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Memória e Verdade: a violência contra as mulheres na ditadura argentina

30 de dezembro de 2024
Na antiga Escola Superior de Mecânica da Armada, a Esma, passaram 5 mil dos 30 mil presos desaparecidos entre 1976 e 1983 na Argentina. Atualmente, o local funciona como um museu da memória e da verdade.

Na antiga Escola Superior de Mecânica da Armada, a Esma, passaram 5 mil dos 30 mil presos desaparecidos entre 1976 e 1983 na Argentina. Atualmente, o local funciona como um museu da memória e da verdade.

MULHERES DA ESMA

Visitar a Ex-Escuela Mecanica de la Armada – a famigerada ESMA , hoje Museu de La Memoria ESMA, em Buenos Aires – foi uma tarefa que eu e minha companheira de viagem nos propusemos quando fomos à Argentina para um evento médico. Aproveitei e mandei uma carta eletrônica (anacronismo para e-mail) para a sede das “Abuelas de la Plaza de Mayo”, que está atualmente localizada num dos 38 prédios da ESMA, para solicitar uma visita guiada que foi prontamente aceita.

Naquele local, como a maioria das pessoas sabem, funcionou um dos maiores centros clandestinos de detenção, tortura e extermínio não apenas da infame ditadura empresarial e militar da Argentina, mas de todo o mundo.                                                           

Eu e minha companheira de viagem, claro, sabíamos que não iriamos para ver um desses shows de tango para inglês (e brasileiro) ver. Preparamo-nos espiritualmente, ambos médicos, e acreditávamos que a pele curtida pela profissão garantiria o controle de nossas emoções. Amarga fantasia!

O conjunto de prédios com cerca de 17 hectares fica na Avenida del Libertador, não distante o Monumental de Nuñez, estádio do River Plate, que em 1978 recebeu a final da Copa do Mundo da FIFA. Logo entendemos que enquanto os ditadores Masera e Videla brigavam para ver quem entregaria o troféu de campeão e os torcedores emitiam gritos ensurdecedores em gols de Mario Kempes, perto dali na ESMA, os gritos lancinantes dos torturados se tornavam inaudíveis.

Leia mais: Táki Cordás discute as sequelas físicas e psicológicas da tortura

O tour com um guia da casa, pelos prédios e alamedas arborizadas, cruzando com posters exibindo fotos e história de vítimas é muito elucidativo, completo e totalmente angustiante. Imagina-se que apenas nesse centro de tortura passaram mais de 5 mil pessoas e apenas 200 sobreviveram. A atmosfera de morte sente-se na alma, e nossos olhos quando se buscavam enquanto caminhávamos, confirmavam que todos o sentiam.

O pequeno hospital e uma maternidade, não nos enganemos, faziam tudo menos salvar e trazer ao mundo vidas jubilosas. Além de prolongar sofrimentos, ajudavam a matar e dar à luz a crianças, que as mães nunca mais veriam, já que eram dadas em doação à agentes do regime.

As informações do que ali ocorria não nos surpreendia, mas duas informações chamaram a atenção, em particular. A primeira já conhecida, mas que merece uma reflexão, é a predileção pela tortura sexual na mulher. A segunda chamou-me a atenção em particular, a afirmação de que por vezes após ser estrupada barbaramente e seviciada (por longo tempo) sem nada ter informado, uma presa era solta. Sim, de modo inopinado, uma mulher era solta sem entender o porquê e temendo algo mais bárbaro ainda. Como psiquiatra, pensei: “tem algo muito errado nisso, algo cruel disfarçado de generosidade”. E tinha.

A VIOLÊNCIA CENTRADA NOS ORGÃOS SEXUAIS.

A forma de violência exercida sobre o corpo feminino nos centros de tortura, pouco importa onde, reproduz com o máximo de crueldade o esquema social vigente baseado no patriarcado, na hierarquia homem-mulher. Nos centros de tortura, o patriarcado tem seu papel levado às últimas e mais punitivas instâncias de poder. Muitas dessas mulheres argentinas relatam que por não corresponderem ao papel de boas donas de casa e mães eram chamadas de “putas”. Imediatamente desnudada ao chegar ao local, o que imediatamente destruía a dignidade da mulher, passava a ouvir comentários sobre seu corpo. Uma das sobreviventes em um dos muitos documentários existentes, presa aos 17 anos, dizia que zombavam de seu corpo, dizendo-o não atraente. Não duvido que alguém lhe dissesse que era tão feia que “não merecia nem ser estuprada”, frase que um psicopata é capaz de dizer em várias línguas.                                                                    

Ao dirigir a tortura específica para os órgãos sexuais da mulher, buscavam os militares argentinos reestabelecer a hierarquia masculina através da retirada da força de uma mulher para reduzi-la a seus órgãos sexuais. Modo contínuo da fantasia perversa e sádica era gritar que no fundo, sendo puta, ela estava gostando de ser estuprada por muitos homens e apanhar. Através da violência sexual se pretendia destruir psíquica e fisicamente essas mulheres por terem transgredido o papel sagrado da mulher. Aniquilar a subjetividade de uma mulher era nos últimos anos da ditadura argentina “recuperá-la para ser inserida na sociedade”. Deveria adotar modos sérios e recatados, ainda com femininos, com leveza e uma certa ingenuidade tola. Está descrito no livro de Leila Guerriero, do qual vamos falar mais adiante, que um psiquiatra foi chamado para interrogar essas mulheres e determinar se seu psiquismo era passível de “cura”.

Da mesma forma, com a postura masculina crudelíssima, busca-se deixar claro que o espaço da mulher é o privado e o espaço público pertence apenas ao homem. Devemos lembrar que o corpo da mulher é sempre um receptáculo de memória e que as cicatrizes psíquicas bem como as do corpo não desaparecem, levando a doenças físicas e dificuldades de confiar e se relacionar e física e sexualmente. Que outro sádico exemplo de punição por serem “putas” e não serem e não poderem ser boas mães do que ter o filho tomado? O assunto merece uma tese e existem várias, a mulher como butim de guerra acontece desde tempos imemoriais. Mas, paramos esse tópico por aqui.

SER SOLTA DO INFERNO PARA CAIR EM OUTRO INFERNO

A ideia de ser ver mulheres (e homens) sem motivo aparente serem liberadas da ESMA, me perturbou. Corri para comprar em Buenos Aires o que encontrasse de literatura sobre a ESMA e as mulheres ali seviciadas. Trouxe de Buenos Aires alguns livros para consultar e que coloco nas indicações de leitura. Um dos livros que mais me angustiou foi o “Putas y Guerrilleras” de Miriam Lewin & Olga Wornat, e muitas das informações aqui expressadas estão nele.                                                                  

Há poucos dias vi a indicação da lista dos melhores livros de 2024, eleitos pelo caderno de literatura “Babelia”, do jornal espanhol o “El Pais”. Curiosamente o livro colocado em 1.o lugar é “La Llamada” da jornalista argentina Leila Guerriero que relata a experiência dolorosa de Silvia Labayru. Publicado pela editora espanhola Anagrama, não há edição brasileira ainda e comprei o livro no formato kindle. Silvia, foi levada em 1976, com 20 anos de idade, grávida de 5 meses à ESMA, onde foi vítima de torturas, estupro e colocada na função de escrava sexual de alguns oficiais. A prática de abuso das prisioneiras era estimulada pelo temido Jorge Acosta (El Tigre), capitão de corveta, chefe e cérebro daquele campo de concentração. Era Acosta quem decidia aqueles que “iam para cima”, ou seja, eram atirados sedados de um avião para morrer no Rio da Prata, os sórdidos “voos da morte”.

Cerca de um ano e meio depois foi posta em liberdade após as barbáries habituais, sem qualquer razão conhecida. Silvia Labayru diz em várias entrevistas e no livro, que acreditou que o “infernos tinha acabado, e não acabou”. Por que está viva?  O que fez para viver?  Foi delatora, colaborou e traiu seus companheiros? Tornou-se amante de algum militar? Eram algumas das perguntas que lhe faziam e se faziam pelas suas costas; passou a tornar-se suspeita, evitada e repudiada pelos seus antigos companheiros de militância.                                                              

Mudou-se para a Espanha com seu filho pequeno, quando reencontrou seu marido, também militante refugiado. Era evidente, conta ela, que o marido (hoje ex-marido) achava sua presença incômoda, e embaraçosa diante dos outros. Ela e outras sobreviventes usam o termo “rancor” para definir o sentimento que alguns familiares de desaparecidos lhe tinham.  O que ela fizera, inclusive sexualmente para estar viva ali, parecia questioná-la o marido todos os dias. Outras sobreviventes da ESMA relatam a mesma experiência, o marido entendia aquilo como o pior dos golpes e a mais humilhante das derrotas, ter uma mulher puta e traidora. Leila Guerriero gravou quase 100 entrevistas entre maio de 2021 e novembro de 2022, entrevistando Silvia, familiares e conhecidos, para escrever o livro.

O livro revela as ressalvas de Silvia com a luta armada dos Montoneros; a suposição de ter sobrevivido por ser bonita e ter servido como escrava sexual; o fato de participar, forçadamente afirma, de uma operação contra “las Madres de Mayo”. Nessa operação da repressão, infiltrou-se fingindo ser irmã de um desaparecido, o que levou à prisão e desaparecimento de 10 pessoas, fato que foi conhecido por muitos ex-companheiros.

Nesse livro doloroso, ouvem-se vozes que a condenam e outros que a absolvem. A meu ver, é impossível o julgamento de uma jovem mulher atirada num inferno, à espera da morte e privada de tudo, inclusive da filha recém-nascida. Tenho, igualmente, dificuldade de concordar com o uso de termos como “manteve relações sexuais” ou “colaborou” para descrever comportamentos da personagem. Expressões como “relação” ou “colaboração” implicam em liberdade e possibilidade de escolha, algo inimaginável para uma mulher reduzida à objeto dentro do mais perverso submundo patriarcal.

Para terminar, gostaria de relembrar o filme “Pasqualino Sete Belezas” (1975) da diretora Lina Wertmuller. Pasqualino, um malandro napolitano recolhido a um campo de concentração nazista, tenta seduzir sexualmente uma das guardas para conseguir sobreviver. A cena mostra Pasqualino tendo sucesso, e embora quase desfalecido, esforçando-se para satisfazer sexualmente a carcereira, uma mulher muito longe de ser atraente, bruta e mal-encarada. Bem-sucedido, é salvo da morte. A plateia, lembro-me à época, teve um momento de catarse orgástica e as gargalhadas saudavam o herói, um verdadeiro macho. Qual seria a reação da plateia se fosse uma mulher que usasse de sua feminilidade para seduzir seu carrasco e evitar morrer?

INDICAÇÕES DE LEITURA           

1. SER MUJERES EM LA ESMA II. Tiempo de encontros. Publicado pelo “Museo Sitio de Memoria ESMA” e pela “Secretaria de Derechos Humanos” s/data.

2. Miriam Lewin & Olga Wornat , Putas y Guerrilleras : Crímenes sexuales en los centros clandestinos de detención. Las historias silenciadas. Una guerra sin fin. Buenos Aires, Booket, 2024.

3. Aurélia Gafsi, Marina Franco y Claudia Feld (dir.): ESMA. Represión y poder en el centro clandestino de detención más emblemático de la última dictadura argentina. Buenos Aires, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, 2023.

4. Leila Guerriero : La Llamada. Madrid, Anagrama, 2024.

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Táki Athanássios Cordás é Coordenador da Equipe Multiprofissional de Assistência do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP. Coordenador do Programa de Transtornos Alimentares (AMBULIM) do IPQ-HCFMUSP. Prof. dos Programas de Pós-Graduação do Departamento de Psiquiatria da USP, do Programa de Neurociências e Comportamento do Instituto de Psicologia da USP e do Programa de Fisiopatologia Experimental da FMUSP. Pós-Graduação (latu-sensu) em Filosofia (PUC-RS).

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.