Por Osvaldo Bertolino

A onda midiática que se levantou contra a definição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de que a democracia é relativa diz muito sobre a ideologia autoritária da direita. Essa discussão é antiga e relaciona-se à liberdade, um dos mais caros conceitos humanos. Mas existem interesses muito grandes em tentar separar a liberdade de outro conceito sem o qual a liberdade simplesmente não existe: o conceito de igualdade. Para existir a liberdade, precisa existir a igualdade.

A rigor, esse debate começou com Aristóteles – o maior pensador da Antiguidade – e seus estudos sobre a lei do valor, quando ele formulou, há mais de dois mil anos, a tese de que as mercadorias têm dois valores: um valor de uso e um valor de troca. Aristóteles dizia que mercadorias de valores de uso diferentes podem ter valores de troca iguais. Cinco camas, valem uma casa, dizia ele.

A troca existe porque há uma medida de igualdade, escreveu Aristóteles. As camas e a casa permitem uma medida de igualdade. Mas o que objetos tão diferentes como camas e casas têm de igual? Aristóteles se pergunta, sem conseguir responder. A resposta só viria no final do século XVIII, com David Ricardo: o que há de igual nas camas e na casa, objetos de valores de uso tão diferentes, é o trabalho humano envolvido na produção dessas mercadorias.

E por que Aristóteles não conseguiu descobrir que o trabalho humano é a medida da igualdade do valor? Marx responde, em O Capital, a grande obra de crítica à economia clássica – segundo Friedrich Engels, o projétil mais temível atirado à cabeça dos burgueses –, que Aristóteles era filósofo de uma sociedade baseada no trabalho escravo.

A compreensão da igualdade do valor de todos os trabalhos humanos só pôde existir quando a escravidão do mundo antigo e a servidão do mundo medieval foram superadas, a partir do momento em que a igualdade política entre os homens se firmou. O patrão é igual ao operário. O latifundiário é igual ao camponês.

Foi a Revolução Francesa que proclamou essa verdade-síntese, essa verdade política fundamental de que todos os homens são iguais. Ou seja: o ideal republicano representa a premissa de que a desigualdade é um padrão que precisa ser demolido, não renovado como cláusula pétrea das relações econômicas e políticas, a negação da horizontalidade social.

País agropastoril

Os ataques a Lula traduzem esse pensamento pretensamente pétreo, que trata a democracia de massa como valor inaceitável. São pessoas que expressam a ideologia de um pequeno círculo com frequente pendor autoritário, que recentemente trocou o ambiente da democracia em expansão graças ao papel histórico da esquerda, pelo golpismo para não ceder espaço na repartição do Produto Interno Bruto (PIB).

É a mesma elite que conspirou o tempo todo contra o ideal republicano – a essência da democracia – para se insurgir contra o Brasil institucional moldado pelas constituições democráticas de 1946 e de 1988. Uma elite conservadora de si mesma, de seus hábitos acumulativos escravistas. É possível dizer que se tivéssemos dependido unicamente de seus ideais, ou se, por outra, não tivéssemos contado com o Estado desenvolvimentista de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart, provavelmente ainda seríamos um país agropastoril. E que sem os investimentos públicos talvez fôssemos hoje uma vasta região do planeta vivendo de modo primevo.

Essa elite segue torcendo o nariz para a abertura das comportas do Estado, seja na forma de um governo federal que coordene o desenvolvimento nacional, seja de uma prefeitura que direciona seus recursos para a população pobre. É a ideia muito comum no Brasil de que o capital, ao vender a produção, está fazendo um favor. Defendem a democracia não como valor político coletivo, mas como mero instrumento para manietar a sociedade, cerceando o princípio da produção em massa associada à distribuição em massa, o norte de um projeto desenvolvimentista com inclusão social.

Escopo ideológico

Aqui está o ponto central do debate sobre democracia. Num de seus ataques bestiais a Lula, a revista Veja publicou, há algum tempo, um “pequeno (o termo pode ter sentido duplo) dicionário das (re)criações políticas” que, entre outras asneiras, define o “verbete” democracia como “todo regime simpático a Brasília em que o povo não tem força suficiente para tirar do cargo o governante que se pretende eterno”.

A elite brasileira sempre procura fundamentos doutrinários para empurrar os adversários ideológicos para fora da liça e negar o escopo ideológico que corre em suas veias. Ela não adota, desde sempre, a democracia como mola mestra econômica. E não assume ou honra compromissos entre os participantes do jogo democrático ao adotar práticas sistemáticas que violam o primado de eleições livres e limpas, sem interferência do poder econômico e sem manipulações políticas e ideológicas, em que todas as pessoas votam conforme suas consciências e demandas, todos os votos têm peso igual e todos os eleitores podem ser votados.

A própria Veja involuntariamente prestou um grande serviço ao lembrar – puxando a brasa para a sua sardinha, evidentemente – que o termo democracia é o mais vilipendiado do vocabulário político em todos os tempos. É o que faz o “pequeno dicionário” ao defender a visão autoritária de que a democracia se limita à prática política representativa e consiste somente na realização periódica de eleições, sem citar o peso do poder econômico e as manipulações ideológicas que cerceiam o debate democrático. Os Estados Unidos são o epicentro desses mitos – o país do individualismo, dos caubóis solitários, do Estado que apenas garante “a lei e a ordem”.

Um editorial dos jornalões definiu a elite brasileira como “obscuro sujeito histórico”, sempre atacado por vozes da esquerda, acusada de ser responsável pelos males da nação. Esse “sujeito histórico” só é obscuro para quem quer. O próprio editorial abriu a cortina com a qual a elite tenta se esconder quando afirmou que o discurso de Lula sobre democracia “revela-se digno do chavismo mais danoso”, sem esclarecer o que isso realmente significa, omitindo o princípio básico da igualdade como regra democrática na política e na economia, definidora das posições à esquerda e à direita no espectro ideológico.

Estrutura social

No Brasil, contra a direita pesa a tradição republicana, que é essencialmente progressista, antielitista – nenhum presidente da República elegeu-se com o voto popular prometendo claramente defender interesses da elite. Em nossa história, existem muitos exemplos de governos odiados pelo povo por prometer uma coisa e fazer outra. Existem também os que foram golpeados como resposta à concretização de compromissos com os interesses populares.

Este problema é resultado da nossa estrutura social herdada de formações econômicas e políticas do passado. Apesar do estímulo dos ideais da Revolução Francesa e da Independência Americana para as lutas republicanas – um movimento que surgiu com Tiradentes e seus companheiros em 1789, com os Alfaiates da Bahia em 1798, com os republicanos do Nordeste em 1817 e 1824 –, ainda hoje pode-se dizer que eles não se realizaram plenamente. Basta ver que seu arcabouço filosófico, como direitos individuais e liberdade de expressão, intrínsecos ao conceito de igualdade social e ao advento de governos contratuais, é violado recorrentemente. Muitas vezes, com cinismo acentuado.

Um prócere da direita chegou a dizer que numa perspectiva republicana o governo é para servir às pessoas, não aos partidos, revelando dois flagrantes sofismas. O primeiro é a deliberada generalização das “pessoas” a quem um governo republicano deve servir. O segundo é a tentativa demagógica de negar que os partidos são expressões de classes sociais. Se há interesses antagônicos em uma sociedade, como é o caso brasileiro, há também a disputa política expressa por meio do embate entre os partidos que refletem concepções de um ou outro conjunto de forças sociais.

Imaginário popular

Numa perspectiva republicana, portanto, governos democráticos levam a sério o papel dos partidos. A negação desta obviedade implica, em última instância, no cerceamento da manifestação democrática do povo. Negam a democracia como ponto de encontro político dos interesses de classes e de grupos sociais diferentes, como disse em 1947 o então deputado federal do Partido Comunista do Brasil Maurício Grabois.

Ao denunciar na tribuna da Câmara dos Deputados as imposições de autoritarismos como conceito de democracia absoluta, Grabois disse que havia o ressurgimento de práticas nazifascistas no pós-Segunda Guerra Mundial. “Hoje, após a derrota do nazifascismo, vemos se levantar as tentativas dos imperialistas norte-americanos e seus aliados para reacender a fogueira ateada por Hitler”, afirmou.

No dia 15 de dezembro de 1946, discursando na sessão de encerramento do ano parlamentar, Grabois havia dito: “A atividade dos parlamentares comunistas, defendendo os interesses da população, colocando-se muitas vezes em defesa da democracia, tornou o Parlamento credor da admiração do povo. E isso significa o desmascaramento dos que querem desmoralizar a democracia, daqueles que assestaram golpes contra o povo.”

Grabois estava se referindo ao profícuo trabalho da Assembleia Constituinte, que havia promulgado, em 18 de setembro de 1946, a Constituição, selando a democratização do país, e alertando para os perigos que espreitavam a democracia. “Todas as intrigas e mentiras difundidas por uma imprensa venal, planificada por um centro diretor dirigido pelo imperialismo, têm por objetivo atingir diretamente o Partido, não só na sua legalidade como no seu prestígio entre o povo, primeiro passo para atacar as organizações democráticas”, escreveu no jornal A Classe Operária dia 6 de abril de 1946.

Como ele previu, o ano de 1947 foi marcado por uma brutal ofensiva da direita, que cassou o registro legal do Partido. No ano seguinte, os mandatos comunistas também seriam cassados. Grabois discursou: “Senhor presidente, o que está se passando neste Parlamento é uma traição à democracia. Expulsa-se desta casa a bancada mais representativa do povo brasileiro.”

O autoritarismo da direita se repetiu em outras ocasiões, em duas delas como golpe de Estado – em 1964 e 2016. É a velha prática das classes dominantes de tratar tudo o que é público como sendo de ninguém. Para elas, o erário público não é dinheiro que pertence a todos e deve ser usado, sem controle da sociedade, para seus projetos, abolindo os princípios básicos da democracia. Consideram suas práticas um tapete que ninguém pode levantar.

Impõem a visão de que a riqueza como fruto de algo escuso é natural. Não é por outro motivo que os ricos brasileiros são vistos como usurpadores, gente de mau caráter. Porque – e isso está no imaginário popular – são pessoas que não precisaram trabalhar para chegar lá, que têm ligações escusas com o poder, que não precisam cumprir as leis e jogar pelas regras democráticas, pelos princípios das leis que regem o Estado de Direito.