A coalizão de comunistas, progressistas e liberais pela redução dos juros
No debate público brasileiro parece haver um consenso que une comunistas, socialdemocratas e mesmo liberais à esquerda do espectro político: a urgência da redução das taxas de juros do BC.
No debate público brasileiro parece haver um consenso que une comunistas, progressistas e mesmo liberais à esquerda do espectro político: a urgência da redução das taxas de juros do Banco Central.
Por Theófilo Rodrigues
Nos últimos meses um grande debate público sobre a política econômica brasileira tem sido travado entre o presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Preocupado com o desenvolvimento econômico do país, Lula tem defendido que o BC reduza a taxa de juros Selic. Indicado por Jair Bolsonaro e protegido pela independência do BC, Campos Neto segue a cartilha neoliberal e se recusa a baixar os juros.
Nesta disputa de interesses e de projetos distintos de política econômica, Lula conta com uma ampla coalizão que o elegeu em 2022 que vai dos comunistas do PCdoB até os economistas liberais que já foram próximos do PSDB, passando por outros intelectuais progressistas de diferentes vertentes. Campos Neto, por sua vez, conta com o irrestrito apoio neoliberal de banqueiros, de rentistas, da grande imprensa e da extrema-direita que o indicou em 2019 para a posição que ocupa até hoje. Mas quais são os argumentos levantados por todos esses atores?
O pensamento liberal: Pérsio Arida, André Lara Resende, Monica de Bolle e Joseph Stiglitz
Economistas liberais historicamente ligados ao PSDB, como Pérsio Arida, André Lara Resende e Monica de Bolle, estão entre aqueles que defendem a necessidade da redução dos juros. Mais próximo atualmente de um certo liberalismo à esquerda do espectro político, Lara Resende defendeu em seminário realizado no BNDES na última segunda-feira (20/03) que “a combinação de juros muito altos e impostos muito altos é uma combinação profundamente recessiva e impede o crescimento da economia”. Por sinal, Lara Resende é ex-presidente do BNDES.
Em janeiro de 2017, no artigo “Juros e Conservadorismo Intelectual”, publicado no Valor Econômico, Lara Resende já havia criticado a política de juros altos:
“No Brasil, a inflação é muito pouco sensível à taxa de juros. As razões da ineficácia da política monetária são muitas e controvertidas, mas a baixa sensibilidade da inflação à taxa de juros é indiscutível, uma unanimidade. Por outro lado, com a dívida pública em torno de 70% do PIB, uma taxa nominal de juros de 14% ao ano exige um superávit fiscal de quase 10% do PIB para que a dívida nominal fique estável. Com a economia estagnada e a inflação perto dos 6% ao ano, isso significa que é preciso um superávit fiscal primário de quase 5% da renda nacional para estabilizar a relação entre a dívida e o PIB. A carga tributária está perto dos 40% do PIB, alta até mesmo para países avançados, ameaça estrangular a economia e inviabilizar a retomada do crescimento. A dificuldade política para reduzir despesas é enorme. Fica assim claro que o custo fiscal da política monetária não é irrelevante”.
Caminho semelhante foi defendido pelo ex-presidente do Banco Central, Pérsio Arida, em entrevista para o Brazil Journal em janeiro de 2023: “Diferentemente de outros analistas, penso que o próximo movimento do Banco Central deva ser na direção de iniciar um ciclo de baixa da taxa de juros. E por vários motivos: atividade econômica está fraquejando, temos uma crise de crédito latente e o real vem se valorizando”.
Economista que trabalhou no Fundo Monetário Internacional (FMI), Monica de Bolle apresentou argumento semelhante em recente entrevista:
“Acho que o Banco Central deveria reduzir a taxa de juros porque todo o cenário que se apresenta, inclusive com essa situação do crédito privado, é um quadro recessivo. Começa a ter um monte de empresa pedindo concordata com risco de falência e isso daqui a pouco vira desemprego e começa a ter efeito multiplicador na economia”.
Esse liberalismo está alinhado com o que pensa o economista estadunidense Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia em 2001. Em sua participação no Seminário do BNDES realizado na segunda-feira (20/03), Stiglitz demonstrou sua incompreensão com a política monetária brasileira:
“A taxa de juros de vocês de fato é chocante. Uma taxa de 13,7%, ou 8% real, é o tipo de taxa de juros que vai matar qualquer economia. É impressionante que o Brasil tenha sobrevivido a isso, que seria uma pena de morte. Parte da razão de vocês sobreviverem a essas taxas de juros é que vocês têm bancos estatais, como o BNDES, que tem feito muito com essas taxas de juros, oferecendo fundos a empresas produtivas para investimentos de longo prazo com juros menores”.
Economistas progressistas: Bresser-Pereira, Marcio Pochmann, Leda Paulani e Luiz Gonzaga Belluzzo
Entre os economistas progressistas como Luiz Carlos Bresser-Pereira, Marcio Pochmann, Leda Paulani e Luiz Gonzaga Belluzzo a crítica à política de juros altos também ecoa. Em entrevista para a TV 247 o ex-ministro da Fazenda, Bresser-Pereira mostrou sua indignação:
“Qual é a taxa de juros [real] razoável, para um economia como a brasileira, para combater a inflação? É 2%, 3%, no máximo. É um absurdo, não só porque impede qualquer crescimento econômico, como isso também aumenta o déficit fiscal. O governo então, em vez de gastar em educação e saúde, gasta em juros para os rentistas, isso não faz o menor sentido”.
Presidente do Instituto Lula, Pochmann explicou em seu Twitter no mês passado que “para o Banco Central Independente, a cada aumento de 1 ponto percentual na taxa básica de juros, a dívida líquida do setor público (Dlsp) cresce R$38bi. Como a Selic aumentou 11,75 pp entre Ago/20 (2%) e Dez/22 (13,75%), o impacto na Dlsp foi de R$446,5bi”. Trata-se, diz Pochmann, de “um gasto improdutivo”.
Ex-secretária de Planejamento da prefeitura de São Paulo na gestão de Fernando Haddad, Leda Paulani sustenta que a política de juros é baseada em premissas falsas:
“Esse doente não está doente. Nós não temos um problema de descontrole inflacionário no Brasil. Nós não temos um problema de descontrole fiscal. Em nome dessas duas doenças, que não existem, se mantém a taxa de juros num nível absurdo, matando todas as possibilidades de crescimento da economia”.
Em artigo publicado no Valor Econômico no dia 7 de março de 2023, o professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, Luiz Gonzaga Belluzzo citou o economista-chefe do Citigroup, Willem Buiter, para constatar o que considera óbvio:
“A elevação da taxa de juros real causa o crescimento da dívida por duas razões. Primeiro, faz saltar o custo real do serviço da dívida. Segundo, ao reduzir a demanda de bens, serviços e de trabalhadores, a elevação do juro real provoca uma queda da receita fiscal e impede a obtenção do superávit primário”.
O que pensam os comunistas?
Professor de Ciências Econômicas da UERJ e um dos principais porta vozes da economia política comunista no debate público brasileiro, Elias Jabbour explica que o fato dos dirigentes do Banco Central terem origem no mercado financeiro gera um problema de conflito de interesses:
“Eles saem dos bancos, vão para o Comitê de Política Monetária (Copom, órgão do Banco Central), ficam lá em um mandato de dois, quatro anos, e voltam para os bancos. E os bancos são os maiores interessados em uma taxa de retorno maior dos títulos da dívida pública. Por quê? Porque boa parte da lucratividade dos bancos advém desse lucro em cima da taxa de juros, da Selic”.
Com efeito, o Partido Comunista do Brasil sempre apontou em seus programas a crítica ao rentismo e à política de juros altos do Banco Central, mesmo na época dos primeiros governos Lula. O Programa Socialista do PCdoB, aprovado em 2009, já dizia que o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento (NPND) só seria possível com a redução dos juros:
“O financiamento do NPND, por um lado, exigirá também uma mudança no perfil da dívida pública, diminuindo seus custos e aumentando seus prazos, bem como a adoção de políticas monetária e fiscal, expansivas. O esforço pela diminuição da taxa de juros e dos spreads bancários poderá tornar os investimentos produtivos mais atraentes e aliviará o Orçamento da União do grande peso da rolagem da dívida pública”.
Mais recentemente, em 2022, o PCdoB reafirmou esse argumento no documento Completar a obra da independência do Brasil, divulgado no contexto das comemorações do bicentenário da independência e do centenário do partido:
“A recomposição da capacidade do Estado brasileiro de financiar e alavancar o desenvolvimento nacional exige a montagem de um complexo de estímulos econômicos adequado e consistente. É necessário alinhar a política macroeconômica nacional a esse objetivo. A manutenção prolongada e artificial de taxas de juros elevadas na economia nacional opera em sentido contrário: estimula a atração de capitais especulativos externos, provocando a valorização da moeda nacional e o consequente barateamento das mercadorias importadas. E, como resultado, ocorre uma inundação, no mercado interno, de produtos estrangeiros, provocando a quebradeira da indústria instalada no país, particularmente a nacional. Igualmente, forçar a geração de superávits primários elevados, para cobrir os encargos financeiros da dívida pública, compromete a capacidade de realizar investimento público, além de derrubar o investimento privado, ao encarecer o custo do crédito. Para desarmar essa armadilha, é necessário adotar taxas básicas de juros próximas às dos padrões internacionais e, ao mesmo tempo, substituir o câmbio flutuante por uma política cambial que possibilite o controle das contas externas e favoreça o investimento produtivo, a reindustrialização e a competitividade das empresas nacionais”.
Professor de economia política da escola de formação do PCdoB, Diogo Santas argumenta que “o regime monetário no Brasil é a cristalização institucional da correlação de forças econômica, política e ideológica entre o setor financeiro e não financeiro”. Para Santos, “em termos de estratégia nacional de desenvolvimento isto significa que é preciso realizar uma luta em duas frentes: direcionar os instrumentos públicos ainda existentes, sobretudo os bancos públicos, para contribuir para reverter a regressão da estrutura produtiva nacional em conexão com os desafios contemporâneos do Brasil; e arregimentar forças para alterar gradativamente esta institucionalidade da política monetária a favor do desenvolvimento nacional”.
A burguesia financeira governa o país sem ter sido eleita democraticamente: duas lições de Poulantzas
O que se pode ver é que, entre as correntes de pensamento, apenas o neoliberalismo defende a atual política econômica imposta pelo Banco Central contra a sociedade brasileira. Esse pensamento neoliberal não foi eleito pelo povo brasileiro para governar o país. No entanto, esse pensamento neoliberal evidentemente ainda constrange, contingencia e determina toda a estrutura social brasileira. Pois, como vimos nas interpretações dos liberais, dos progressistas e dos comunistas, a atual política de juros altos trava qualquer possibilidade de desenvolvimento do país. Em outras palavras, é inegável o fato de que o Brasil ainda vive sob a hegemonia da burguesia financeira, mesmo sob o governo de uma Frente Ampla democrática e popular. A permanência da maior taxa de juros do mundo corrobora essa assertiva.
Em um livro clássico da ciência política marxista da década de 1960, Poder político e classes sociais, Poulantzas distingue a ação das classes e frações de classe em duas instâncias: na cena política e no bloco no poder. A cena política é o lugar da aparência, é o espaço onde atuam os partidos políticos na luz do dia. Já o bloco no poder é a arena privilegiada da essência do poder, o local em que se opera a hegemonia. Muitas vezes pode acontecer, avalia Poulantzas, de uma determinada classe ou fração de classe hegemonizar o bloco no poder sem precisar estar presente diretamente na cena política. Ora, ao ditar os rumos da política econômica brasileira sem sequer estar presente no governo federal que foi eleito democraticamente – não há um ministro banqueiro, por exemplo -, a burguesia financeira prova que Poulantzas estava certo.
Claro, o fato de uma classe ou fração de classe não estar visível na cena política não significa dizer que ela não possa ter seus representantes indiretos por lá. Basta mencionar que os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, defendem a manutenção da autonomia do BC, mecanismo pelo qual a política econômica neoliberal é imposta. E esses dois representantes também são peças chaves na ampla coalizão de Lula em decorrência das idiossincrasias do presidencialismo de coalizão. São as contradições de um Estado que só pode ser compreendido como condensação das lutas de classes – uma outra lição de Poulantzas.
Se tudo isso é verdade, então reconquistar o Banco Central e reduzir a taxa Selic não é algo trivial ou uma mera mudança na cena política. Trata-se, efetivamente, de uma ação estratégica para a reorganização da hegemonia no bloco no poder.
Theófilo Rodrigues é cientista político. Autor do livro “Partidos, classes e sociedade civil no Brasil contemporâneo” (Appris, 2021) e organizador do livro “Engels 200 anos: ensaios de teoria social e política” (Anita Garibaldi, 2020).