Falece João de Deus, amigo dos guerrilheiros do Araguaia e líder da Guerra do Perdidos
Por Osvaldo Bertolino
Faleceu, em São Geraldo do Araguaia, de causas naturais, João de Deus, personagem importante dos camponeses que apoiaram a Guerrilha organizada pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970, além de liderar na região a chamada Guerra dos Perdidos.
João de Deus, segundo Romualdo Pessoa Campos Filho em seu livro Araguaia – depois da Guerrilha outra Guerra, foi “amigo dos ‘paulistas’ (como eram chamados os guerrilheiros), morador de Caianos, área do Destacamento C da Guerrilha”, município de São Geraldo do Araguaia. Documentos do Arquivo Nacional, em Brasília, revelam que, em 1976, a ditadura militar vigiava seus passos.
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A Guerra dos Perdidos teve como causa a ação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que, servindo a interesses de grileiros, decidiu refazer a ocupação na área, expulsando posseiros. A medida beneficiava o grileiro Luiz Erland, o Careca, que chegou aos Caianos após o fim da Guerrilha. João de Deus, que trabalhara com os guerrilheiros, relatou que a primeira reunião dos rebeldes dos Perdidos ocorreu na casa do posseiro Sebastião da Serra.
Primeiros disparos
Os cunhados de João de Deus, Davi e Joel dos Perdidos, assumiram a liderança do movimento. Os posseiros se reuniram depois numa cabana de palha que abrigou a escolinha da guerrilheira Áurea Valadão, executada em 1974 pelo Exército. Pelas contas de Davi, segundo a reconstituição do episódio em matéria do jornal O Estado de S. Paulo, 173 homens participaram do encontro. Eles decidiram interromper o trabalho de remarcação de lotes.
À meia-noite de 26 de outubro de 1976, hora combinada para o início da marcha até a picada onde estavam os funcionários do Incra, apareceram 36 posseiros. Dois traíram o movimento e avisaram à polícia do plano de ataque, que começaria pela manhã. Os posseiros mudaram a estratégia: se dividiram em três grupos de 12 e ficaram afastados do local previsto para o ataque. Lá, camuflados e agachados na mata, contaram 26 policiais e 8 pistoleiros.
Às cinco da manhã, a polícia percebeu movimentos no mato e fez os primeiros disparos. Quando cessaram os tiros, os posseiros se levantaram e atacaram. Um policial caiu morto. “Um deles levou um tiro no pé de ouvido de uma ‘por fora’ (espingarda), que a gente carrega pela boca, aquela venenosa”, relatou Davi ao jornal. “Morreram quatro. Outros saíram correndo, mais à frente um caiu”, diz. “A turma foi devagarinho; ele estava para se levantar quando tiramos o infeliz do sofrimento, como faziam com a gente, né? O cara pegava um pedaço de pau e batia na cabeça dos caídos, para sair do sofrimento. Morreu muito pistoleiro na picada”, acrescentou Davi.
Confusãozinha até boa
Um relatório militar confirma as mortes dos soldados Claudiomiro Rodrigues e Ezio Araújo. O documento Incidente em São Geraldo do Araguaia, do Serviço Nacional de Informações (SNI), destaca que o Exército reconhecia a truculência da Polícia Militar e foi acusado de atuar em parceria com policiais corruptos. Após o confronto, policiais cercaram povoados em busca dos revoltosos, retirando famílias à força.
Um vizinho de Davi, Deusdeth Dantas, o Deti, e dois filhos foram amarrados dentro de casa. Os policiais bateram na mulher dele e violentaram duas filhas menores, de 12 e 13 anos. Davi foi preso. “Fiquei um mês trancado numa cela. Me deram choques na língua, botavam fio elétrico na orelha e no cotovelo, você cai morto, não vê nada. Meus dentes quebraram tudo”, lembra. “Me perguntaram de coisas que eu não sabia que existia no mundo.”
Diz que valeu a pena. “Foi a primeira vez que gente pobre brigou com gente rica e ganhou. Antes não tinha MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), era só a gente. Foi uma guerrilha sofrida, mas vitoriosa. Naquele momento não morreu posseiro. Balançou o governo. Eles não tinham ordem para me prender. Tinham ordem para me matar.”
Veterano de dez garimpos, o cearense Jacob Silva, nascido no sertão dos Inhamuns, chegou aos Perdidos em 1963. Viu de perto as batalhas da Guerrilha do Araguaia. Em seu depoimento ao Estadão, disse que a Revolta nos Perdidos começou com a chegada de grileiros. O governo abriu uma estrada e deu início a uma nova redistribuição de lotes, que não contemplaria as famílias que estavam na área. “Foi uma confusãozinha até boa; a gente gosta é de um fuá”, disse.
Personagem feminina
A principal personagem feminina dos Perdidos era esposa de João de Deus, com o mesmo apelido da mais famosa integrante da Guerrilha do Araguaia. Dina, como era chamada Edna Rodrigues de Souza, passou pela tortura em 1976, como a guerrilheira Dinalva Teixeira, do Araguaia, dois anos antes. Militares espalharam que elas eram irmãs. Em três ocasiões, Edna sofreu choques elétricos e abuso sexual de agentes encapuzados.
A primeira foi na beira do Araguaia, onde foi presa. Após quatro meses, foi solta. Estava grávida. João de Deus e a esposa criaram a filha, Eva. Depois se separaram. Edna contou que estava escrevendo as memórias dos Perdidos, nas quais o advogado do PCdoB Paulo Fonteles, que a defendeu, assassinado pelo latifúndio em 1986, teria destaque. “Ele será o anjo, o ser que queria só paz na terra de pistoleiros, guerrilheiros e posseiros”, afirmou.
Em depoimento para o livro de Romualdo Pessoa, João de Deus diz que foram para os combates em Perdidos soldados de várias cidades, inclusive de Belém. E quando chegaram não procuraram quem estava na trincheira. Prendiam e batiam em todos. “Até pescador, da beira do rio, que eles achavam na frente, apanhava. As mulheres, crianças, tudo.”
No “Seminário Nacional de memória, anistia e direitos humanos do Araguaia”, realizado na Câmara Municipal de Marabá – uma das principais cidades da região –, entre 19 e 20 de maio de 2017, João de Deus fez um comovente e combativo depoimento. Paulo Fonteles Filho – filho do advogado assassinado em 1986 –, um dos organizadores do Seminário, afirmou: “Nós temos aqui o João de Deus, que liderou a Guerra dos Perdidos no Araguaia, que, com o debate da Guerrilha, a reação e o poder econômico tentaram se impor na região expulsando os lavradores das terras, e assim conhecemos uma parte da história do Pará com a Guerra dos Perdidos, a Guerra do Cajueiro e um conjunto de guerras camponesas que também precisam ser reconhecidas por nós.”