Em certo sentido, pode tornar-se, para o leitor, repetitivo e até cansativo afirmar que vivemos numa crise de natureza conjuntural e, mesmo, estrutural — na política, na economia, no aumento da miséria e da desigualdade social, no uso indevido de posições na máquina pública para cometer atos de corrupção —, pairando sobre essas mazelas, e condicionando-as, uma crise em profundidade, de organização política do Estado nacional brasileiro. Mas, infelizmente, essa é a realidade sob a qual vivemos no Brasil e em escala mundial.
Para não ser dispersivo, procuro, neste breve artigo, focar na busca de um caminho que nos permita acumular forças para superarmos essas travas ao nosso desenvolvimento, na busca de sermos uma Nação soberana, desenvolvida, democrática e socialmente mais inclusiva e justa.
Saliento que, na atualidade, as manifestações dessa crise multifacetada que vive nosso país não são um acontecimento fortuito ou que só agora manifesta suas mazelas, mas sim a continuidade lógica de um processo de desmonte de um Estado de Direito liberal-democrático, com características sociais, que nos foi legado pela Constituição de 1988 e que se arrasta por décadas.
Simpósio reúne vozes progressistas por um novo projeto nacional
Em um pequeno, mas importante livro, Do País Constitucional ao País Neocolonial (Malheiros, 1999), o conceituado jurista cearense Paulo Bonavides — analisando as condições sociopolíticas e jurídicas de nosso país na última década do século passado e, diante da gravidade da situação, como por ele era vista (que tinha, como cerne de suas críticas e preocupações, a aprovação do instituto da reeleição, em junho de 1997, por FHC), a qual considera como a realização de um golpe institucional contra a Constituição vigente, além de trazer lúcidas observações sobre o predomínio da nova ordem neoliberal que reinava nas relações internacionais — afirma:
“Se a crise persiste, e não é debelada, quem nos afiança amanhã que ao Brasil constitucional não sucederá outra vez o Brasil dos golpes de Estado e das ditaduras, ou seja, da crise constituinte perpétua? Este o fantasma que ronda a nação brasileira às vésperas do Terceiro Milênio.” (Bonavides, 1999, p. 40)
Bonavides, com grande lucidez e aguda perspicácia política, demonstra que o Brasil, a continuar a ser dirigido por elites carentes de um projeto de Nação soberana, desenvolvida e socialmente mais justa — e, mais que isso, com coragem cívica para implementá-lo — caminhará para uma descaracterização de sua existência como Nação. Dos anos 1990 aos dias atuais, pode-se afirmar, sem medo de errar, que essa caminhada por ele prevista segue a passos largos. Mudaram os atores, mudaram os centros de poder, ressurgiram com força ideias regressistas e reacionárias, mas o caminho que segue a evolução da nossa situação sociopolítica e de construção nacional soberana continua a ser — e, em certo sentido, se encontra em condições mais graves — aquele previsto pelo professor cearense.
Em contrapartida, faltam, na atualidade, às forças políticas do campo progressista — que, por vocação e obrigação, deveriam resistir a esse processo de desestruturação nacional em curso — programas e lideranças à altura dos desafios que nos são impostos. Dessa maneira, ficam em constante defensiva estratégica e tática em sua atuação política, levando à descrença das massas do povo em relação à atividade política e aos políticos em geral, abrindo, desse modo, caminho não só para a continuidade da desestruturação da Nação, mas também permitindo que a direita e a extrema-direita civis sejam as protagonistas desse processo.
O desafio que está posto, de forma inarredável, às forças progressistas do país — democratas, socialistas, comunistas etc. — é unirem-se em uma ampla Frente de Salvação Nacional que, em torno de um programa político conciso e avançado, proponha realizar reformas políticas estruturais que nos permitam sair desse processo destrutivo da Nação, por meio do qual os setores reacionários e conservadores de nossa sociedade, mancomunados com interesses estrangeiros espúrios, procuram nos conduzir a uma situação de subordinação neocolonial.
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Sim, a correlação de forças e a consciência política existentes na sociedade não estão maduras para levar à frente tal empreitada, dirão, não sem razão, alguns militantes e dirigentes políticos dessas forças elencadas. Porém, a história nos ensina que, ao lado da tragédia social que se abate sobre as massas despossuídas e exploradas pelo capital, sempre existe, em latência, uma resistência — em certo sentido instintiva — dos setores explorados que, ao encontrarem caminhos que lhes toquem o coração e iluminem suas mentes, reagem e se alinham com propostas que os levem a superar a situação de crise em que vivem.
Afirmar que vivemos em uma época de descrédito da política e dos políticos é um certo lugar-comum, repetido à exaustão por setores reacionários, com grande cobertura dos meios de comunicação. Mas, na realidade, o descrédito acima referido diz respeito às políticas de cunho neoliberal e reacionário implementadas em nosso país há décadas, que conduziram a essa situação de crise continuada que vivemos.
Assim, volto a reafirmar a necessidade de levantarmos propostas de reformas políticas estruturais que, tendo por fio condutor a afirmação soberana da Nação e sendo capazes de mobilizar os sentimentos de nacionalidade do povo brasileiro, se pautem por: a busca de um desenvolvimento econômico que, fugindo da camisa de força dos dogmas neoliberais, seja acelerado e inclusivo, gerador de empregos, ambientalmente sustentável; e por um sistema de políticas públicas nas áreas da saúde, educação, proteção aos vulneráveis — ou seja, voltadas ao atendimento imediato das camadas mais necessitadas.
À guisa de exemplo, e sem ter a pretensão de abranger todos os aspectos de tão complexo problema, faço algumas propostas, na esperança de que, em torno delas, se procure organizar um debate com as forças comprometidas com a construção da Nação e com a superação das mazelas sociais que nos afligem.
À guisa de exemplo, e sem ter a pretensão de abranger todos os aspectos de tão complexo problema, faço algumas propostas, na esperança de que em torno delas se procure organizar um debate com as forças comprometidas com a construção da Nação e de superação das mazelas sociais que nos afligem.
- Uma Reforma Política que tenha como eixo uma Reforma Constitucional, na qual se recupere a letra e o espírito da primeira edição da Constituição Federal de 1988. Pois essa Carta Constitucional encontra-se desfigurada de suas origens, tendo em vista que, em seus 36 anos de existência (1988–2024), sofreu 135 emendas em seu texto original, as quais, salvo honrosas exceções, foram todas de caráter regressivo e reacionário.
- Uma Reforma Econômica que, restabelecendo os parâmetros estabelecidos pela Constituição de 1988 em sua origem:
— restabeleça o conceito de Empresa Brasileira de Capital Nacional;
— retire as facilidades introduzidas na Carta Constitucional ao processo de privatização das empresas estatais estratégicas para nossa soberania e segurança nacionais;
— abra uma discussão sobre a reestatização de empresas estratégicas, como Eletrobras, Vale do Rio Doce, Companhia Siderúrgica Nacional, entre outras;
— e, com destaque, implemente uma política de estímulo estatal e privado à criação de um parque industrial de última geração, onde se produzam os elementos que permitam termos uma indústria tecnológica desenvolvida, como: indústria de chips, de computadores de última geração, de insumos básicos para a indústria farmacêutica, de foguetes lançadores de satélites (de baixa e alta órbita) e de satélites de variados tipos e funções, etc. - Que sejam retomados os princípios legais que garantiram os direitos trabalhistas estabelecidos no país a partir da Constituição de 1937, reafirmados na de 1946 e consolidados na de 1988.
- Reformas que, no essencial, recuperem o espírito e a letra da Constituição de 1988 no que tange às relações entre os poderes centrais da República — Executivo, Legislativo e Judiciário —, pondo fim à instabilidade hoje reinante nas relações entre esses poderes, particularmente com a exorbitância de função de que se autoimbuiu o Poder Legislativo.
Ronald Freitas é membro do Comitê Central do PCdoB e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Estado e Instituições da FMG.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.