Liz Filardi: Transformar o Brasil e o mundo
Diretora de comunicação da UJS, Liz Filardi apresenta uma tarefa para uma rede ampla e interconectada de diversos setores, que deve ser conduzida pela esquerda e com mobilização popular.
“Assim será o século XXI.
Em seus começos, haverá sombras e luzes, mais sombras do que luzes.
Depois, o quadro se inverterá.
A humanidade viverá tempos de grandes esperanças.”
João Amazonas
Encerrado o período eleitoral de 2024, é necessário que voltemos nosso olhar para a quadra histórica que vivemos no Brasil e no Mundo. Contudo, é fundamental que abordemos essa discussão com cautela e reflexão. Decretar qualquer sentença ou conclusão sem uma análise profunda do momento que vivemos é um ato de messianismo tolo, que pode nos afastar das verdadeiras estratégias necessárias para garantir o futuro do país que desejamos.
É preciso fazer um resgate de onde estamos inseridos em um cenário mundial de retrocessos, ao olhar para o mundo vemos o retorno de Trump a presidência dos EUA, com promessas anti-imigratórias e que pode vir a representar o fim da democracia liberal estadunidense, seguindo os passos do húngaro Viktor Orbán, suprimindo todos os controles ao seu poder pessoal; a tentativa “clássica” de golpes militares na Bolívia; o governo autoritário e antipovo de Milei na Argentina; o escalonamento dos bloqueios à Cuba; os ataques israelenses cada vez mais intensificados à Palestina e o aumento das tensões bélicas ao redor do mundo.
No Brasil, estamos inseridos em um contexto de retomada dos setores populares ao comando do país que demonstra melhorias, mesmo que ainda tímidas, com relação aos 6 anos anteriores (governos Temer e Bolsonaro), onde enfrentamos as tentativas golpistas e o Congresso mais conservador da história. As melhorias nas taxas de desemprego (no trimestre encerrado em agosto de 2024, a taxa de desemprego caiu para 6,6%, essa é a menor taxa para um trimestre desde 2012 – IBGE) e maiores investimentos nos programas sociais, como Bolsa Família, Minha casa Minha vida e Pé de Meia, por obviedade não podem ser desconsiderados quando analisamos um país que está na tentativa de retomada dos eixos e controle social, mas não podemos cair no equívoco de utilizar somente elas como fatores preponderantes para o debate. Parafraseando o Deputado Federal Orlando Silva (PCdoB), em artigo à Carta Capital: “Será que, para milhões de pessoas, a precarização chegou a níveis tais que passou a ser impossível viver com dignidade apenas com os rendimentos do trabalho?”
Apesar das melhorias pontuais nas taxas de desemprego e inflação, as políticas fiscais adotadas, com foco no equilíbrio orçamentário e na contenção de gastos, refletem um compromisso com a agenda neoliberal que historicamente tem aprofundado as desigualdades. A austeridade, em sua essência, não resolve as disparidades estruturais do país e muitas vezes acaba por fragilizar ainda mais os serviços públicos essenciais, como saúde e educação. A crítica feita por economistas como Antônio Corrêa de Lacerda e Ladislau Dowbor é clara: a austeridade, ao invés de gerar crescimento, tem como efeito o aumento da recessão e a perpetuação de um modelo de exclusão social, que afeta principalmente as camadas mais vulneráveis da população. Nesse sentido, a deputada federal Daiana Santos (PCdoB) em artigo para o Jornal Sul21, reflete sobre o atual momento político e econômico e aponta que “a adoção de políticas fiscais restritivas, sem um compromisso real com o desenvolvimento social, não só empobrece a população, mas inviabiliza a construção de um futuro mais justo para todos”.
As espessas marcas do neoliberalismo na nossa sociedade nos deixam com um forte legado de desigualdade, precarização do trabalho e desmantelamento de políticas públicas, exacerbando as dificuldades enfrentadas pela população. A priorização do lucro em detrimento do bem-estar social, resultam no aumento de empregos informais, que convenientemente com a “plataformização” das relações de trabalho jogam os trabalhadores cada vez mais para a esfera da individualização – de acordo com números da PNAD Contínua do IBGE, em 2023, o Brasil tinha 2,1 milhões de trabalhadores por plataformas e um estudo realizado pelo Sebrae em conjunto com a Associação Nacional de Estudos em Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas, mostrou que o País, em 2024, tem nada menos que 42 milhões de empreendedores.
Essa dinâmica fragiliza a organização coletiva e nos impõe a necessidade de produzir saídas e soluções que retomem a coletividade, não somente através dos setores e movimentos sociais, mas principalmente, através do governo eleito pelo programa popular. Construir e perseverar em um projeto nacional de desenvolvimento que resgate o papel de indústria, dê centralidade à ciência, tecnologia e inovação, alavanque o crescimento econômico e gere emprego, não somente os formais, mas também com linhas de crédito que fomentem o empreendedorismo de forma simplificada e desburocratizada.
Para que a transformação social se concretize, é preciso mais do que uma aliança pragmática que garantiu a derrota do Bolsonarismo; é necessário um projeto de sociedade coerente, que tenha nas lutas populares sua verdadeira base de sustentação e que não se submeta às pressões de setores conservadores ou centrados nas trocas de poder. Ao nos render a isso, corremos o risco de perpetuar práticas que não só diluem as promessas eleitorais, como também garantem a continuidade de uma lógica política que favorece os interesses das elites em detrimento das verdadeiras necessidades do povo. Seguindo a proposta de Marta Harnecker, não podemos nos limitar a reformas pontuais, mas devemos sintetizar as necessidades concretas da população, enquanto apontamos para uma transformação estrutural mais profunda. Podemos ser flexíveis, mas a coerência com a construção de um novo modelo de desenvolvimento sustentável e popular precisa ser o foco.
É imperativo que se compreenda o peso histórico das escolhas econômicas. A busca por um modelo de desenvolvimento que não dependa apenas de reformas fiscais limitadoras, mas que também se baseie em investimentos estratégicos nas áreas de educação, saúde, infraestrutura e empreendedorismo, é fundamental para garantir não apenas a recuperação econômica, mas uma sociedade mais justa. Para isso, será necessário articular uma agenda que combine crescimento e equidade, uma transformação que envolva a mobilização popular e a construção de uma relação mais estreita entre os movimentos sociais e o governo. O fortalecimento da organização social e das políticas públicas, será crucial para reverter o legado de precarização e desigualdade imposto pelo neoliberalismo e dar início a um novo ciclo de desenvolvimento no Brasil.
A história nos ensina que a mobilização, o diálogo com a sociedade civil e a construção de alianças são essenciais para nos fortalecer. Nesse sentido, o movimento social deve ser encarado como o motor da transformação, indo além das reformas superficiais e apontando para a construção de um novo modelo de sociedade. Se, em outros momentos, nossa principal função foi a resistência e o enfrentamento aos ataques promovidos por governos descomprometidos com os direitos da população e a manutenção de conquistas já garantidas, hoje é preciso avançar como a vanguarda da transformação estrutural que o Brasil e o mundo tanto necessitam. Devemos ser capazes de articular uma agenda política que confronte os interesses das elites, ao mesmo tempo em que apresentamos, na prática, alternativas concretas para a superação da desigualdade, da precarização do trabalho, da concentração de riqueza, da justiça climática e da segurança pública, promovendo, assim, uma verdadeira mudança nas estruturas sociais e econômicas do país. Em resumo, movimento social, ao adotar uma postura propositiva e não apenas de resistência, pode ser um catalisador crucial para a implementação de soluções para os problemas enfrentados diariamente pelas camadas populares.
Neste momento, é fundamental que os movimentos sociais, juntamente com diversos setores da sociedade, se unam para garantir soluções abrangentes e eficazes. A tarefa de transformar o Brasil e o mundo não deve depender exclusivamente de um único ator, seja o Estado ou os movimentos sociais, pelo contrário, é fundamental integrar diferentes setores em uma rede ampla e interconectada, onde cada um contribua com suas particularidades. Os movimentos sociais, as instituições, a universidade, a ciência, a tecnologia e a inovação, além da mídia contra-hegemônica e as entidades de solidariedade internacional, representam agentes diversos que podem não apenas enfrentar os desafios de maneira mais eficaz, mas também gerar soluções inovadoras. Por meio dessa articulação entre os diversos agentes e a mobilização permanente da esquerda, conseguiremos criar uma base sólida para a construção de um novo modelo de sociedade que queremos.
“Sem luta não há revolução […]
o marxismo-leninismo nos dá a teoria;
A luta nos dá a vitória”
Fidel Castro
Liz Filardi – Diretora de Comunicação da UJS.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.