o significado do trabalho como categoria histórica. Os donos do poder, os donos de terra, as “elites dirigentes esclarecidas” não sabiam o que era o trabalho livre como categoria histórica. Estavam acostumados a lidar com o trabalho escravo, e todo agente humano do trabalho era automaticamente ou reduzido ao perfil de escravo ou visto como subalterno que deveria capitular, sem nenhuma discussão, a qualquer decisão arbitrária ou a qualquer castigo corporal emanado dos “mandões”. Portanto, o Partido Comunista, num dado momento, significou a condensação histórica do primeiro florescimento do processo social que transformaria: a Europa no que ela é hoje. É um mito dizer-se que a democracia é filha da burguesia. 

A burguesia foi obrigada a ceder terreno, a fazer concessões pela pressão dos de baixo, pela ofensiva da pequena burguesia. A democracia cresceu não como expressão daqueles que poderiam ver no trabalho apenas uma mercadoria, mas como vitória de uma classe que passou a construir, ainda que no modo de produção capitalista, um ambiente para a existência humana, um ambiente para que todos os trabalhadores desalienassem sua consciência social e fossem capazes de tomar uma atitude crítica e compatível diante de uma economia que não podia .conciliar-se com os ideais democráticos, porque a propriedade privada dos meios de produção exclui, por si própria, a igualdade social, a fraternidade entre os homens e a liberdade para todos. Mais tarde, o partido foi vítima do vazio histórico criado ao longo da década de 20 e que elevou à sua presidência pessoas leais às suas ideias, mas muito dogmáticas para entenderem a complexidade de uma sociedade como a brasileira. No entanto, Astrojildo Pereira – um pensador de primeira linha, esquecido em nossos trabalhos sobre o pensamento brasileiro – perfilhou as melhores reflexões, as melhores contribuições ao entendimento da situação histórica então vivida. 

Mas eis que ocorreu essa radicalização extrema que levou o PC do B a entrar em descompasso histórico com a sociedade brasileira, algo que se corrigia em seguida, poucos anos depois, com a Revolução de 30, com a participação dos comunistas em todos os movimentos sociais que abalaram a sociedade brasileira e com a ascensão de Luiz Carlos Prestes à direção do Partido Comunista do Brasil. E claro que a Revolução de 30 não poderia consumar os seus ideais liberais nem as exigências de transformação social que os operários, os trabalhadores do campo, a pequena burguesia urbana, as classes médias tradicionais levantaram em nosso meio. A Revolução de 30 se esvaiu e, em seu lugar, surgiu uma evolução que levou, em 1934, a uma Constituição importante e, em seguida, no mesmo processo, à ditadura do chamado Estado Novo. 

O Partido Comunista do Brasil revelou então, o seu segundo grande momento histórico, por meio da tentativa de empolgar todas as correntes, todos os setores da sociedade com os ideais que abalavam a Nação. Formou a Aliança Nacional Libertadora. Teve seu líder e todos os seus militantes tratados de uma forma que nos permite compará-los aos Jean Valjean da política latino-americana, levados a prisões, como as das Guianas, sofrendo um tratamento brutal, uma repressão que nada ficou devendo àquela que viria com a ditadura de 1964. É um erro pensar que a repressão não conhece os melhores métodos de destruir os seus inimigos. Ela sempre dispõe das melhores técnicas e procura arrasar o inimigo em sua pessoa, em sua inteligência e em sua capacidade de lutar individuaI e coletivamente. Eu próprio ainda na puberdade, pude ver .as prisões do Cambuci e o que eram aquelas prisões nas quais o Estado Novo guardava em masmorras indignas as melhores inteligências políticas e todos os rebeldes que caíram nas malhas da polícia e da repressão militar. 

Saído da prisão, Luís Carlos Prestes iniciou um processo que eu próprio não aprovei e combati, de compromisso com o ditador. E uma pergunta a que a história deverá responder. Era certo ou errado tentar conceder apoio a um homem que tinha sido o grande algoz e, por meio de seu regime, desencadeado toda aquela brutalidade vivida sob o Estado Novo? Será que ele conduziu a construção de sindicatos atrelados ao Estado, a formação de líderes sindicais pelegos e tantas outras coisas que nós conhecemos e que formara o que poderíamos chamar de o primeiro da paz burguesa construído no Brasil? De lá para cá, esse edifício cresceu incessantemente, alimentado sempre pelo dinheiro do Estado arrancado das contribuições dos trabalhadores, o que é uma contradição. Mas esse edifício social foi montado pelo Estado Novo, e, nas condições imperantes, havia que responder ou à extrema direita ou a uma tentativa de impedir que a extrema direita cortasse o processo democrático emergente e impedisse a convocação de uma assembleia nacional constituinte. 

Portanto, os argumentos estão aí, a reflexão está aberta e temos de refletir sobre o significado dessa decisão política do líder e do partido, que agiram conjuntamente para que o País não bloqueasse as forças sociais que desembocavam na transformação social, procurando impedir o fortalecimento daqueles setores que, sob o Estado Novo ou contra ele, sempre representaram o que há de pior e mais reacionário nas elites da sociedade brasileira. Em seguida, ocorreram as grandes lutas que se inauguraram, ainda sob o Estado Novo, com Volta Redonda e, posteriormente, em torno da Petrobrás e de outras realizações, nas quais os comunistas realizaram as tarefas das formigas, de construção do caminho que deveria pavimentar o aparecimento de empresas de porte, que hoje estão sendo leiloadas, transferidas para o setor privado nacional e estrangeiro. Sob o Governo de João Goulart os comunistas lograram exercer influência dúplice sobre o Governo. De um lado, açulando as transformações sociais, o lado radical das inovações postas em prática pelo Estado; de outro, tentando impedi-lo de levar certas mudanças longe demais. 

Eu tinha um amigo comunista, economista de valor, que me disse: “Florestan, aconselhei Jango a não fazer a reforma agrária, porque, se ele a fizesse, seria derrubado do poder”. Mas, fazendo ou não a reforma agrária, recuando e avançando de forma oscilante, ele não pôde impedir que os setores conservadores, nacionais e estrangeiros, identificassem seu governo com uma “república sindicalista”. Passou a ser o inimigo número um dos grupos dominantes. Talvez, se Miguel Arraes tivesse sido ouvido por Jango, este tivesse obtido resultados que evitassem o desastre. Os apelos do PC do B não foram ouvidos e, infelizmente para nós, João Goulart acabou favorecendo a reação. Primeiro, não impedindo que ela crescesse de forma destrutiva; segundo, recusando terminantemente a ideia de uma guerra civil, porque, disse ele, “eu não quero ser responsável pelo derramamento de sangue no meu próprio País”. Quando um país está numa situação como a do Brasil naquele instante – e isso nos prova a história dos Estados Unidos, na guerra pela independência e na guerra civil posterior – é preciso ter coragem de derramar sangue para transformar a história e criar um novo mundo. Jango renegou esse papel e, por isso, é possível fazer-lhe restrições severas.

Tivemos, depois, o que muitos chamam de uma “noite”. Mas não se trata propriamente de uma “noite” e, sim, de um processo histórico prolongado, que vem até hoje. Começou de uma maneira concessiva e pretensamente “democrática”, em 1964; e terminou de maneira muito drástica, no ciclo militar, passando por uma junta militar que massacrou as forças históricas vivas da Nação. Mas todas as forças criativas do País, dos estudantes, dos jovens aos operários, aos sindicalistas, aos professores, aos intelectuais e a todos aqueles que usavam o seu pensamento com um mínimo de liberdade e de dignidade, se achavam imbuídas de grandiosas esperanças. Nessas condições, o Partido Comunista foi pego de surpresa, porque não estava organizado para enfrentar uma ditadura tão ferrenha. Haviam destruído o que tinha de melhor, que eram suas estruturas clandestinas, de importância ímpar durante os combates contra o Estado Novo. E por aí surgiram os caminhos das piores tensões intestinais, das maiores lutas, que levaram a cisões lamentáveis, que todos conhecemos. Esse é outro momento. E, nesse eclipse, o Partido Comunista saiu-se de maneira heroica, porque aceitou o sacrifício de seus militantes e soube manter a chama de suas promessas, no Araguaia e em outras localidades do País. Suas facções mais firmes aguardavam que a sociedade reagisse às condições de opressão, esbulho e repressão imperantes. Em seguida, a ditadura militar prolongou-se através do Governo Sarney e do Governo Collor. 

Uma interpretação ex post factum assinala que a transição lenta, gradual e segura segue até hoje. Os democratas ainda não conseguiram destruir essa transição, porque é preciso uma luta aguda de ruptura com o passado e de construção de um presente novo. E isso não conseguimos por causa da conciliação conservadora que traiu o movimento das “Diretas Já”, ou da domesticação da Assembleia Nacional Constituinte, durante o processo de elaboração da nossa Carta Magna, avançada em muitos pontos, retrógrada em outros. Surgiu aqui o “Centrão”. A direita, mais forte, acabou empalmando o direito de nos oferecer a sua própria versão de Constituição, como se a Comissão de Sistematização não estivesse encarregada de proceder a essa tarefa. Nesse percurso, o Partido Comunista, como todos os partidos de esquerda dentro desta Casa, lutou tenazmente para que a Constituição fosse a melhor possível. Hoje – para encerrar, porque nosso preclaro Presidente deve estar aflito – vivemos uma crise mundial que ostenta dois aspectos: um, que afeta o socialismo, as nações proletárias, as nações pobres dos Terceiro e Quarto Mundos; outro, que se refere à face capitalista. Dialeticamente, quando há uma crise no mundo, como esta em que vivemos, ela não tem apenas um lado, mas dois. E esses dois lados estão em interação. 

Os jornais, as emissoras de televisão e de rádio descrevem a versão do establishment, da ordem existente. Parece que só “o socialismo morreu”. Muita coisa está morrendo, e o que se poderia dizer do socialismo é que ele está renascendo. E como uma planta que sofreu por causa de uma nevasca e que se recupera para a vida posterior. Nós acompanharemos como ela irá se revitalizar e produzir os frutos que desejamos tão ardentemente. Neste momento, o Partido Comunista do Brasil tem sido a força mais firme na defesa do socialismo revolucionário e do comunismo. Isso precisa ser dito com toda franqueza e lealdade. Somos companheiros de luta, não precisamos ocultar nada uns dos outros. É preciso que se proclame a firmeza desse partido, que procura renovar-se, que busca outras formas de organização e de democracia internas, para responder às exigências da situação histórica do Brasil e do mundo. Ele se lançou corajosamente na missão de construir as premissas para o renascimento do socialismo revolucionário que nos leve, mais adiante, aos ideais do comunismo. Presto minhas homenagens, em nome do PT, ao Partido Comunista do Brasil, que é nosso irmão de lutas, e agradeço ao Sr. Presidente, Deputado Waldir Pires, o tempo extra que me foi concedido. Muito obrigado a todos. (Palmas.)