Descarrilamento do sistema ferroviário brasileiro e seu impacto na produção agrícola
Luciano Rezende: “A iniciativa privada foi e será importante motor da economia, desde que regulada e elaborada estrategicamente pelo Estado”.
O lamento das Bachianas Brasileiras: o último apito do “trenzinho do caipira”
Poucas canções tocam tão fundo na alma do brasileiro como o clássico “Trenzinho do Caipira”, do gênio brasileiro Heitor Villa-Lobos. Parte integrante das Bachianas Brasileiras, essa obra-prima é capaz de unificar os sentimentos de formações culturais diversas de nosso povo, bebendo do rico folclore nacional, embalado aos sons do movimento de um trem de ferro, tirados pelos instrumentos musicais de uma orquestra.
A “viagem” ganhou ainda mais emoção com contribuições, ao longo dos anos, de diversos artistas brasileiros, entre os quais Maria Bethânia, Edu Lobo e Adriana Calcanhoto, além da letra dada pelo poeta Ferreira Gullar, aonde espaço e tempo se fundem ao longo da viagem de um menino:
“Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade noite a girar
Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra
Vai pela serra
Vai pelo ar
Cantando pelas serras do luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar, no ar.”
O som do trem, chegando ou partindo, era como uma melodia para milhares de brasileiros de um Brasil profundo. Simbolizava o contato e a transição entre o urbano e o rural, o campo e a cidade, o tradicional e o moderno. Para inúmeras comunidades e localidades isoladas, o apito do trem era o mesmo que o bater do coração: o significado da vida. O trem mudou o “relógio” e o ritmo das pessoas. “Antes, era o sino da Igreja que anunciava a hora e determinava o ritmo da cidade. Agora, a estação do trem disputa o sino com a Igreja Matriz, o apito do trem determina o ritmo” (IGNARRA, 2018).
O impacto do trem de ferro sobre o imaginário popular foi arrebatador. Finalmente, o gênero humano comprovava a sua superioridade frente à Natureza. Segundo Hobsbawn (2004), “Nenhuma outra inovação da revolução industrial incendiou tanto a imaginação quanto a ferrovia, como testemunha o fato de ter sido o único produto da industrialização do século XIX totalmente absorvido pela imagística da poesia erudita e popular.”
Exemplos dessa poesia inspirada nas ferrovias existem em profusão, como a linda canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, intitulada “Ponta de Areia”, lançada em 1975, e que lamenta o fim da Estrada de Ferro Bahia Minas – que ligava a cidade mineira de Araçuaí até o distrito baiano de Ponta de Areia, percorrendo 582 quilômetros: “Ponta de areia ponto final / Da Bahia-Minas estrada natural / Que ligava Minas ao porto, ao mar / Caminho de ferro mandaram arrancar.”
É certo que muito desse “Brasil profundo” ficou pra trás. Dados do IBGE mostram que, desde o processo de industrialização no Brasil, a população brasileira deixou de ser predominantemente rural para chegar ao atual cenário em que cerca de 84% dos habitantes do Brasil vivem nas cidades. Mas mesmo essa enorme mudança na geografia da população brasileira, ocorrida em um curto intervalo de tempo, é incapaz de minimizar a importância do modal ferroviário no desenvolvimento econômico, social e cultural do país, como eixo integrador do país.
Para além da importância da ferrovia no imaginário de nossa gente, na contribuição da formação de uma identidade própria de milhões de brasileiros que tiveram a oportunidade de conhecer outras estações, o transporte ferroviário foi decisivo para o Brasil apitar o anúncio de sua chegada a um novo patamar de desenvolvimento econômico. Não só o Brasil, mas todas as grandes economias do mundo tiveram nesse modal de transporte a base para todas as suas revoluções técnico-científicas.
Importante destacar que o trem de ferro é um dos símbolos da primeira revolução industrial. É na Inglaterra que essa máquina, movida à vapor, desponta pela primeira vez nas minas de carvão, no começo do século XIX. Como destaca Ignarra (2018) “no início eram apenas carros de madeira, engatados uns aos outros, resistentes o suficiente para transportarem pesados pedaços de minério do fundo da mina para a superfície. A invenção do trilho, ou melhor, o desenvolvimento do sistema roda trilho, tornou o trabalho muito mais fácil e mais rentável”.
Ainda de acordo com esse autor, a ferrovia deixou de ser apenas uma tecnologia para transporte de grandes tonelagens, passou a ser um ‘empreendimento civilizatório’ e um ‘negócio’. A Inglaterra entendeu que, para manter e expandir o seu sistema “mina-ferrovia-usina funcionando de forma lucrativa, não era suficiente apenas fabricar trens para as suas próprias necessidades, era fundamental expandir essa inovação, integrando com o passar dos anos centenas de milhares de ferrovias entre os países, mudando definitivamente a face do planeta (IGNARRA, 2018).
Países de grandes dimensões territoriais, passaram a investir fortemente em ferrovias, justamente por entenderem a importância estratégica de um desenvolvimento menos desigual de suas economias, articulando uma composição mais harmônica dos seus imensos e heterogêneos espaços regionais. A história brasileira, em contrapartida, foi marcada por um marcante desenvolvimento desigual de sua economia, fartamente comentado pelos clássicos da economia nacional, sobretudo por Celso Furtado, Caio Prado Júnior e Ignácio Rangel.
O início da construção e da expansão das ferrovias brasileiras, portanto, não se deu por essa concepção de desenvolvimento estratégico por parte do Estado. Pelo contrário, foi uma exigência imposta sobretudo pelo avanço da economia cafeeira no país. Os produtores de café foram os maiores entusiastas desse investimento, ao lado dos senhores de engenho do nordeste do país com a cultura da cana de açúcar e outros setores econômicos específicos. Em comum, seguiam a direção sertão-porto, visando reduzir o custo no escoamento das produções agrícolas que eram transportadas por tração animal, por vezes em lombo de animais, rompendo por caminhos precários que nas épocas chuvosas ficavam praticamente intransitáveis.
De acordo com Eduardo Romero de Oliveira[1], professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisador do projeto Memória Ferroviária, o café impulsionou a construção das primeiras estradas de ferro no século 19 sendo que a primeira delas, a Estrada de Ferro Mauá, começou a funcionar em 1854 e transportava as sacas de café do Vale do Paraíba ao porto de Magé, na baixada fluminense. Nessa época, o café representava quase 50% das exportações brasileiras.
Ainda segundo Romero, “a malha ferroviária foi aumentando com a expansão da atividade cafeeira e passou a deslocar também passageiros, que até então só conseguiam viajar longas distâncias com transportes movidos por tração animal, como as charretes puxadas por cavalos”.
Com o passar do tempo, essa diversificação no uso das ferrovias, para além das atividades agrário-exportadoras, foi se consolidando. No interior de Alagoas, por exemplo, por ordem de D. Pedro II, no final do século XIX, foi construída a estrada de ferro de Paulo Afonso que, com seus 116 km de extensão, permitiu interligar as partes não navegáveis (devido a ocorrência de cachoeiras) do rio da “integração nacional”, o São Francisco, entre as localidades de Piranhas (AL) e Jatobá (PE). A partir de então, os navios a vapor carregados com passageiros e mercadorias podiam partir da cidade alagoana de Penedo, no litoral, com destino a Piranhas, onde as pessoas e as mercadorias eram reembarcadas, dessa vez, no trem, para descerem mais adiante em uma segunda embarcação, rio acima.
Como ressalta Ignarra (2018), “avançando território adentro, as estradas de ferro foram semeando cidades. Paradas, pontos de abastecimento de lenha ou de água, escritórios comerciais, oficinas de manutenção foram formando em torno de si adensamentos urbanos depois vilas e cidades”.
Mas esse avanço se deu de forma dispersa e isolada, atendendo aos interesses regionais, sem um projeto de integração nacional por parte do Estado. Prova disso foi a grande variedade de bitolas dos trilhos (distância de separação entre eles), dificultando a integração operacional entre as ferrovias.
Nesse sentido, merecesse destaque o interesse regional que englobava os estados de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, centrado na economia cafeeira. Só no estado de São Paulo, eram 18 ferrovias, com diversos ramais capazes de chegar até dentro das fazendas produtoras de café.
Com a queda do preço desta commodity, em 1930, as ferrovias – que eram administradas pela iniciativa privada, sob regime de concessão – entraram em crise. Com o colapso da atividade cafeeira, as ferrovias começaram a transportar menos carga e, consequentemente, a lucratividade dessas empresas diminuiu drasticamente. Esse período de decadência se prolongaria por mais duas décadas até as estradas de ferro no país serem estatizadas. O Estado Nacional foi chamado para ser, novamente, a locomotiva do desenvolvimento também nesse setor.
E a resposta a esse chamado vem de forma decisiva 1957, com a criação de uma das mais importantes estatais brasileiras. Foi no governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek – estereotipado injustamente como aquele que preteriu o transporte ferroviário no Brasil em favor do modelo rodoviário -, que se inaugurou a Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA), uma sociedade de economia mista, vinculada ao Ministério dos Transportes, para administrar as estradas de ferro. É o início de um novo e efêmero período de retomada nos investimentos no transporte ferroviário brasileiro.
RFFSA: de maior empresa pública do país a museu a céu aberto
A Rede Ferroviária Federal já nasceu gigante. Foi formada incorporando dezoito empresas férreas, com o objetivo principal de promover e gerir os interesses da União no setor de transportes ferroviários. De acordo com Paiva & Paiva (2011) a empresa “chegou a ser considerada a maior empresa pública do Brasil, maior inclusive do que a Petrobras, chegando a ter em seus quadros 148 mil funcionários”.
Durante os seus mais de quarenta anos de existência, a RFFSA prestou enormes serviços de transporte ferroviário ao país, “atendendo diretamente a 19 unidades da Federação, em quatro das cinco grandes regiões do País, operando uma malha que, em 1996, compreendia cerca de 22 mil quilômetros de linhas (73% do total nacional)” (BRASIL, 2019).
Com o protagonismo do Estado nacional à frente de uma política de transportes, valorizando o modal ferroviário, toda uma cadeia industrial relacionada a esse setor começou a se desenvolver no país. É uma fase que, como destaca Silveira (2003), para além das substituições de importações de bens de consumo não duráveis e de bens de consumo duráveis, com a RFFSA o Brasil também adotava uma política de substituição de importação de bens de produção.
Ou seja, se construiu e expandiu um parque industrial praticamente completo (exceto a indústria de alta tecnologia), do qual faz parte várias indústrias de equipamentos ferroviários, como as fábricas de vagões Santa Matilda, Soma, Mafersa (vendida ao grupo francês Alstom, em 1991), Cobrama e locomotivas Villares. “A partir de 1960 se instalaram, no Brasil, multinacionais como a General Eletric e a Brown Boveri. A chegada dessas empresas foi resultado dos planos de implantação dos metrôs de São Paulo, dos trens metropolitanos do Rio de Janeiro e de Porto Alegre, na década de 1970” (SILVEIRA, 2003).
Na década de 1970, o transporte de carga da RFFSA cresceu a uma taxa média de 10,5 % ao ano. A rede voltou a crescer entre 1981 a 1983, alcançando nesse último ano, seu recorde histórico de 85,7 milhões de toneladas transportadas (FILHO, 1997).
Merece destaque também, nessa jornada desenvolvimentista, a criação da Ferrovia Paulista S.A, a Fepasa, constituída pelo governo de São Paulo em 1971, através da unificação das principais ferrovias estaduais então em funcionamento: Companhia Paulista de Estradas de Ferro, Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, Estrada de Ferro Sorocabana, Estrada de Ferro Araraquara e Estrada de Ferro São Paulo e Minas. A área de influência de sua malha era de 4300 km de extensão, inserida em uma “estratégica inserção entre o norte e o sul do país, o interior e o mar, mais a atual posição entre a industrializada região Sudeste e os parceiros brasileiros do Mercosul” (MARQUES, 1996).
A importância das ferrovias estatais para o projeto nacional desenvolvimentista pode ser mensurada justamente pela voracidade com que foram combatidas e sabotadas pelos neoliberais brasileiros, sendo um dos primeiros setores a serem incluídas no Programa Nacional de Desestatização, no início da década de 1990.
A onda privatista, além de arrebatadora, usou de várias artifícios para desviar de alguns obstáculos. Um desses estratagemas aconteceu com própria Fepasa, que foi federalizada para sua posterior desestatização. Uma manobra criativa que permitiu com que a empresa fosse privatizada em 1998 e os planos de demissões e enxugamento do setor efetivados pela nova concessionária sem qualquer obstáculo. Em 15 de março de 2001 foi sacramentada a derradeira viagem de trem de passageiros em São Paulo, entre Itirapina e São José do Rio Preto.
Com a opção pelo neoliberalismo, o Estado brasileiro abriu mão de dinamizar sua economia, renunciando seu fundamental protagonismo neste setor estratégico, das indústrias à logística (incluindo malhas ferroviárias importantes), abandonando seu papel de gestor direto de grande parte dos grandes projetos (PERDIGÃO, 2015).
A partir de então, a transferência da RFFSA para o setor privado foi colocada sobre os trilhos e a derradeira viagem se deu pela sua liquidação em 17 de dezembro de 1999. Um dos mais duros golpes sofridos na história da infraestrutura de transportes no Brasil.
Os argumentos em favor da privatização da RFFSA foram os mesmos usados para as demais estatais. A ladainha neoliberal de sempre. Uma das justificativas mais fortes, publicadas até em revistas especializadas, era o de que “com essa medida o governo federal estaria estimulando a iniciativa privada a fazer investimentos num setor que, dada a escassez de recursos públicos, deteriorava-se a passos largos” (SOUSA & PRATES, 1997).
Soma-se a essa surrada desculpa neoliberal em favor dos investimentos privados, a mesma cantilena da otimização da máquina do estado – com o enxugamento do quadro de pessoal considerado superdimensionado -, a modernização do setor, a redução de custos, a maior atratividade aos investidores estrangeiros, entre outros mantras. Milhares de trabalhadores ferroviários perderam seus empregos nesse tsunami privatista.
O que se viu, desde então, foram investimentos direcionados apenas aos interesses privados dessas empresas, sobrando apenas um único trem de passageiros no Brasil que faz viagens de longa distância: o chamado Trem da Vale, que liga as capitais Belo Horizonte e Vitória. Mais da metade da malha ferroviária brasileira, construída com grande esforço por gerações de brasileiros, foi dilapidado devido ao desinteresse das concessionárias em operar em função tanto da baixa demanda em algumas regiões quanto pelo baixo retorno financeiro.
Figura 1: Sede da RFFSA, em Porto Alegre, na década de 1970 — Foto: Reprodução/Grupo Ferroviários da SR-6.
Antes mesmo de sua liquidação, importante parte do patrimônio da RFFSA começou a ser subtraída. “A frágil estrutura de fiscalização dos bens arrendados associada a inércia administrativa e condutas incúrias e omissivas dos gestores frente aos atos ilícitos impetrados contra o patrimônio público, sobretudo em relação aos bens reversíveis, contribuiu para o início do processo de dilapidação do patrimônio público” (PAIVA & PAIVA, 2011). De acordo com o Tribunal de Contas da União (TCU), diligências constataram furto de bens patrimoniais da extinta RFFSA.
Ainda de acordo com esses autores, os ativos operacionais foram arrendados às concessionárias de transporte ferroviário ao passo que os bens não-operacionais, constituído por terrenos, fazendas, galpões, casas, hortos florestais, estações e pátios ferroviários, que formam um conjunto de 52.736 imóveis, têm sido alocados de maneira ineficiente, abandonados, dilapidados e expropriados. “Um exemplo ilustrativo, dentre inúmeros identificados, é a existência num galpão na cidade de Campinas de 48 locomotivas elétricas, adquiridas da França em 1974, logo após o I choque do petróleo, e que ainda estão embaladas em grandes caixotes de madeira, além de duas caixas de pinos banhados a ouro, para o controle dessas locomotivas” (PAIVA & PAIVA, 2011).
Outra promessa usada pelos neoliberais de que a privatização do setor era fundamental para ampliar a malha ferroviária no país se demonstrou uma grande falácia. Atualmente a extensão da rede ferroviária está em aproximadamente 30 mil quilômetros, menor do que o registrado na época da criação da RFFSA. As concessões das redes ferroviárias para a iniciativa privada não resultaram na expansão da cobertura.
Há diversas outras críticas com relação ao sistema ferroviário privatizado que merecem consideração. Entre eles está o fato de o sistema atual apoiar-se “no formato de corredores de exportação de commodities minerais e agrícolas (81% e 14% da produção, respectivamente), com baixa conectividade e integração entre as malhas e baixa inserção no transporte de carga geral (4%)” (ASSIS et al., 2017).
De acordo com a Associação Nacional dos Transportes Ferroviários (ANTF), há subutilização em diversos trechos (24% da malha ou 7.000 km) em razão, entre outros fatores, da escassez de oferta/demanda (ANTF, 2016). Ou seja, é um sistema voltado essencialmente para se atender aos interesses de uma parte da economia privada brasileira em detrimento de um projeto nacional de desenvolvimento voltado às necessidades do conjunto da nação.
Um país fora dos trilhos
Justamente quando as maiores potências do mundo se mobilizam em torno de uma agenda ambiental com metas mais robustas e audaciosas, envolvendo as principais questões climáticas – sobretudo no sentido de mitigar as emissões dos gases que contribuem para o efeito estufa -, um dos sistemas de transporte que gera menor impacto ambiental está fora das prioridades do Estado Nacional brasileiro, sob a égide do neoliberalismo.
As ferrovias são, de longe, a alternativa mais sustentável para o escoamento de cargas pelo interior do país, emitindo 85% menos CO2 comparado ao transporte rodoviário. Além de se destacar como grande emissor de poluentes e responsável por uma série de outros impactos ambientais, o transporte rodoviário deixa a nação vulnerável às chantagens de grandes empresários do setor que, por motivos diversos, promovem bloqueios de rodovias ou paralisações de caminhões ocorrendo desabastecimento de alimentos e elevação de preços, tal como assistimos nas manifestações golpistas contra os resultados das eleições presidenciais de 2022.
Mesmo sendo reconhecido como um meio de transporte mais “ecológico” e com grande capacidade de escoamento de cargas pelo interior do país, o modal ferroviário vive uma situação crítica de abandono. Estima-se que um terço de toda a malha existente no Brasil está ociosa.
A justificativa neoliberal, como já mencionado, é a mesma de sempre: intervenção mínima do Estado e o comprometimento com um teto de gastos que não prevê investimentos em áreas estratégicas cujo o retorno é estimado em longo prazo. Em oposição a esse pensamento, a China, por exemplo, expande suas ferrovias em ritmo acelerado apesar de uma dívida da estatal “China State Railway Group” que se aproxima de 900 bilhões de dólares (cerca de 5% do Produto Interno Bruto do país do ano de 2021).
Países que optaram por um projeto soberano e nacional de desenvolvimento não se deixam contaminar pelo discurso econômico contracionista, e muito menos usam de uma pretensa preocupação com a política fiscal para frear esses importantes investimentos. A estatal chinesa citada, embora com esse nível de endividamento, segundo reportagem do jornal Valor Econômico[1], “está dobrando sua expansão do que já é a maior rede ferroviária de alta velocidade do mundo, à medida que o governo intensifica os esforços para recolocar a economia chinesa no rumo do crescimento estável”. Ou seja, não há e nem pode haver contradição entre responsabilidade fiscal e desenvolvimento das forças produtivas mais dinâmicas de um país.
Nesta mesma reportagem, o professor da Universidade Jiaotong de Pequim e especialista em transporte Zhao Jian, afirma que “a prioridade do governo é o crescimento econômico e não se importa com o pagamento da dívida, mas cada quilômetro de ferrovia custa de 120 milhões a 130 milhões de yuans para ser construído”. A China Railway planeja atingir 50 mil km em 2025 e 70 mil km em 2035 – um salto de aproximadamente 70% em relação a 2021. Isso significa que uma expansão de 30 mil quilômetros exigirá cerca de 3,6 trilhões de yuans (US$ 477 bilhões).
Pode-se argumentar, em favor dos privatistas, que mesmo sem o protagonismo do Estado Nacional brasileiro no setor ferroviário, o “Transporte de produtos agrícolas por ferrovias bate recorde dos últimos doze anos”, como atesta reportagem da CNN, com esse mesmo título[2]. Na matéria, baseando-se em dados da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF), é afirmado que “o transporte dos chamados granéis agrícolas por trens registrou um crescimento de 127% desde 2010, considerando dados de janeiro a abril de cada ano”. Ainda segundo a reportagem, “no primeiro quadrimestre de 2022 foram 25 bilhões de toneladas transportadas entre soja, farelo de soja, milho, trigo, açúcar e outros granéis agrícolas, batendo o recorde dos últimos doze anos.
O diretor executivo da ANTF, Fernando Paes, cita na matéria que, entre os principais fatores para esse crescimento, estão os crescentes investimentos por parte das concessionárias. E prossegue afirmando que em 2022 as ferrovias foram responsáveis por mais ou menos 40% das commodities agrícolas exportadas pelo país, o que é uma grande vantagem para o agronegócio, já que as principais produções estão na região centro-oeste, longe dos portos.
Certamente essa expansão é louvável. Mas quando, nessa mesma reportagem, se fala sobre os estudos feitos pela ANTF sobre redução de custos do transporte de trem comparando-se com o frete rodoviário, o resultado é muito modesto: em média 17,5% a menos. Ou seja, muito fora da média mundial. Além do mais, a infraestrutura de transporte ferroviário continua sendo abaixo do crescimento da produção do setor do agronegócio.
Uma explicação para isso é justamente o fato de a malha ferroviária brasileira além de estar privatizada, se encontrar nas mãos de poucas concessionárias que promovem uma gigantesca concentração no setor. Para além dos granéis minerais, as concessionárias das empresas ferroviárias brasileiras também se dedicam aos transporte de cargas do agronegócio brasileiro, concentrando-se em basicamente cinco produtos: soja (e seus derivados), milho, açúcar, celulose e fertilizantes.
As empresas concessionárias que fazem esse transporte de produtos agrícolas se restringem basicamente a quatro controladoras. São elas: Vale S.A – (Estrada de Ferro Carajás (EFC) e Estrada de Ferro Vitória Minas (EFVM)); MRS Logística S.A.(MRS); VLI S.A (Ferrovia Centro Atlântica (FCA) e Ferrovia Norte-Sul (FNS)); Rumo S.A. (Rumo Malha Norte (RMN), Rumo Malha Sul (RMS)).
Enquanto a China é capaz de construir uma ferrovia, como a que liga Hotan a Ruoqiang, formando o primeiro circuito fechado ao redor do deserto de Taklimakan, de 2.712 quilômetros (o segundo maior deserto móvel do mundo, dos quais 534 quilômetros ficam na área de tempestade de areia – representando 65% da extensão total da linha), em que garante não apenas o transporte de commodities, mas também o deslocamento de passageiros e outros produtos agrícolas de pequenos agricultores (nozes, tâmaras, etc) para fora de Xinjiang, no Brasil, o transporte ferroviário está quase todo destinado ao transporte de commodities, concentrado em poucas empresas privadas através de suas concessionárias, tal como podemos observar na figura abaixo.
Figura 2: Distribuição das cargas do agronegócio por ferrovias. Fonte: Péra & Caixeta-Filho (2021).
Segundo Nunes (2008), “até hoje as ferrovias da América do Sul continuam atendendo apenas os interesses de grupos exportadores de minérios e bens agrícolas com uma variedade muito pequena de carga”. Estas ferrovias são pouco integradas e muitas linhas são subutilizadas, não apresentando grande viabilidade.
Ao analisar o setor do agronegócio, Péra & Caixeta-Filho (2021) relatam que “apenas quatro empresas ferroviárias operam 85% das cargas agrícolas”. No levantamento feito, esses autores traçaram uma linha do tempo para avaliar as concessionárias de ferrovia nas décadas entre 2010 e 2020, considerando não só os granéis sólidos (soja, farelo de soja, milho, açúcar etc.), mas também insumos para diferentes indústrias, biocombustíveis, fertilizantes, defensivos agrícolas, máquinas agrícolas, entre outros itens. Verificou-se também que, embora as ferrovias desempenhem um papel fundamental na logística do agronegócio, sua participação no transporte de produtos agrícolas em geral até os portos caiu levemente nos últimos anos. Em 2010, equivalia a 46,8% do total transportado no país. Em 2020, ficou em 42% (PÉRA & CAIXETA-FILHO, 2021).
Cenário completamente diferente é observado na China, onde há mais de “18.000 prestadores de serviços logísticos, regularmente registrados, e nenhuma empresa controla mais de 2% do mercado ou presta serviços de transporte em todo o território do país” (FICI, 2017). As empresas estrangeiras do setor de logística estão ganhando mercado, mas também surgem fortes empresas chinesas locais, que são capazes de competir com as multinacionais.
Ainda há tempo de o país seguir por outros trilhos, rumo a uma estação mais segura. A iniciativa privada foi e será importante motor da economia, desde que regulada e elaborada estrategicamente pelo Estado de como será sua intensidade e o seu papel nessa parceria desenvolvimentista. Assim, demonstra os fatos. Assim nos ensina a história.
A locomotiva do desenvolvimento, aquela que é capaz de parar em todas as estações, embarcando todos os passageiros e os mais diversas cargas e os mais diferentes produtos, só pode ser a máquina do Estado Nacional brasileiro.
Desenferrujar essa máquina é o grande desafio brasileiro. Só assim poderemos voltar a ouvir o apito do trem a soar para todos, tanto para grandes como para pequenos produtores agrícolas. Tanto para as commodities agrícolas que abastecem o mundo como também para qualquer outra espécie vegetal cultivada que alimenta a nação brasileira.
Referências consultadas:
ANTF – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS TRANSPORTES FERROVIÁRIOS. Renovação da frota de vagões e locomotivas da RFFSA. 2016.
ANTT – AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES. Evolução do transporte ferroviário de cargas. Disponível em: Acesso em: 17 nov. 2022.
BRASIL – Ministério da Infraestrutura. Histórico da antiga RFFSA. Brasília, 2019. Disponível em https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/acesso-a-informacao/conteudo-rffsa/historico-da-antiga-rffsa. Acessado em 17 nov. 2022.
FICI, R. P. O sistema ferroviário mundial: o caso brasileiro. 2017. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
HOBSBAWM, E. J. A Era das Revoluções (1789-1848). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 18ª Edição, 2004, p. 72.
IGNARRA, J. C. Como a privatização corrompe a memória da Rede Ferroviária Federal. Acessado em: 13 de nov. 2022. Disponível em: https://biblioo.info/memoria-da-rede-ferroviaria-federal/.
MARQUES, S. DE A. Privatização do sistema ferroviário federal. Texto para discussão nº. 434. IPEA. Brasília: 1996.
NUNES, I. Integração ferroviária Sul-Americana: porque não anda esse trem? Tese (Doutorado em Integração da América Latina) – Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina – Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2008.
PAIVA, S. C. F; PAIVA, C. C. O Legado da RFFSA: Quo Vadis. Anais do IX Congresso Brasileiro de História Econômica e 10 ª Conferência Internacional de História de Empresas, 2011.
PÉRA, T. G.; ROCHA, F. V.; BASTIANI, F. P.; SANTOS, R. M.; COSTA, E. V.; JOÃO, A. M.; CAIXETA-FILHO, J. V. Análise do Excesso de Peso Entre Eixos no Transporte Rodoviário de Cargas. Série Logística do Agronegócio – Oportunidades e Desafios, V.5, 2021, 39 p., Grupo ESALQ-LOG/USP, Piracicaba, Brasil.
PÉRA, T. G.; CAIXETA-FILHO, J. V. O perfil das ferrovias do agronegócio brasileiro. Série Logística do Agronegócio – Oportunidades e Desafios, V.6, 2021, 82 p., Grupo ESALQ-LOG/USP, Piracicaba, Brasil.
PERDIGÃO, I. A. do S. Os investimentos financeiros na região da Baía de Sepetiba e as articulações com o desenvolvimento territorial: uma breve nota. Belo Horizonte: XVI ENANPUR, 2015.
SILVEIRA, M. R. A importância geoeconômica das estradas de ferro no Brasil. 2003. 453 f. Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia, 2003.
SOUZA, R. A.; PRATES, H. F. O processo de desestatização da RFFSA: principais aspectos e primeiros resultados. Revista do BNDES. Rio de Janeiro – RJ. V. 4, N. 8, P. 119–142. Dez. 1997.
Notas
* Luciano Rezende é engenheiro agrônomo (UFV), Bacharel em administração pública (UFF) e licenciado em geografia (Uerj). Professor Doutor do Instituto Federal de Brasília.
[1] Ver mais em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59242402. Acessado em 21 de nov. de 2022.
2 Ver mais em: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2022/07/06/china-expande-ferrovias-e-dvida-da-estatal-china-railway-se-aproxima-de-us-900-bilhes.ghtml.
[3] Ver mais em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/transporte-de-produtos-agricolas-por-ferrovias-bate-recorde-dos-ultimos-doze-anos/#:~:text=Transporte%20de%20produtos%20agr%C3%ADcolas%20por%20ferrovias%20bate%20recorde%20dos%20%C3%BAltimos%20doze%20anos,-Investimento%20de%20concession%C3%A1rias&text=O%20frete%20de%20produtos%20agr%C3%ADcolas,recorde%20dos%20%C3%BAltimos%20doze%20anos.