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    América Latina

    Trump usa guerra ao narcotráfico como pretexto para militarizar América Latina

    Nova ordem executiva classifica cartéis e grupos criminosos como “terroristas”, ampliando o intervencionismo dos EUA e ressuscitando velhas estratégias imperialistas.

    POR: Thiago Rodrigues

    Entrada da prisão norte-americana na Baía de Guantánamo, Cuba.
    Entrada da prisão norte-americana na Baía de Guantánamo, Cuba. Kathleen T. Rhem/EUA Departamento de Defesa

    A ‘guerra às drogas’ de Trump – A posse de Donald Trump para seu segundo mandato como presidente dos Estados Unidos da América, em 20 de fevereiro, foi marcada por decisões que geraram controvérsias globais. Muitos acontecimentos desse dia ganharam ampla e imediata repercussão, como a saudação nazista do bilionário Elon Musk e o pacote de decretos assinado por Trump que incluiu medidas contra pessoas LGBTQIA+, a retirada do país dos acordos climáticos de Paris e da Organização Mundial da Saúde, além das decisões contra imigrantes ilegais, especialmente mexicanos.

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    Uma das ordens executivas menos comentadas, no entanto, interessa diretamente a nós, latino-americanos/as. Trata-se daquela que declarou como “organizações terroristas estrangeiras” os “carteis” mexicanos e os grupos narcotraficantes Mara Salvatrucha, baseada em El Salvador, e Tren de Aragua, originária da Venezuela. Este documento é muito significativo tanto para compreender quais são as tendências securitárias do novo governo Trump, quanto para vislumbrar como podem ser as suas relações com a América Latina.

    Novidade, pero no mucho

    Os EUA preocupam-se por identificar e estabelecer políticas contra “grupos terroristas” desde, pelo menos, os anos 1960. Até a década de 1980, eram considerados terroristas grupos armados radicais internos e estrangeiros, sendo que para estes, prevalecia a lógica da Guerra Fria, ou seja, se uma organização era ou não associada a movimentos revolucionários de esquerda.

    Ao longo dos anos 1980, foram as guerrilhas comunistas que passaram a ser tidas como terroristas, ou melhor, como narco-terroristas, sendo acusadas pelos EUA e governos da América Latina de financiarem suas atividades com o tráfico de cocaína. Com o final da Guerra Fria, Washington não deixou de classificar como terroristas os grupos armados que atrapalhassem a consumação de seus interesses geopolíticos e de expansão do capitalismo por todo o globo.

    Em 1996, durante o governo Clinton, foi criada a Lista de Organizações Terroristas Estrangeiras (FTO, na sigla em inglês) para organizar os grupos contra os quais haveria ações de interceptação de transações financeiras, confisco de bens, vigilância de comunicações e ações armadas. Após os atentados de setembro de 2001, esta lista e outras medidas relacionadas passaram a focar no chamado “terrorismo fundamentalista islâmico”.
    Trump, agora, utiliza esse conjunto de leis para declarar a alguns grupos do crime organizado latino-americanos como “terroristas”. Há novidade nisso? Sim e não.

    De um lado, pouco muda com a atual ordem executiva. Desde que o republicano Richard Nixon declarou “guerra às drogas”, em 1971, o narcotráfico tem sido tratado como uma ameaça à “segurança nacional”, à “ordem social” e à “saúde” dos estadunidenses. Por estas razões, os grupos narcotraficantes estrangeiros – importante frisar – deveriam ser combatidos nos seus países de origem pelas forças armadas dos países latino-americanos convertidas em “polícias militares anti-narcotráfico” financiadas pelos EUA e armadas pela indústria bélica estadunidense. Desde então, nenhum presidente, democrata ou republicano, alterou esta lógica básica

    Por outro lado, há uma novidade. A classificação explícita de grupos do narcotráfico/crime organizado como “terroristas” abre possibilidades ampliadas de perseguição e de repressão a tais organizações em território dos EUA e na América Latina. Isso acontece porque passam a ser vinculados ao mais poderoso instrumental legal e militar contemporâneo: o da “guerra contra o terrorismo”.

    Com base nesta “guerra”, os EUA e seus aliados, suspenderam direitos fundamentais e garantias individuais dos seus próprios cidadãos, aumentaram os gastos militares, invadiram países, atropelaram o direito internacional e a ONU, construíram prisões que são verdadeiros campos de concentração. A “guerra às drogas”, apesar das suas múltiplas violências, nunca assumiu esta dimensão. Agora, não obstante, a ordem executiva sinaliza que a “guerra contra as drogas” encontrou de vez com a “guerra contra o terror”.

    Um inimigo para chamar de seu

    Se o grande inimigo da Guerra Fria para os estadunidenses era o “comunista”, a partir dos anos 2000, ele passou a ser, nessa ordem, o “terrorista islâmico” e o “narcotraficante”. A ordem executiva de Trump sustenta que narcotraficantes são tão perigosos quanto terroristas para a segurança nacional e pública (“security”), para a estabilidade social e para saúde individual e coletiva dos EUA (“safety”). Segundo o documento, eles não apenas ameaçam os estadunidenses, mas assombram todo o Hemisfério Ocidental (Section 1, item iii).

    Evocações à defesa do “Hemisfério Ocidental” contra um inimigo invasivo, malévolo e astuto fazem lembrar o argumento securitário fundamental da Guerra Fria. Este argumento foi atualizado com as guerras contra o “terror” e contra as “drogas”; as duas que substituíram a antiga “guerra contra o comunismo”.

    Como bem sustentam os teóricos da securitização, um “problema” só encontra meios para ser atacado pelo Estado com todos os recursos de poder legais, militares e econômicos quando existe uma ampla e difundida legitimação por parte da maioria de uma sociedade. Para que a cidadania aceite abrir mão de direitos e, muitas vezes, deseje abertamente que o Estado seja o agente de violência extrema – como assassinatos, desaparições, tortura, genocídio, etc. – é preciso que o medo, os ódios e preconceitos de uma sociedade sejam devidamente ativados.

    Nos EUA – como na América Latina –, o “narcotraficante” cumpre com esses quesitos. O estereótipo do traficante reúne as características que o trumpismo mais odeia: são estrangeiros ou imigrantes, latinos e/ou negros e negociam com drogas perigosas. São inimigos facilmente aceitáveis para eleitores que deram carta branca para que Trump trave quantas guerras forem necessárias para livrar os estadunidenses brancos e conservadores de todos os males que os afligem.

    As medidas de Trump contra imigrantes, em especial mexicanos, têm total conexão com a ordem executiva contra os grupos do crime organizado. Não é à toa que ela cite os “cartéis mexicanos”, ainda que não nomeie nenhum deles, deixando à Secretaria de Estado que proponha uma lista no prazo de quatorze dias. A fronteira com México já foi sobre-militarizada e um estado de emergência nacional deu base legal para ações excepcionais de detenção, deportação, ocupação territorial, entre outras medidas.

    O fato de ter mencionado nominalmente a salvadorenha Mara Salvatrucha (MS-13) e o Tren de Aragua da Venezuela indica coisas diferentes. A MS-13 nasceu na costa oeste dos EUA nos anos 1980 como um grupo armado de jovens marginalizados de origem salvadorenha. Os governos Reagan e Clinton levaram adiante uma política de deportação de seus membros. Resultado: a partir dos anos 1990, a MS-13 passou a existir tanto nos EUA, quanto em El Salvador.

    Com o fortalecimento dos grupos narcotraficantes mexicanos a partir dos anos 2000, a MS-13 ganhou importância como atravessadora da cocaína que vinha da Colômbia em direção aos EUA. A partir de 2021, o presidente de El Salvador Nayib Bukele, herói do punitivismo neoliberal latino-americano, declarou a sua guerra pessoal contra o crime organizado, com foco na MS-13. A ordem executiva de Trump não parece ser uma medida de intimidação a Bukele – de quem Trump diz ser um admirador –, mas um aceno de que as políticas de “mano dura”, altamente militarizadas e de encarceramento em massa continuarão sendo a tônica nos EUA da nova era Trump e que está será a sua aposta para a América Latina.

    Situação oposta relaciona-se com o outro grupo mencionado, o Tren de Aragua. Essa agrupação, nascida no sistema prisional da Venezuela, já se encontra ativa na Colômbia, no Panamá, no Equador, no Peru, na Bolívia, no Chile, na fronteira norte do Brasil e, mais recentemente, nos EUA.

    Ao identificar um grupo que tem a sua base em um país que Trump considera hostil – a Venezuela de Nicolás Maduro –, abre-se a possibilidade de que sejam tomadas medidas extras de vigilância e de confisco de bens e recursos venezuelanos no exterior e, até mesmo, pressões ou intervenções militares no país. Diferentemente de Bukele – tipo exemplar de presidente latino-americano para Trump –, a identificação como terroristas de grupos criminosos do México e da Venezuela colocam ainda mais na mira de Washington governos que, por razões distintas, são considerados inconvenientes pelo mandatário estadunidense.

    Geopolítica da “nova guerra fria”?

    Tornou-se senso comum na academia das Relações Internacionais afirmar que, após a Guerra Fria, em especial, após 2001, a América Latina deixou de ser uma preocupação geopolítica para os EUA. O fim da “ameaça soviética”, a hegemonia do neoliberalismo e a difusão de democracias liberais mais ou menos estáveis aconteceu ao mesmo tempo em que aumentou, para os EUA, a importância geopolítica e econômica do Oriente Médio e da Ásia. A América Latina, assim, passou a ser um “quintal” pouco turbulento para os EUA.

    Essa situação vem mudando gradualmente. Num primeiro momento, a relativa resistência dos governos sul-americanos da “maré rosa” aos interesses comerciais dos EUA, entre 2002 e 2016, gerou processos de aproximação de governos de centro-esquerda em iniciativas como a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Alternativa Bolivariana das Américas (Alba). Mesmo sendo processos heterogêneos, a “guinada à esquerda” na América do Sul chamou a atenção dos estrategistas estadunidenses.

    Este momento foi, em linhas gerais, enfrentado pelos EUA pela combinação de táticas. Diante do fracasso da proposta da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), os EUA promoveram acordos bilaterais de livre-comércio com países como Uruguai e Chile. Em termos de segurança regional, a presença militar dos EUA na região foi intensificada com medidas como a renovação dos acordos de uso de bases militares na Colômbia e a reativação da 5ª Frota da Marinha de Guerra dos EUA focada para o Atlântico Sul. E, para conter governos que ousavam pequenas movimentações com maior autonomia, houve a ingerência geralmente indireta e sutil que facilitou a concretização de golpes parlamentares embrulhados na forma de processos de impeachment.

    Leia também: Trumpismo faz corrida pelo controle global

    Exceções foram a Venezuela e Cuba que, contidas por embargos, não puderam efetivar um bloco realmente capaz de antagonizar os EUA. Não houve, portanto, necessidade de uma recuperação mais assertiva das preocupações geopolíticas dos EUA para com a América Latina.

    O cenário mudou com a consolidação do crescimento da presença da China na região, dominando as pautas de exportação e de investimento direto em países-chave como Brasil e Argentina, e em regiões como a América Central. A articulação política e econômica entre os latino-americanos e os chineses, viabilizada por iniciativas como a Nova Rota da Seda e/ou os BRICS, passou a efetivamente competir com os chamados interesses dos EUA abaixo do Rio Bravo.

    Donald Trump assina uma série de atos presidenciais, no primeiro dia do seu segundo mandato (21/01/2025). Foto: Casa Branca/Divulgação/Facebook

    Donald Trump assina uma série de atos presidenciais, no primeiro dia do seu segundo mandato (21/01/2025). Foto: Casa Branca/Divulgação/Facebook

    É neste contexto que a retórica nacionalista, xenófoba, militarista e protecionista de Trump volta à Casa Branca. Neste momento, e logo no seus dias iniciais, o segundo governo Trump concede a maior importância geopolítica à América Latina desde o final da Guerra Fria ao estender a classificação de “organização terrorista” a grupos do crime organizado transnacional latino-americanos.

    O Brasil pode ser abarcado neste processo? Afinal, temos o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), grupo que vem consistentemente aumentando a sua atuação transnacional, com presença já consolidada na América do Sul, África ocidental e Europa. A ordem executiva de Trump, sem dúvida, deixa aberta esta possibilidade. É possível que a atenção securitária dos EUA ressuscite uma especulação que foi ativa logo após os atentados de 11 de setembro de 2001: a de que haveria células jihadistas operacionais na Tríplice Fronteira Brasil-Argentina-Paraguai.

    Como esta região é chave para a dinâmica do crime organizado transnacional sul-americano, a nova Ordem Executiva de Trump poderá ser usada para justificar uma narrativa de “ameaça” no Cone Sul. No momento, no entanto, isto não parece próximo, pois para entrar no radar geopolítico trumpista é preciso mais do que contar com grupos do crime organizado transnacional como os do Brasil.

    É necessário somar elementos como ser um país onde os EUA vejam ameaças diretas aos negócios de suas empresas e o apoio a governos ou a grupos armados anti-EUA. Além disso, países assim devem contar com organizações criminosas que tenham um envolvimento visível na violência das ruas e fronteiras dos EUA e uma presença não-disfarçável no sistema financeiro do país. O PCC não está lá (ainda) e o Brasil não é um país com características anti-EUA, apesar da busca por autonomia da política externa de Lula.

    Agora, é esperar as recomendações do Departamento de Estado para saber quais organizações e países serão incluídos nesta “lista maldita”. De todo modo, a Doutrina Monroe 2.0 de Trump atualiza a agenda geopolítica dos EUA na América Latina ao incluir o combate ao crime organizado – e não apenas o narcotráfico – como alvo em destaque. Talvez o crime organizado seja para a “guerra fria” de Trump contra a China aquilo que as guerrilhas de esquerda foram para a Guerra Fria contra a URSS.

    Thiago Rodrigues é cientista político, professor associado no Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador no Niep-Marx/UFF, GENI/UFF, no PsicoCult/UFF e bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.

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