O antiestatismo da burguesia liberal – A burguesia é espontaneamente privatista: sua posição de classe se determina pela propriedade privada dos meios de produção, grandes, médios e pequenos. O Estado é público. Como a República. As modalidades mais mesquinhas e filisteias da mentalidade burguesa preconizam reduzir a função do Estado à manutenção da ordem pública, que elas identificam à defesa da propriedade. O peso político dessa mentalidade reacionária tende a crescer com os avanços da direita, embora nem toda a direita seja “anarco-capitalista”.
A utopia reacionária do Estado mínimo voltou ao centro da cena política do Cone Sul com a ascensão do ultraliberal Milei à presidência da Argentina. Demagogo agressivo, sem medo de proclamar chavões mofados, ele se dispôs a desmantelar tudo que na esfera pública excedia as funções repressivas da máquina estatal, mostrando para que serve a retórica “anti autoritária” e anti estatal da vulgata ideológica burguesa. Evidentemente, seu antiestatismo não vai a ponto de prescindir da polícia e de tropas de choque para dissolver manifestações de protesto. Declarou pretender dolarizar a Argentina, como já tentara seu predecessor Carlos Menem, de infausta memória. Conseguiu fazer baixar a inflação de 211,4% em 2023 a 111,87% em 2024, mas com um custo econômico e social elevadíssimo. Mais da metade da população argentina se encontra abaixo da linha da pobreza; 18% está reduzida à indigência. Mais uma vez confirma-se: Estado mínimo = pobreza máxima.
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Como assinalamos no artigo anterior (A ditadura e a estatização capitalista) a expectativa de que a ditadura militar desencadeasse uma privatização em larga escala das empresas estatais não se concretizou. Ao contrário. No suplemento anual intitulado “Quem é quem” (na economia brasileira), relativo a 1975, a revista econômica Visão apresentou uma classificação das 100 maiores empresas do Brasil durante o período 1968-1974, segundo a propriedade do capital. Neste período, as estrangeiras baixaram de 37 a 27; as nacionais ficaram entre 26 e 28 e as estatais avançaram de 37 a 45. Não foi, pois, em detrimento das empresas nacionais, mas das estrangeiras, que o capitalismo estatal avançou. Não obstante, como também mencionamos em A ditadura e a estatização capitalista, o ideólogo ultraliberal Eugenio Gudin lançou, no final de 1974, uma campanha contra a estatização da economia que teve forte apoio da alta burguesia paulista.
Quatro anos antes de Gudin, os banqueiros já haviam desencadeado protestos contra o avanço da “estatização” do crédito. Otávio Gouvea de Bulhões, outro liberal reacionário, que tinha sido ministro da Fazenda do ditador Castelo Branco, declarou à revista Visão de 6 de junho de 1970 que os bancos privados não podiam mais contar com depósitos a prazo “por causa da ingerência dos bancos estatais”. Daí a multiplicação de agências privadas para recolher depósitos de pequenos poupadores. O número dessas agências passou de 2.411 em 1950 a 5.820 em 1969. Isso explicaria, segundo Bulhões, o aumento do custo dos serviços bancários. Logo em seguida, Mundo Econômico (de julho-agosto 1970) publicou um grande estudo sobre “o avanço da estatização”, analisando sob múltiplos aspectos esse “fato inquietante”, particularmente a respeito da “estatização do crédito”. Com efeito, nada mais inquietante para os banqueiros e seus prepostos do que perder os ganhos de financiamentos à atividade econômica.
Os industriais não manifestaram apoio ao protesto dos banqueiros por uma razão muito simples. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), fundado em 20 de junho de 1952, quando Getúlio era presidente, financiava as empresas nacionais com juros bem inferiores aos do mercado de capitais. Em 1962, o BNDES financiava cerca de 2,2% da formação bruta do capital fixo no Brasil. No final de 1974, quando começava a campanha privatista, a participação do BNDES no financiamento do capital fixo passara a 8%. Só um estudo acurado do financiamento da indústria no momento em que Gudin lançou seu grito de guerra contra a estatização pode mostrar se os grandes industriais tinham ou não motivos econômicos para se juntar ao movimento. Parece-nos que foram sobretudo as dificuldades da balança comercial e do endividamento externo (legado de Delfim Neto, vale insistir), bem como a queda da taxa de crescimento da economia, que juntaram os setores de mais peso da burguesia na campanha privatista.
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Reforçando a campanha liberal, o jornal O Estado de São Paulo lançou uma série de onze grandes artigos sobre os “caminhos da estatização”, publicados de 16 de fevereiro a 2 de março de 1975. Os artigos examinam a presença do Estado nos diferentes setores da economia: sistema bancário, comunicações, transportes, mineração, siderurgia etc. Em campanha muito bem orquestrada, o jornal multiplicou as reportagens, entrevistas, investigações, artigos de fundo, editorias, documentos e tomadas de posição do governo e do patronato. Os círculos dirigentes da grande indústria aderiram à campanha: a FIESP difundiu um comunicado, na comemoração de 7 de setembro de 1975, lamentando que o Estado estava intervindo “em setores tradicionalmente deixados à iniciativa privada”. O Estado de São Paulo, com sua tenacidade reacionária, retomou a campanha publicando mais uma série de artigos de 4 a 7 de março de 1976. Os títulos dispensam comentários: “Maior que a Petrobrás, só o Brasil” (5/3); “Os tecnocratas no poder” (7/3). Além de Geisel, o principal “tecnocrata no poder” era o ministro da Planificação Reis Veloso. Este respondeu às críticas observando que as empresas estatais, embora dispusessem de 49,5 dos ativos em uma amostragem de 1.000 empresas grandes e médias, tinham um faturamento de apenas 23% do total, porque operavam em setores que exigiam fortes investimentos fixos com lenta maturação do capital investido.
A importância, ontem e hoje, do debate sobre a estatização no capitalismo parece-nos suficientemente evidente para dispensar argumentos comprobatórios. Ainda assim, não deixa de ser interessante assinalar que Werner Baer, um dos mais prestigiosos “brasilianistas” estadunidenses, consultor da Ford Foundation e, portanto, insuspeito de qualquer simpatia pelo estatismo, publicou em Visão (42),4, 26 de fevereiro de 1973, o artigo “Uma visão de fora: como e porque houve o ‘boom’ econômico de 1968”. Ele ali declara categoricamente que os investimentos do setor estatal em energia elétrica, siderurgia, petroquímica, rodovias e construção “constituíram os principais fatores do ‘boom’ econômico (de 1968-1972)”, acrescentando que “o comportamento eficaz e agressivo das empresas governamentais […] constitui a chave do ‘boom’ ” .
João Quartim de Moraes é professor universitário, formado em Filosofia e em Direito na Universidade de São Paulo. Em 1968-69 participou da resistência clandestina à ditadura militar. Passou os anos setenta exilado na França. Após a anistia, voltou ao Brasil. Professor de Filosofia na Unicamp Publicou vários livros e muitíssimos artigos no Brasil e na Europa. É pesquisador sênior do Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Seus temas centrais: história do pensamento político, materialismo antigo e moderno, marxismo, instituições brasileiras.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.