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Barata confissões: diamante lapidado

3 de novembro de 2023

Carlos Azevedo escreve sobre o novo livro de Bernardo Joffily

Por Carlos Azevedo

O primeiro livro de ficção de Bernardo Joffily veio a público mansamente, sem alarde. Vem por uma editora desconhecida, de Santa Catarina. Não tem padrinhos nem se tocam bandas à sua chegada. Em seu favor apresenta apenas a qualidade do texto. E é muito. É suficiente para que ocupe um lugar no cenário da literatura brasileira atual. Tem luz própria, brilho e consistência de um diamante. Não vou contar a história, só quero adiantar que este livro encontra um caminho feliz de homenagear o médico e grande jornalista revolucionário Cipriano Barata. Aquele que participou da Revolta dos Alfaiates, na Bahia, tendo escapado por pouco da forca, aquele que se envolveu nas lutas pela independência, e que tomou parte, na Revolução Pernambucana ao lado de seu amigo Frei Caneca. É aquele que foi eleito deputado às Cortes e foi defender a independência do Brasil em Portugal. E que enfrentou o imperador tirano Dom Pedro 1º teimando em fazer seu jornal Sentinela da Liberdade mesmo dentro das inúmeras masmorras a que foi submetido ao longo de anos.

Bernardo se incorpora a essa imortal figura libertária para fazer uma ficção tão surpreendente quanto rica. Para usar nossa língua portuguesa-brasileira esmerilhando palavras e expressões exatas. Medidas, como as de um Graciliano Ramos. Você vai lendo e as palavras têm sons, têm cores, retinidos familiares, e sente que tem um Brasil dentro de cada uma delas. De repente, você está num filme, de repente você se sente em casa. Em um cenário de mistério e suspense que guarda um sabor sherloquiano, ou de um Humberto Eco (“O Nome da Rosa”), você também encontra sonoridades que ressumam a Euclides da Cunha (“Os Sertões”). E a quase cegueira do protagonista pode remeter você a Vargas Llosa em sua versão de Canudos (“A Guerra do Fim do Mundo”). Quando ele sentencia: “é fato claro sabido e assente o quanto cavalos têm almas grandes e pródigas, audazes e estouvadas”, você pode pensar que também Guimarães Rosa poderia ter dito isso.

Na sua humildade natural é claro que Bernardo nem pensa em se comparar a esses gênios da literatura. Mas falo da imensa lavoura da cultura universal em que todo artista vai colher inspiração e plantar sua semente. Como disse Cabral de Melo Neto, “um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos”. Quero dizer e digo: com seu enorme talento e a obsessão pela pesquisa que o faz devorar livros e destrinchar dicionários, em português, francês ou albanês há 60 anos, ele sabe tudo. E escreve e já escreveu sobre tudo do seu Brasil . Só para dar um exemplo, veja o monumental atlas histórico: “Brasil 500 Anos”, de 1998, que Bernardo pesquisou, escreveu e ilustrou. A nossa História está ali escrita, desenhada em cores. Só para você ter uma ideia da riqueza documental, em suas páginas se pode até acompanhar em imagens detalhadas a trajetória das manobras feitas pelos navios comandados pelo marinheiro João Cândido, na Revolta da Chibata, em 1904.

Não importa que ele tenha sido um menino do Rio, que curtiu sua infância e adolescência nas areias da praia do Leme, ele fala com toda propriedade de uma cerca de curral feita “de baraúna preta e cerne de pau d´arco rijo, compacto: um curral feito para durar a eternidade”. Fala como um sertanejo de um curral que nunca viu, mas que seu talento construiu assentado em rigorosa investigação. Pode falar porque carrega o Brasil com ele. Porque traz consigo toda uma enciclopédia que construiu em um labor proletário.
E é assim que, com aquele seu jeito de poucas palavras (talvez porque as ache preciosas demais), e seu costume de trabalhar horas infinitas sem dormir, fumando cigarros sem filtro, foi cuidando dessa ideia enquanto trabalhava com tantos outros projetos e tarefas. Seja como militante político, como jornalista, escritor, tradutor, desenhista, ilustrador, e nas horas vagas, se é que as há, escultor. Em silêncio, incansável.

Ao longo de 20 anos namorou essa ideia, transformou-a em um projeto, que deixava de lado premido pelos outros trabalhos. Mas sempre voltava, amadurecendo, polindo. Até conseguir encapsular, sintetizar todo esse universo criativo em uma joia de 150 páginas. Que começa como um vagalume recortando a noite entre as árvores e explode ao fim como uma estrela de primeira grandeza. Obra de ourives, diamante finamente lapidado, sim senhor! E mais não digo para não estragar seu prazer.

BARATA CONFISSÕES
Bernardo Joffily
Kotter Editorial