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Reflexões sobre o indigenismo

10 de março de 2023

O indigenista Eduardo Almeida coloca o indigenismo em debate de modo público, num momento marcante para os povos indígenas no Brasil e no mundo.

O indigenista Eduardo Almeida coloca o indigenismo em debate de modo público, num momento marcante para os povos indígenas no Brasil e no mundo.

REFLEXÕES SOBRE O INDIGENISMO[1]

Esse texto traduz apenas uma tentativa de reflexões pauteiras ligeiras, baseadas em vivências, observações, conversas e alguma leitura, que possam atrair críticas, reparos e provocar estudiosos e trabalhadores indigenistas a exporem suas impressões.  Trata-se, portanto, de uma proposta de colocar o indigenismo em debate de modo público, num momento marcante para os povos indígenas no Brasil e no mundo.

Para que indigenismo?

Todos nós temos ascendência indígena.  Sim, 100% da população atual da Terra, distribuída por variados países, descende de povos “originários”.  Daqueles coletivos humanos que de algum modo lograram deixar descendência, escapando de genocídio cabal.  Antes que surgisse entre as comunidades humanas algum tipo de organização estatal, todas mantinham sistemas de vida e organização típicas de caçadores-coletores, ou mesmo de agricultores e criadores insipientes; provavelmente de modo não muito diverso dos povos indígenas, “tribais”, autóctones ou aborígenes que conhecemos nos tempos atuais ou recentes pelo planeta afora, considerados os mais distintos ambientes.

A condição indígena ou autóctone certamente não se define apenas por ausência de estado ou de vida sedentária.  Outros fatores, inclusive relativos a aspectos políticos de dominância, podem tornar povos sedentários e que tem ou tiveram organização de tipo estatal própria como “indígenas”, às vezes “minorias” nacionais, étnicas ou raciais.[2]

Assim, num contexto planetário de oito a dez mil anos atrás, ainda que provavelmente houvesse povos em expansão e povos em retração e algum tipo de dominância/submissão sociopolítica de etnias sobre/ante outras, não haveria, por hipótese, necessidade de indigenismo “político”, tal qual concebemos hoje.  Todos os agrupamentos humanos eram “indígenas”.  Conviviam, se aliavam, disputavam territórios, competiam por recursos e tal.  Se a 8 ou 10 mil anos atrás, em escala planetária, os homo sapiens eram 100% indígenas, e o surgimento de nações-estado se deu de modo gradual, bastante lento, e não linear, ao longo do tempo e espaço, há 150 anos (ou bem menos!), em certos bolsões regionais de alguns continentes também predominavam povos indígenas, sem, até então, presença permanente ou constante de Estados ou Sociedades Nacionais que disputassem ostensivamente tais territórios, ainda que os reclamassem como parte do território nacional. 

Tentando extrapolar o conceito clássico contemporâneo que se aplica a indigenismo (político)[3], alguma prática de condução e intermediação, pactuante ou impositiva, conveniente, entre os primeiros estados nacionais e impérios, de um lado, e, de outro, os povos indígenas vizinhos ou invadidos, englobados unilateralmente, “conquistados”, submetidos, ou ainda objeto de projetos de conquista, começou a ser adotada desde tempos remotos.  Isso nos seduz a sugerir uma ideia de origem ancestral próxima entre “indigenismo” e “diplomacia”.  Relações exteriores, coloniais e interiores, atreladas a alguma perspectiva geopolítica, pela vinculação de tais posturas com as buscas e disputas das nações-povos por recursos naturais, espaços vitais, escravos, estratégias de expansão ou defesa, ganhos comerciais, tributos, etc.  Os estados invasores, imperiais ou coloniais, muitas vezes foram substituídos por outros, rivais, ou por novos estados nacionais que se tornavam independentes, no mais das vezes continuadores, herdeiros, das práticas colonialistas de esbulho, agressão, genocídio ou submissão opressiva sobre os povos indígenas abarcados em seus pretensos territórios nacionais.

Então, como definir indigenismo?

Em linhas gerais, poderíamos definir indigenismo como uma atitude de condução do trato conveniente entre estados/sociedades nacionais e povos indígenas, sob a iniciativa e ponto de vista dos primeiros.  Quando se apresentava conveniente a condução poderia ser, pretensamente ao menos, pacífica, ou, no mais das vezes, o recurso usado era o da guerra, do extermínio, da expulsão ou submissão pela força.  Ou uma mescla dessas duas estratégias. Na prática, em estados e sociedades de tradição imperial-colonial, essa condução política serve, em última análise, como instrumento de dominação, com uso muito frequente de estratégias de assimilação e/ou integração, dos povos minoritários.  Assim, o indigenismo pressupõe, a nosso ver, uma situação de assimetria de poder entre agrupamentos humanos etnicamente diversos, um dominante, geralmente estatal, outros dominados.  Por outro lado, registremos que a as expressões indigenismo e indigenistassão compreendidas no senso comum, pelo menos na América Latina, como relacionadas a atitudes pró povos indígenas.  Na verdade, bem sabemos, muito indigenismo e tantos indigenistas, políticas ou pessoas, nem sempre foram ou são efetivos, coerentes ou mesmo honestos na pretensão da solidariedade, apoio, promoção ou proteção dos povos indígenas.

Se há indigenismo, há também sua correspondência simétrica de iniciativa e ponto de vista de algum povo indígena, tribal ou autóctone, em geral minoritário, com território ou áreas de trânsito e sobrevivência abarcados por nações-estado prepotentes.  As posturas políticas desses povos serão invariavelmente de resistência.  De confronto e luta, mas também, em dadas circunstâncias, de busca de acordos e pactuações de convivência pacífica[4].  Não tenho conhecimento de um termo para a atitude de povos indígenas de condução pacífica, ou pacificadora, “amansadora”, de suas relações com estados/sociedades nacionais Tais atitudes são reais, bem documentadas pela antropologia.  Poderiam talvez ser chamadas de “estadismo”.

Impérios, colonialismo versus povos indígenas

Ao longo do tempo e do espaço, história e geografia, ao sabor de circunstâncias, conveniências, oportunidades, contatos, correlações demográficas e de força, trocas e confrontos políticos e culturais, a atitude indigenista variou e se transformou.  A expansão mercantilista ocidental, o colonialismo como fenômeno global, desembocando na revolução industrial e ascensão do capitalismo até sua fase imperialista globalizada acentuaram enormemente a escala das agressões, esbulhos, extermínios, submissões e opressões de povos indígenas, facilitados pela continuada sofisticação da letalidade dos recursos bélicos e repressivos das pretensas ou reais potências imperiais, seus Estados, corporações econômicas e sociedades.  Some-se a isto as desvantagens[5] dos povos indígenas geograficamente isolados por longos tempos, no que tange à experiencia com imunidades a epidemias de alta letalidade, no confronto com sociedades densas, sedentárias, agromercantis e (depois) industriais, originadas sobretudo na contígua Eurásia.

No plano das ideias, as nações-estado imperiais, vivendo suas opulências, culturas grafas, trocas e intensas contradições, experimentaram, a partir da Era Moderna, construir, acumular e sofisticar conceitos filosóficos, políticos, culturais, religiosos, jurídicos e ideológicos de justiça, paz, democracia, tolerância, etc.  Postulados novos ou ressignificados que abriam conflito, de um modo ou de outro, com os processos opressivos costumeiros que prevaleciam no trato com povos autóctones inseridos em seus domínios imperiais, influindo assim no que poderíamos identificar como indigenismo político e social moderno e, mais tarde, contemporâneo.  Na América Latina independente dos séculos XIX e XX esse processo ideológico ganha um componente importante a partir das construções identitárias e culturais nacionais, onde seus povos originários, indígenas, adquirem relevante papel simbólico, genético e sociocultural.  Assim, grosso modo, chegamos ao indigenismo republicano na América Latina do século XX e suas inescapáveis contradições com o sistema político hegemonizado por classes dominantes de mentalidade excludente e racista, herdeira renitente das posturas eurocêntricas, colonialistas e escravocratas.

Indigenismo positivista no Brasil

Inserido nesse contexto, o indigenismo positivista do militar Cândido Mariano Rondon representou, no Brasil do começo do século XX, um importante e sensível instrumento e chamamento de solidariedade e amparo à resistência dos povos indígenas.  Um renovado ensaio de contraponto ideológico e de ética humanitária às posturas tradicionais oportunistas, muito difundidas entre classes dominantes e outros setores da sociedade, de agressão, guerra, escravização, massacres, expulsão e conquista de povos indígenas, esbulho de seus territórios e recursos naturais.  Ensaios que efetivaram práticas construtivas que geraram importantes acúmulos.

Não surpreende, porém, que, apesar de seus expressivos impactos positivos, o indigenismo rondoniano falhasse em estancar a lógica colonial etnocêntrica do esbulho e genocídio.  Como política de estado, sequer conseguiu prevalecer transversalmente na ação do Poder Público; ao contrário. Ou mostrar capacidade de atender à imensa demanda de situações a resolver.  Povos indígenas de contato mais antigo, com domínio da língua portuguesa e que adotavam hábitos da população não-indígena regional eram frequentemente menosprezados pelo Serviço de Proteção aos Índios.  Se havia a novidade de um indigenismo parcialmente protetor de forte discurso ético (“morrer se preciso for, matar nunca”), o país e o mundo experimentavam também uma progressão crescente da economia e suas demandas por recursos naturais e mercados.  Resultado do sistema capitalista insaciável, promotor de conflitos e desigualdades.  Além disso, o indigenismo rondoniano, carregava contradições que comprometiam sua coerência enquanto projeto humanista pró-indígena.  Um de seus pressupostos básicos tinha natureza preconceituosa e etnocêntrica, na medida que dividia os brasileiros em “civilizados” e “silvícolas” – este último termo uma espécie de versão abrandada e romantizada do conceito de bárbaros.  Embutia mitos e uma incompreensão, hora ingênua, hora presunçosa, prepotente, da igualdade biológica essencial absoluta entre todos os que compõem nossa espécie, independente de raça, etnia, crenças ou tradição cultural.  Presumia superioridade do que entendiam, ou ainda entendem, por civilização, vista como destino inexorável e salvação da humanidade.  Com isso, adotava o integracionismo, a negação de identidade de um grande de número de povos resistentes, o assimilacionismo, a tutela e, consequentemente, a emancipação da mesma, o que significava, nas definições oficiais, legais e ideológicas, o fim da condição indígena.  O próprio SPI – Serviço de Proteção aos Índios (1910), em sua origem, destinava-se também à “localização de trabalhadores nacionais” (SPILTN). O termo indígena era descartado em benefício do conceito de índio, uma evidente racialização reducionista.  Em suma, o indigenismo rondoniano, conquanto trouxesse contribuições relevantes à causa da Resistência Indígena e satisfizesse amplos segmentos pró-indígenas na sociedade, não fugia de postulados centrais do universo ideológico da sociedade e estado oligárquico-burgueses que o admitiam marginalmente.  Um traço marcante constante na história do SPI foi a escassez crônica de verbas e precariedade de formação da maioria de seus servidores. O sentido salvacionista, a abordagem “heroica”, ou “romântica”, a mentalidade paternalista, individualista e de possessividade tutelista, as práticas de colonialismo interno, se faziam presentes e sobreviveram até mesmo nas versões posteriores, mais evoluídas, modernizadas, da prática indigenista rondoniana.

O indigenismo inspirado no Marechal Rondon, em seu estado “puro”, genuíno, era denso em boas intenções e produziu frutos generosos, sobretudo sob o protagonismo de servidores públicos, alinhados aos princípios republicanos, positivistas e cristãos de honestidade, retidão, devoção missionária e idoneidade.  Muitos desses indigenistas eram manifestamente nacionalistas ou democratas e simpáticos a ideias socialistas-comunistas.  Alguns também integralistas. Os primeiros estados socialistas (1917, 1949) inauguraram posturas democratizantes inéditas no reconhecimento de direitos e respeito a povos indígenas e minorias étnicas em geral.  Grandes nomes se notabilizaram na prática indigenista do SPI, dentre eles, Francisco Meirelles, “sertanista”, confesso simpatizante comunista.   Francisco Meirelles, ao lado de sua destacada entrega à causa indígena, defendia ideias integracionistas, talvez por uma leitura sectária da concepção evolucionista em voga na época, adotada por correntes marxistas, que já se chocava, desde os anos 40 pelo menos, com novos conceitos científicos da etnologia.  Ao mesmo tempo, influências científicas surgiam no âmbito do Conselho Nacional de Proteção do Índio – CNPI[6], criado em 1939, que atuou em conjunto com o SPI, e novas vertentes de práticas indigenistas, também de grande valor humanista, através da Fundação Brasil Central, criada em 1943, onde despontaram os irmãos Orlando e Cláudio Villas-Boas, considerados também “sertanistas”.  Estes abdicavam do viés integracionista, mas se mantiveram defensores da tutela.   A tradição “sertanista” inaugurada por Rondon e que se estende até os dias atuais, voltada para o trato com os povos indígenas isolados, reflete, de algum modo um traço de herança colonial que remete a “entradas e bandeiras”, que frequentemente preavam indígenas para escravização pelos sertões.

Novas vertentes do indigenismo versus Ditadura

As práticas e as contribuições de cientistas sociais[7] propiciaram a que indigenistas e indigenismo fossem se descolando dos vícios tutelistas, integracionistas e “reservistas”, num processo de franco ajustamento de posturas que iriam redundar, gradativamente, nas décadas seguintes, em vertentes distintas mas confluentes em certas concepções de indigenismo bastante modificadas, de maior efetividade e coerência.

No entanto, quando da crise administrativa do SPI, já sob a Ditadura Militar, a criação da Funai – então Fundação Nacional do Índio, em 1967 – e a promulgação do Estatuto do Índio (Lei 6001), em 1973 – ainda se deram nos marcos da tutela, do integracionismo e na prática do “reservismo”.  A Funai, um órgão federal instável e oscilante, operando quase sempre com verbas e servidores insuficientes, pouquíssimos quadros qualificados, nesses aspectos uma continuidade autêntica do SPI, amparado na heterogênea Lei 6001, teve momentos de florescimento, mas também de retrocesso e autoritarismo.  Apresentou avanços, ora substanciais ora relativos, sobretudo nos campos dos direitos territoriais (demarcação de terras indígenas), na expansão de serviços de proteção legal, e na assistência de saúde.  Na educação os avanços foram mais lentos e difíceis[8].  Uma influência significativa do indigenismo político dos EUA, potência capitalista à qual o Brasil da Ditadura se alinhava, foi a de “reservar terras” (deslocamento, apartheid, confinamento) ao invés de identificar e demarcar os territórios de ocupação tradicional de um povo.  Uma prática perversa, porém, muitas vezes adotada pragmaticamente como única alternativa de momento “face à conjuntura adversa”.  Correspondia ao interesse das classes dominantes em desocupar terras indígenas (limpeza étnica, esbulho territorial) em seu proveito próprio, econômico e/ou político.  Essa visão vem do SPI e sobreviveu, como terminologia e conceito, às fases iniciais da Funai e se difundiu amplamente na sociedade brasileira com ajuda da forte expansão cultural-propagandística americana do pós-guerra no país. Vide, como exemplo, a “reserva” de Dourados (MS), alguns “toldos” do Sul, o caso dos Kariri-Sapuyá na Bahia, entre outros tantos casos.  Ainda assim, difundiram-se a partir dos anos de Ditadura Militar – e até hoje muito bradadas – as críticas reacionárias aos avanços no Direito e nas políticas e práticas indigenistas, sobretudo no quesito do reconhecimento dos territórios indígenas. As classes dominantes trataram de difundir motes do tipo “o índio é obstáculo ao desenvolvimento” e [as terras demarcadas significam] “muita terra para pouco índio”.  A Ditadura Militar brasileira se propôs a “tirar os índios do caminho” de seus projetos de “integração nacional’, ocupação desornada da Amazônia, atração de investimentos estrangeiros, etc.  O autoritarismo arbitrário e bitolado agregou ainda na política e prática indigenista do Estado as obsessões com “segurança nacional”, “perigo comunista” e outros fanatismos e fantasias subalternos a serviço do capital imperial internacional.  A influência estadunidense, de certa forma, contribuiu, em combinação com o autoritarismo do regime militar, para uma alienação e despolitização da postura indigenista no Brasil.

Resistência Indígena (+ indigenismo) versus capitalismo

A ideologia do primado da “civilização” – que no fundo se traduz, desde a Antiguidade, na primazia dos sistemas de apropriação-exclusão-opressão-genocídio-etnocídio – atravessa os tempos e adentra o século XXI como consorte do capitalismo e sua lógica do lucro.  As Resistências Indígena e Indigenista, o indigenismo calcado em princípios democráticos e de direitos humanos, e a própria ideia de democracia plural efetiva representam pedras no sapato do sistema baseado em lucro e mercado.  O indigenismo vive ao sabor das oscilações do poder oligárquico-burguês entre avanços na maré da precária democracia liberal e os retrocessos de autoritarismos geralmente subservientes aos interesses oligárquicos e capitalistas imperiais.

Não são pouca coisa, porém, os avanços políticos logrados pela Resistencia Indígena nas últimas décadas de crescente articulação nacional, continental e mundial.  Um processo que se articula com outros em escala global: emergência floral dos movimentos de afirmação étnica; combate ao racismo, a etnocentrismos e a entulhos colonialistas; de desenvolvimento e engajamento das ciências humanas; de ascenção de movimentos pró direitos humanos, surgimento de ONGs de solidariedade internacionais; inserção da temática indígena entre as pautas do Sistema da Organização das Nações Unidas – ONU, etc.  Na América Latina, Brasil incluído, ao longo dos anos 70, observa-se o avanço na postura das pastorais missionárias cristãs, sobretudo na Igreja Católica (CIMI), e o surgimento das ONGs indigenistas.  Junto com a ascensão do Movimento Indígena, são talvez um dos mais expressivos sintomas da decadência da velha e contraditória democracia burguesa euroestadunidense. Imprimem marcas, junto a outros fenômenos, no advento de uma nova ideia de democracia, de inspiração na pluralidade, na diversidade, na sustentabilidade, na superação do patriarcalismo, na prevalência dos interesses coletivos sobre os individuais – ou seja, com um pé em fundamentos do socialismo.  As lutas em torno das emergências ambientais planetárias e as mudanças geopolíticas emparedam o imperial capitalismo e confluem com a luta maior dos povos indígenas em escala mundial. 

A repercussão desses fenômenos sobre as expressões de indigenismo no Brasil nos anos 80 e 90 é, naturalmente, considerável.  No entanto, as bases ideológicas, como sabemos, são persistentes.  De qualquer modo, o indigenismo, agora mais diverso e cada vez mais supervisionado pelo Movimento Indígena, avança na vivência de suas próprias contradições e de uma percepção maior de como se dá sua inserção na ordem econômica, social e política nacional, continental e mundial.  O advento da redemocratização no Brasil (1985) e, em sequência, a Assembleia Nacional Constituinte (1987 a 88, culminando com a atual Constituição Federal), e a adoção pela Organização Internacional do Trabalho – OIT de nova Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais, a de nº 169, em 1989, expressam a maturação de um processo rico de contestações e debates das velhas políticas de forte cunho colonialista.  Não por acaso ou coincidência, em junho de 1987, por iniciativa coletiva de indigenistas engajados no trabalho com povos indígenas isolados e sob a coordenação de Sidney Possuelo, acontece, em Brasília, o I Encontro de Sertanistas que resolve propor à FUNAI a política do “não-contato”[9], uma mudança substancial nas ações do órgão, após a intensificação do alargamento das fronteiras econômicas do país a partir dos anos 60 e uma sucessão de episódios traumáticos desastrosos de “pacificação”.

Apesar de suas vulnerabilidades políticas, tanto o Movimento Indígena quanto, subalternamente, o indigenismo, adentram o século XXI com percepções mais aguçadas em relação a suas contradições estruturais com o sistema capitalista e a velha ordem oligárquica de herança colonial.  Portanto, mais atentos a seu vínculo essencial com as lutas gerais por democracia social e plural.  No Brasil o processo de construção democrática, embora tenha alcançado patamares importantes, segue frágil e instável.  Logicamente isso se deve ao modo como o país se insere até aqui na ordem mundial vigente.  Analisando apenas dos anos 60 para os dias atuais, o indigenismo “oficial” experimentou avanços, sim, em certas fases, mesmo com um marco legal atrasado, integracionista, durante os anos de Ditadura, mas isso não impediu que ocorressem crimes brutais contra os povos indígenas.  Na fase da chamada Nova República e após a CF88, também períodos bons se alternando a períodos de retrocesso, e mesmo nos momentos bons ocorriam graves ataques contra povos indígenas, muitas das vezes por consequências diretas ou indiretas de políticas do próprio Estado.  A FUNAI permaneceu um órgão instável, bastante visado por setores retrógrados oficiais, adquirindo fama, inclusive, por abrigar expressivo “entulho autoritário”.   Quando a democracia parece avançar entre 2003 e 2016, novamente instabilidades e políticas públicas contraditórias e desalinhadas; e, na sequência, retrocesso democrático no país com impactos negativos fortes sobre a política indigenista, que adota contornos de franco genocídio oficial.

O Movimento Indígena perdeu suas ilusões com discursos inconsistentes, e assim parece também acontecer com o indigenismo, constantemente premido por ambiências alienantes e desagregadoras.  Acirram-se as contradições do indigenismo democrático com o Sistema.  Evidencia-se mais e mais a crise crônica do indigenismo brasileiro.  Crise de identidade e autorreflexão, de capacitação orgânica e consistência ideológica, de reconhecimento no âmbito do Estado, de insuficiência de quadros, capacidades e meios.

“Estadismo” e indigenismo no século XXI

O “estadismo” indígena – um reverso do indigenismo de estado e sociedade envolvente – impõe a necessidade de um novo Estado, democrático pleno, plural, e, naturalmente, promove um impacto forte sobre o indigenismo, mesmo o mais sensato, consciente e coerente, de maior qualidade e melhores resultados, tal qual conhecemos até aqui.   Sepulta todo e quaisquer resquícios de tutela, de soberba civilizacionista ou tecnológica, de sociedades e estados opressivos.  Em 2003, início do primeiro governo Lula, que se elegeu explicitamente compromissado com a causa indígena, ensaia-se o desenho participativo de uma “Nova Política Indigenista”, com ênfase na proposta de realizar a primeira Conferência Nacional de Política Indigenista.  Durante três dias no mês de julho daquele ano a FUNAI realizou em Brasília o seminário “Por uma nova política indigenista”, congregando lideranças e quadros indígenas, organizações, movimentos e uma ampla representação indigenista, traçando um plano base para a construção da 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista pensada para realizar-se ainda em 2003 ou no ano seguinte por um processo de conferências preparatórias por todo o país.  O projeto foi desativado pelo governo e tal conferência só veio a se realizar em fins de 2015, ainda assim com resultados de pouco impacto real face à conjuntura golpista que já se instalava no país.

Se o Estado assume, ou ensaia assumir, contornos “plurinacionais” de democracia social inclusiva, mudam necessariamente as premissas de sua ação indigenista.  O processo é mundial.  A própria ONU inaugura, em 2002, seu Foro Permanente de Assuntos Indígenas – PFII na sigla em inglês, com composição paritária de membros entre representantes de povos indígenas e de estados nacionais. Quadros indígenas tendem a assumir a formulação e condução da política indigenista em consulta com as representações étnicas.  Não há mais lugar (já não havia) para indigenismos personalistas, possessivistas-tutelares ou paternalistas.  Mas, sem dúvida, o indigenismo segue necessário.  Continua a necessidade de políticas e atitudes de estado em relação às nações indígenas.

No Brasil, as novidades de 2022/23 são muito importantes, indiscutivelmente.  Já em 2018, em meio a um processo golpista de ascensão da extrema direita racista, o país vê ser eleita, com voto indígena de base e outros apoios, sua primeira deputada federal indígena, Joênia Wapixana.  Registre-se também que, na mesma eleição, por primeira vez, o país viu uma líder indígena, Sonia Guajajara, Coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, figurar como vice numa chapa à Presidência da República.  Ao mesmo tempo, em evidente ação golpista orquestrada por alas ultradireitistas de setores capitalistas internacionais, o país elege um chefe de estado nitidamente fascista, racista, negacionista, militarista e anti-indígena que instala um retrocesso considerável na política indigenista, aparelhando a FUNAI para interesses etnocidas e genocidas, fomentando invasões e violências e paralisando as demarcações de terras.  Um governo explicitamente neoliberal e dócil ao capitalismo imperial de natureza mais crua e selvagem.

Não obstante, na eleição de 2022, a extrema direita é derrotada no pleito presidencial, com o retorno das forças políticas de centro-esquerda, Luís Inácio Lula da Silva à frente, que, dessa vez, assume compromissos mais explícitos, embora apenas verbais, com a causa indígena, incluindo a criação do Ministério dos Povos Indígenas.  Nessa mesma eleição o país vê a vitória de duas deputadas federais (ou 4, ou 5[10]…), desta vez majoritariamente por votos não indígenas.  “Aldeiar a política”, um movimento liderado pela APIB e sua dirigente Sônia Guajajara, uma das deputadas agora eleitas e hoje ministra de estado, promoveu um aumento expressivo de candidaturas indígenas por todo o país, com votações inéditas. Uma mostra mais que cabal que para a opinião pública brasileira a causa indígena importa.

Avanços relevantes, creditáveis amplamente à luta persistente do Movimento Indígena.  Vale lembrar que em 2002, Lula, apoiado por amplas forças, também se elegeu com compromissos formais assumidos com os povos indígenas.  No entanto, tais “Compromissos” não foram efetivamente cumpridos em pontos cruciais.  Inclusive o documento que os formalizou chegou a ser queimado em manifestação pública liderada pela COIAB, em Manaus.  Por trás da frustração, o mítico argumento da “governabilidade”.  Políticos institucionalistas (“tradicionais”, “velha política”, “democracia consentida” pelas classes dominantes) da aliança de centro-esquerda mostraram-se sensíveis, na prática, ao mito difundido pelas forças reacionárias influentes no Congresso Nacional de que os povos indígenas representavam “obstáculo ao desenvolvimento” e risco à “segurança nacional”.  Travas foram impostas aos vários avanços reclamados, vacilos criados no enfrentamento de questões cruciais, como a demarcação da TI Raposa Serra do Sol e as graves situações da região Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, entre inúmeros outros casos crônicos.  Ainda no primeiro governo Lula, alianças com o velho indigenismo rondoniano conservador foram estabelecidas.  Nenhuma iniciativa persistente importante foi tomada visando dotar o país de uma lei ordinária central que regulamente a Constituição Federal de 1988.  O PL do Estatuto dos Povos Indígenas mofa, entre idas e vindas, nas gavetas do Legislativo desde 1991.  A ausência de legislação ordinária essencial fragiliza a ação indigenista democrática em qualquer plano.  Enquanto o Movimento Indígena avançava em todo o mundo, no Brasil o sistema político fortemente influenciado por forças retrógradas e corruptas, consegue impor um clima de defensiva no parlamento, onde um grande número de PLs e PECs tentam suprimir direitos indígenas em benefício de interesses do grande capital, da destruição ambiental, de atividades ilícitas e de politicagens regionais.  É imperioso lembrar que os expressivos avanços, inclusive legais, da causa indígena no Brasil ao longo de muitas décadas nunca contaram com correlações de forças rigorosamente “favoráveis” no parlamento nacional ou Assembléias Constituintes.  Outros fatores, vinculados à luta de resistência dos povos indígenas, ao apoio popular a essas lutas e à luta ideológica ampla, esses sim, explicam as conquistas alcançadas.  Insere-se ainda nesse ciclo de surto retrógrado, o surgimento da absurda tese do “marco temporal” no Judiciário Brasileiro.

Nesse início de 2023 o Brasil ganha um Ministério dos Povos Indígenas, preponderância de protagonismo indígena na condução dos órgãos que exercem a política indígena (FUNAI – agora não mais “do Índio” mas dos Povos Indígenas, mais as políticas públicas específicas de saúde e educação nos seus respectivos ministérios), expectativa de reativação do Conselho Nacional de Política Indigenista – CNPI, da retomada das demarcações de terras e proteção efetiva das áreas de incidência de povos indígenas em isolamento voluntário e de recente contato, da desintrusão de invasores, sobretudo garimpeiros, madeireiros, grileiros, especuladores e agricultores, e de enfrentamento, sem impunidade, das práticas racistas, ameaças, agressões e assassinatos de lideranças e cidadãos indígenas (e indigenistas) em todo o país.  Surgem esperanças também de que seja reativado o processo de mobilização da Conferência Nacional de Política Indigenista e, em paralelo, de um amplo trabalho político no Congresso e em todo o país para aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas, consagrando o patamar de democracia ampla e plural que o país reclama.  Com sorte o Brasil poderá conquistar uma PEC que estabeleça representações institucionais para povos indígenas e outras minorias no Congresso Nacional e no Judiciário, além de galgar o patamar de país plurinacional e multiétnico em sua carta magna.

Os desafios postos à política indigenista no Brasil de 2023 são portentosos.  Nunca o movimento indígena brasileiro mostrou-se tão forte, poderoso e tão explicitamente apoiado pela sociedade civil.  Por outro lado, os setores anti-indígenas reacionários mostram nível elevado de radicalização e articulação, bancados por uma ultradireita ousada, golpista de nítidos contornos fascistas.  As situações de conflito, insegurança e violência que vitimam os povos indígenas no Brasil seguem sendo muitas, persistentes e, em muitos casos, agravadas.  Impõem-se determinação, coragem, lucidez e habilidade política.

Indigenismo em perspectiva

Em vista do panorama histórico e da dinâmica de conflitos do presente, o indigenismo democrático e os indigenistas têm diante de si o desafio de refletir e reavaliar concepções e posturas. Entender o imperativo de colocarmos o indigenismo ajustado à tarefa de conquistar e consolidar direitos e espaços de participação cidadã plena dos povos indígenas no Estado-Nação Brasileiro em todas as instâncias.  Assumir consciência:

  • da relação intrínseca entre a Resistência Indígena e as lutas democrática plural inclusiva e pelos direitos humanos no país e no mundo; portanto,
  • acolher o primado democrático dos direitos coletivos e difusos sobre os individuais, e
  • sem vinculação com as lutas democráticas populares e antifascistas não pode haver indigenismo estruturalmente coerente e consequente;
  • que os avanços legislativos e institucionais são fundamentais para não sujeitar a política indigenista e o indigenismo como um todo às instabilidades políticas a que o país tem se sujeitado nos últimos anos – não temos garantias absolutas que o país não venha a sofrer golpe de estado de ultradireita nem que esses segmentos racistas não voltem a vencer eleições nacionais em 2026;
  • da natureza antissistêmica do indigenismo nos marcos do sistema imperial-capitalista neoliberal que, inequivocamente, conspira contra e nega regimes democráticos plurais e inclusivos; 
  • do papel indissociável da luta indígena e indigenista das lutas pela paz e a sustentabilidade no planeta;
  • da necessidade de agregar amplamente apoios e solidariedade nos processos das lutas pelos direitos democráticos dos povos indígenas e isolar os polos contrários que tentam negar esses direitos;
  • quanto à importância de absorver, registrar e sistematizar conhecimentos acumulados por vivências e práticas do indigenismo, assim como da manutenção indispensável de elos estreitos com a produção científica nos campos afins das ciências sociais, sobretudo da antropologia;
  • de que o indigenismo não é monopólio do estado, pode e deve ser exercido pela sociedade civil.  E, no Estado, precisa se mostrar transversal e coerente, nos três poderes: Executivo – em suas várias políticas públicas e órgãos, no Judiciário e no Legislativo; e em todas as esferas administrativas – ou seja, incluindo estados e municípios.

Enquanto atividade profissional, o indigenismo precisa de um reconhecimento devido, amparo e valorização.  Conquistar reconhecimento e respeito efetivo, geral e institucional, não será algo fácil nem natural num ambiente social, político e ideológico adverso como o que temos tido sob a ordem do capital e das heranças colonialistas e racistas.  Exige afirmação, luta política e ideológica, imposição democrática.  Vale lembrar que o indigenismo e muitos indigenistas foram alvos de ataques e perseguição política.  Um capítulo a destacar foi a perseguição, pela Ditadura Militar, em 1980, à SBI – Sociedade Brasileira de Indigenistas, então recém fundada, com a exoneração sumária, pelos coronéis da FUNAI, dos seus dirigentes e fundadores.  Mais tarde, em 1993, os perseguidos foram “beneficiados” com ato de anistia.  A anistia aos indigenistas, porém, não significou, na prática, reparação devida aos prejuízos marcantes que a maioria dos perseguidos sofreu em suas vidas. 

A função indigenista requer, sem dúvidas, vocação, postura, preparo, formação, treinamento, atitudes de diálogo e consultas, sobretudo aos povos indígenas e suas representações, e constantes reciclagens. Reivindica um código de ética. Pede atitude de entrega, engajamento, desprendimento, espírito de militância e “sacerdócio”.  Requer também coragem ante a ferocidade irracional do racismo fascista, a frequente falta de escrúpulos do capital ganancioso e a bandidagem corrupta associada.  Indigenismo não se encaixa bem com voluntarismos, posturas presunçosas, antiéticas e dolosas, preconceitos étnicos, estreitismos políticos, vaidades exacerbadas, possessivismos, grupismos, negacionismos e tais.  Que o indigenismo signifique uma Nova Mulher e um Novo Homem, senhas para um planeta resgatado em sua plenitude.

Eduardo A. Almeida – indigenista. 

Itanagra, BA, Março 2023.

Foto disponível em: https://www.camara.leg.br/radio/programas/756054-povos-indigenas/


[1] Em suas versões iniciais esse texto foi franqueado a indigenistas e lideranças indígenas de notória experiência e vivência.  Agradecemos as críticas, sugestões e incentivos de vários deles e delas.  Muitas das ricas sugestões foram incorporadas ao artigo.  Convém registrar, de modo especial, as contribuições à maturação das ideias do texto vindas de Cristina Ribeiro, Susana Grillo, Antenor Vaz, Armando Soares e Frederico Oliveira.  Frederico Oliveira nos franqueou acesso ao trabalho de Carlos Augusto da Rocha Freire, Sagas sertanistas: práticas e representações do campo indigenista no século XX, obra de grande valia para uma compreensão histórica do indigenismo no Brasil republicano.

[2] Embora o foco dessas reflexões esteja no indigenismo brasileiro, consideramos essencial sempre ter em mente que o indigenismo político é um fenômeno mundial.

[3] Um dos primeiros registros da expressão indigenismo como conceito político vem do Congresso Indigenista Interamericano realizado em 1940 na Cidade do México.

[4] Ver, entre outros, Pacificando o branco, cosmologias do contato no norte amazônico, organizado por Bruce Albert e Alcida Ramos.

[5] Conforme me lembra Antenor Vaz, convêm evitar falar em vulnerabilidades, pois estas não seriam absolutas nem constantes, mas relativas ou circunstanciais.

[6] Não confundir com outro CNPI – Conselho Nacional de Política Indigenista, proposto no Compromisso com os Povos Indígenas (2002) e criado em fins de 2015 com duração efêmera.  O Conselho Nacional de Proteção do Índio contou com a antropóloga Heloisa Alberto Torres como conselheira desde sua fundação.

[7] Vários etnólogos, brasileiros e estrangeiros, contribuíram expressivamente, apesar das dificuldades que encontravam, para o amadurecimento científico, ideológico e jurídico do indigenismo no Brasil desde os tempos do SPI e depois na instituição da FUNAI.  Dentre esses, forçoso citar Heloisa Alberto Torres, Eduardo Galvão, Darcy Ribeiro, Carlos Moreira Neto, Olímpio Serra e Manuela Carneiro da Cunha. Vide ainda a histórica Declaração [do Encontro] de Barbados, 1971, em que o Brasil esteve representado por quatro destacados antropólogos: Darcy Ribeiro, Carlos Moreira Neto, Silvio Coelho dos Santos e Pedro Agostinho da Silva.

[8] Normas da própria FUNAI preconizavam, ainda na década de 1980, conteúdos integracionistas e alienantes, colonizadores mesmo, na educação escolar ministrada pelo órgão nas aldeias.

[9] Ver Isolados no Brasil – política de estado: da tutela para a política de direitos – uma questão resolvida?, Antenor Vaz, Informe IWGIA 10, 2011.

[10] Sonia Guajajara (PSOL, SP), Célia Xakriabá (PSOL, MG), Juliana Cardoso (PT, SP), Paulo Guedes (PT, MG) e Silvia Wayampi (PL, AP).  As duas primeiras foram eleitas com bandeiras nítidas do Movimento Indígena.  A última, militar de carreira, está ligada a um partido de extrema direita notoriamente opositor dos direitos indígenas.