Carlos Azevedo: a história de Raimundo Rodrigues Pereira – uma biografia sincera
O jornalista Carlos Azevedo apresenta o livro “CONTRACORRENTE: A história de Raimundo Rodrigues Pereira”
Em algum momento de 2013 recebi em minha casa dois estudantes de jornalismo que queriam uma entrevista. Até aí nada de novo porque é mais ou menos frequente que estudantes me procurem para se informar sobre peripécias jornalísticas que testemunhei ou das quais participei no século XX.
A ambição desses dois – Julia Rabahie e Rafael Faustino, alunos de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo – era maior do que o costumeiro nessas pesquisas para trabalhos de conclusão de curso. Seu projeto era fazer uma biografia do jornalista Raimundo Rodrigues Pereira. Confesso que isso não me impressionou. Já vira trabalhos resultantes de minhas entrevistas que tinham mostrado resultados medíocres.
Conversamos bastante e dei a eles um exemplar de meu livro Jornal Movimento uma Reportagem.
Meses depois, voltaram à minha casa trazendo um livro volumoso, 370 páginas. Na capa, um bom retrato a bico de pena de Raimundo Pereira, barbudo. O título CONTRACORRENTE. Abaixo, uma linha fina: A história de Raimundo Rodrigues Pereira. Gentis, fizeram uma dedicatória simpática. Foi assim. Nunca mais os vi nem tive notícias deles até agora, quando escrevo, em outubro de 2024. Na época li o livro e me surpreendi pelo excelente resultado. E me esqueci.
Por que estou escrevendo isso? Porque na semana passada, Raimundo, que mora no Rio de Janeiro, veio a São Paulo para o casamento de uma de suas filhas, Raquel. Nos encontramos para confraternização, que juntou vários amigos na casa de Maria Estela, a Téia, outra personagem do livro, pois trabalhou com Raimundo por muitos anos.
Estávamos ali, num clima gostoso de camaradagem, compartilhando a combinação de café, vinho, pão, queijo, salame e outras guloseimas, uma tradição nessa turma. E jogando conversa fora. Alguém falou da campanha eleitoral e houve alguma referência aos evangélicos. Raimundo tirou da memória uma peripécia de sua infância. Disse: “já fui evangélico (curta pausa) por uma semana!” Todos caímos na risada, ele é sempre engraçado. Ninguém ali conhecia esse episódio da vida dele.
De repente eu lembrei: não, eu conhecia essa história. Estava no livro Contracorrente.
O livro contava que o menino Raimundo era fanático por jogar futebol quando morava em Pacaembu, cidadezinha no interior de São Paulo para onde sua família havia mudado, vindo de Pernambuco. Aconteceu que o organizador do time infantil tornou-se evangélico, deixou o grupo dizendo que futebol era tentação do demônio. Raimundo se impressionou e tornou-se evangélico também. Mas havia uma proibição. Se voltasse a jogar futebol iria para o inferno. Como abandonar sua paixão? E mais: seu time ia disputar uma partida decisiva. Passou dias dividido pelo dilema. Mas não aguentou a tentação. Mesmo temeroso do inferno ousou jogar uma partida. E não sofreu castigo divino algum. Perdeu a fé e abandonou a crença religiosa.
Recordei isso na reunião. Falei do livro e todos na sala disseram que não o conheciam. Voltando para casa resolvi buscar na internet notícia do livro e dos autores. Descobri que um deles, Rafael, havia promovido a sua digitalização. Tratei de compartilhar com uma porção de amigos meus e de Raimundo. Fiz nova leitura e confirmei minha impressão anterior: Contracorrente é um livro bom. Honesto e bem humorado, aferrado aos fatos, faz o retrato impresso mais completo de Raimundo que eu conheço, desde seu nascimento até 2013, quando o biografado tinha 73 anos e continuava em plena atividade.
Os autores, como se houvessem se tornado discípulos do rigoroso estilo de Raimundo na apuração dos fatos, com certeza trabalharam intensamente durante o pouco tempo com que contavam para levantar informações preciosas, cercadas de riqueza de detalhes, de toda a trajetória do biografado. Há alguns equívocos, mas não comprometem o conjunto da obra.
Começaram levando o leitor para Exú, no sertão pernambucano, onde Raimundo nasceu, em 1940. Informaram que Joaquim, seu pai, era mascate, e de quebra retrataram a cidade antiga, envolvida secularmente em lutas sangrentas entre duas famílias tradicionais.
É detalhada a descrição da imigração da família de Pernambuco para o interior de São Paulo até se instalar em Pacaembu.
A dupla de estudantes fez mais, viajou a Pacaembu, sem esperar muita coisa, pois já haviam passado mais de cinquenta anos. Mas quando voltou trazia uma riqueza de informações sobre a família e sobre Raimundo. Não conto mais para não estragar o prazer dos futuros leitores.
Em resumo, os dois estudantes rastrearam e puseram no papel com detalhes, num texto leve e bem humorado a vida de Raimundo desde estudante e depois mergulhando na sua longa e brilhante trajetória profissional até 2013.
O leitor vai se deparar com uma vida pessoal e profissional que está entre as mais extraordinárias de nosso tempo. Os autores lembram o estudante de engenharia do ITA – Instituto Tecnológico da Aeronáutica, que foi preso no primeiro instante do golpe militar de 1964 e expulso da escola, e em seguida o jornalista que apenas quatro anos depois iria salvar a revista Veja do fracasso de vendas. Recém lançada, a revista não havia agradado os leitores e encalhara nas bancas de jornais. Raimundo, usando seus conhecimentos de engenharia, produziu uma série de reportagens sobre as viagens dos astronautas à lua. Foi um sucesso.
Mais adiante, em dezembro de 1969, Raimundo, com a concordância do diretor, Mino Carta, armou uma arapuca para a ditadura militar. Aproveitando uma frase de um ministro que dissera que “o presidente não admite torturas” comandou a equipe que apurou e denunciou as torturas. Foi um drible genial na terrível ditadura do general Médici.
Em 1971, já fora de Veja, ele foi o notável editor que idealizou e realizou a histórica edição da Realidade Amazônia, que demorou um ano para ser produzida.
No auge do prestígio, mas desencantado pela omissão e colaboracionismo da imprensa comercial com a ditadura, Raimundo se afastou, renunciou aos altos salários e foi promover encontros com outros colegas para criar o “jornal dos jornalistas”. Sempre muito engraçado e mal ajambrado na vestimenta, como lembram os amigos, iria ser, nos anos seguintes e por mais de uma década, o protagonista de duas das maiores expressões do jornalismo democrático, independente, de oposição à ditadura militar, os históricos jornais Opinião e Movimento.
A dupla de estudantes relata com detalhes as peripécias desse período, marcado pela realização de matérias que a imprensa comercial se omitia de fazer e por uma luta ingrata contra a censura e o terrorismo do regime militar, o qual apelou para processos pela Lei de Segurança Nacional e chegou a incendiar bancas de jornais para impedir a circulação da imprensa independente. Por isso mesmo foi um período de muita tensão e de grandes dificuldades materiais. E de intensos debates de ideias, divergências, como o episódio da demissão de Raimundo do Opinião por Fernando Gasparian, o dono do jornal. E o grande racha que provocou o afastamento de parte da equipe de Movimento.
E não parou aí. Conduzido pela dupla de estudantes o leitor conhecerá ou se lembrará de todas as outras iniciativas comandadas por Raimundo depois da democratização, trabalhando com pequenas equipes entusiastas, fazendo revistas e jornais, escrevendo livros, alguns enciclopédicos, e polêmicos, praticando jornalismo independente, irreverente, sempre buscando e se alicerçando nos fatos.
Acompanhou e opinou sobre os principais acontecimentos do país nos governos Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique, Lula e primeiro governo de Dilma. O livro para em 2013. Mas Raimundo iria adiante, cobrindo no Retrato do Brasil o amargo período da Lava Jato.
E tem mais: todos os projetos realizados por ele — salários, despesas de produção, impressão e distribuição etc. – foram financiados com recursos que ele mesmo obteve licitamente oferecendo seus produtos a governos, prefeituras, bibliotecas e outras instituições culturais. Grande vendedor.
Ficaram na história do jornalismo a Editora Política, a Editora Manifesto, a revista Reportagem, Retrato do Brasil etc. etc. São milhares de textos que contam a história política, econômica, social e cultural do Brasil desde a década de 1970 até recentemente.
Quanto aos dois jovens autores, aprendizes de jornalismo, se pode dizer que deram suficiente demonstração de que haviam aprendido as lições.
P.S. O que o livro não pôde contar: em 2024, aos 84 anos, Raimundo mora no tradicional bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, perto das residências de duas filhas, Lia e Ruth. E divide seu tempo entre leituras e debates sobre novos projetos com antigos e novos companheiros. Quando não está fazendo caminhadas pelas ruas do bairro, andarilho como sempre.
Clique aqui para baixar o livro na íntegra.
CONTRACORRENTE: A história de Raimundo Rodrigues Pereira
Por Julia Rabahie e Rafael Faustino
Trabalho de conclusão de curso para a Faculdade Cásper Líbero
São Paulo, 2013.
Está digitalizado e com acesso gratuito na internet.
Carlos Azevedo é pesquisador do Grupo de Pesquisa da Fundação Maurício Grabois sobre a Sociedade Brasileira
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG