Natural de Amarante (PI), comunista negro, historiador, sociólogo, jornalista e poeta, Clóvis Moura (1925-2003) é autor de 26 livros, além de uma série de artigos publicados em periódicos. No seu centenário, a Fundação Mauricio Grabois homenageia seu legado antirracista, ao revisitar alguns marcos de sua vasta trajetória de militância comunista e produção teórica e literária com base em documentos de seu acervo pessoal, sob a guarda do Centro de Documentação e Memória (Cedem) da Unesp.
A troca de correspondências com pessoas do mundo literário, editoras do Brasil e de outros países, figuras políticas e ligadas à academia revela as relações que Clóvis Moura manteve com a vida intelectual brasileira. As passagens que constam nessa reportagem são um recorte que não pretende esgotar as inúmeras possibilidades de pesquisa em seu acervo.
Um marco na produção teórica de Clóvis Moura é o livro Rebeliões da Senzala (1959), publicação que se tornou um divisor de águas nos estudos sobre o período da escravidão no país. No ano de seu centenário, o livro ganha sua 7ª edição, em uma parceria da Fundação Maurício Grabois com a Editora Anita Garibaldi.

Clóvis Moura. Crédito: Arquivo CDM
Sobre a obra, Clovis Moura destaca:
A partir de pesquisa sobre os documentos do período escravagista, este ensaio mudou os rumos do debate sobre a população escravizada no Brasil, ao estabelecer o quilombo como uma unidade política com papel de destaque no combate a ao regime colonialista, por meio de lutas de resistência com o objetivo de “solapar as bases materiais e consequentemente as relações de trabalho existentes entre senhor e escravo.”
Rebeliões da Senzala chega a países socialistas
Em 30 de abril de 1960, o comunista Alberto Carmo, filiado ao PCB, escreveu a Clóvis Moura, por indicação de Ruy Facó, solicitando exemplares de Rebeliões da senzala a serem enviados aos países socialistas.
“Estou encarregado de intensificar o intercâmbio cultural entre o Brasil e os países socialistas, tendo já de uma vez feito uma excursão à URSS e à China, com um grupo de artistas e músicos brasileiros, onde divulgamos nossa música. Depois de meu retorno tenho procurado enviar para todos os países socialistas, tudo que se relacione com a nossa cultura. […] Como conheço e admiro seu livro Rebeliões da senzala, gostaria de enviá-lo para aqueles países.”

Carta de Alberto Carmo a Clóvis Moura de 30 de abril de 1960. Fonte: Reprodução / Acervo Cedem Unesp
Clóvis Moura respondeu ao pedido e enviou uma correspondência a Alberto Carmo em 30 de julho daquele ano. Em uma nova carta, de 15 de agosto de 1960, Carmo afirma não ter ainda recebido os 10 exemplares que Clóvis Moura havia lhe enviado e responde ao autor sobre suas indagações em relação a possíveis traduções do livro e acompanhamento de sua recepção crítica nesses países:
“Sobre a questão da tradução e da opinião dos diversos setores culturais dos países socialistas, quero advertir-lhe que demorará muito a chegar. A tradução depende de que o livro agrade a eles, e não a mim, senão seria imediatamente traduzido. E quanto às notícias sobre o seu livro, no que se refere à crítica literária daqueles países, torna-se um pouco difícil para mim ter notícias. Mas se algum país socialista, principalmente a URSS traduzi-lo, é sinal de que agradou muito. No entanto farei o possível para que ele seja traduzido, pois vou dirigir-me a diversos amigos nesse sentido.”
No encerramento desta missiva, ele informa a Moura que sua esposa partiria em 3 de setembro daquele ano para a China e a URSS e levaria pessoalmente os exemplares de Rebeliões da senzala destinados a esses países, “de forma que chegarão muito mais cedo do que os que remeterei por via postal. Sem mais, aqui fico inteiramente à sua disposição na esperança de que possa ajudá-lo a divulgar seu belo trabalho entre os povos socialistas”, conclui.
Leia o artigo de Clóvis Moura: O racismo como arma ideológica de dominação
Entre Euclides da Cunha e os quilombos
Em outubro de 1960, Arivélsio Padilha, diretor da Casa Euclidiana, ligada à Secretaria de Estado dos Negócios do Governo de São Paulo, propôs a Clóvis Moura que, com sua “brilhante e conceituada pena”, desenvolvesse o tema A obra de Euclides da Cunha e a Sociologia Brasileira “para ilustração dos seus arquivos especializados”.
Em correspondências que manteve ao longo dos anos seguintes com o historiador marxista Nelson Werneck Sodré, Clóvis Moura trata sobre o desenvolvimento do livro sobre Euclides da Cunha. Além de encorajar essa empreitada, Sodré também o estimula a trabalhar em uma nova edição de Rebeliões da Senzala.
“Em primeiro lugar, o seu livro: li-o com proveito e agrado; usei-o em meus trabalhos e, ainda recentemente, na Formação Histórica do Brasil, que a Brasiliense vai lançar agora em maio. Claro que tem imperfeições. Quem é perfeito? Seu trabalho é pioneiro; considero por escrever a história das rebeliões brasileiras, e é uma grande história. Há quem sustente não haver, no Brasil, tradição de luta camponesa. Tenho dúvidas. Parece-me, ao contrário, que há falta de história das lutas camponesas. Que parece a você? O seu livro está emprestado por mim a um estudioso na matéria, como fonte indispensável no assunto. Tenho tal livro em alta conta, portanto. Penso que merece uma reedição, com as correções de forma às quais você se refere”, escreveu Sodré em carta de 17 de abril de 1962.
Naquele momento, o presidente do Brasil, João Goulart, realizava uma visita oficial aos Estados Unidos, onde se encontrou com o presidente John F. Kennedy. Desde a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, o governo Goulart enfrentava resistência nos setores conservadores da sociedade, em particular com os militares. Na carta, Sodré pede desculpas pela demora em responder a carta de Clóvis Moura enviada em março e informa ter passado quarenta dias fora do Rio, “em repouso e tratamento, pois andava próximo do esgotamento pelo excesso de trabalho e também por efeito das lutas políticas prolongadas, inclusive com a crise de agosto.”
Leia o artigo de Clóvis Moura: O significado político da Guerra de Canudos
Após afirmar ter escrito sobre Rebeliões da Senzala em O Semanário, Sodré busca tranquilizar Moura com relação à baixa repercussão do livro na imprensa naquele momento.
“Não li outras notas sobre ele, que me lembre. E é natural que tenham sido poucas. Não se preocupe com isso: a verdade é que o bom livro, hoje, tem leitores, no Brasil, apesar do silêncio, propositado ou não – no seu caso, propositado, — da imprensa interessada na antípoda. Hoje, a palavra clara e fundamentada tem ampla audiência, no Brasil, escrita ou falada. Felizmente. Tenho emprestado o seu livro a várias pessoas, a estudantes de história, inclusive, e todos lhe afirmam as qualidades. E não lhe estou escrevendo isso por gentileza, creia. Não é dos meus hábitos o elogio gratuito. Continue.”
Em outra carta, datada de 1º de junho de 1962 e escrita à mão — pois sua máquina estava no conserto — Sodré responde a uma carta de Clóvis Moura enviada em maio e retoma o tema da falta de recepção de Rebeliões de senzala pela imprensa brasileira:
“A ausência de crítica a que você se refere é um fato: a omissão da crítica reacionária deve-se a deliberado propósito; nada há que dizer a esse respeito; a da crítica progressista deve-se a dois motivos: falta de meios (revistas, jornais, críticas, espaço) e falta de compreensão. A falta de compreensão está ligada a muitos fatores, inclusive à subestima do papel e do trabalho do intelectual, mesmo nas áreas progressistas mais avançadas. Isto, pouco a pouco, está se atenuando. Desaparecerá somente e outras condições que não as atuais. Continuemos a trabalhar, entretanto; não estamos amarrados ao passado, mas ao presente e ao futuro.”
Com relação ao livro sobre Euclides da Cunha no qual Clóvis Moura estava trabalhando, Sodré envia as seguintes sugestões:
“Separar o mito da realidade; situar historicamente o desenvolvimento da personalidade e da obra de Euclides; situar historicamente o conteúdo ideológico de seus autores preferidos, dos que influenciaram em sua obra. As ideias socialistas de Euclides são um produto de leituras: não derivam das condições reais em que ele viveu, por isso é que são episódicas, superficiais, desimportantes no conjunto de sua obra. Mas são um avanço, em relação ao conjunto do pensamento brasileiro da época, são antecipadoras, precursoras. Constituem um traço pessoal destacado. É preciso considerar que, em vida de Euclides, as relações capitalistas, no Brasil, estavam apenas em início e lento (e, portanto, o aparecimento de burguesia e proletariado).”
Em nova correspondência de 24 de abril de 1963, Sodré informa a Clóvis Moura que existem condições para uma nova edição de Rebeliões da Senzala e pede que ele envie os originais para uma nova publicação:
“Logo que voltei de São Paulo, quando estivemos juntos, tratei de verificar as condições para reedição de seu livro, e posso assegurar-lhe que elas existem e depende de você tal edição. Penso que o livro é importante e, com os acréscimos que pode receber, em vista de suas pesquisas posteriores, tornar-se-á uma fonte obrigatória de consulta sobre tema dos menos conhecidos, ainda à espera da atividade e da argucia dos pesquisadores. Peço, pois, que providencie os originais e me envie. O editor Zahar o lançará, segundo compromisso que assumiu com um amigo comum, grande admirador de seu livro. Não espere pela perfeição e exaustão dos dados informativos: mesmo no texto antigo, o seu livro merece reedição.”

Carta de Nelson Werneck Sodré a Clovis Moura de 24 de abril de 1963. Fonte: Reprodução / Acervo Cedem Unesp
Jorge Amado, o amigo da poesia negra de Clóvis Moura
Clóvis Moura também manteve correspondência com outro escritor comunista, Jorge Amado, que demonstrava grande interesse por sua produção poética: seus livros de poemas Espantalho na feira (1961) e Argila da memória (1962), sendo que o texto de apresentação do primeiro é assinado pelo escritor baiano.

O escritor baiano Jorge Amado (1912-2001)
Em 9 de maio de 1961, Jorge Amado escreveu a Clóvis Moura:
“Recebi teu bilhete de 1º de maio com o poema. Um e outro me comoveram. O poema está com o Santos Moraes, que irá publicá-lo no suplemento do Jornal do Comércio. Prefaciarei o teu livro com o maior prazer. Um grande abraço do teu amigo.”

O deputado comunista Maurício Grabois, assina a promulgação da Constituição de 1946; com ele, os deputados comunistas Batista Neto, João Amazonas e Jorge Amado [CDM]
“O que você precisa é ir passar uma temporada na Bahia descansando, longe desse ambiente daí.”
Dado o recado, o baiano também faz referência às produções literárias em que Moura estava trabalhando naquele período: Euclides da Cunha e a segunda edição de Rebeliões da Senzala.
“Espero ver em breve o seu trabalho sobre Euclides, e os anunciados livros de poemas. Interessa-me sobretudo o poema sobre Amarante. Creio que uma nova edição de ‘Rebeliões da Senzala’ lançada pela Zahar seria excelente. A primeira edição passou meio desapercebida devido ao mau lançamento.”

Carta de Jorge Amado a Clóvis Moura de 26 de agosto de 1963. Fonte: Reprodução / Acervo Cedem Unesp
Em 1963, Clóvis Moura se dedicava a ampliar a pesquisa para a segunda edição de Rebeliões da Senzala, aprofundando o ensaio publicado em 1959. Em carta de 28 de agosto de 1963, Nelson Werneck Sodré comenta sobre essa empreitada:
“Quanto ao ‘Rebeliões da Senzala’ que você está refundando — e faz bem — sou da opinião de que o sucesso da reedição é certo. Se a sua responsabilidade exige que refunda o texto antigo, não deve, entretanto, extremar-se a ponto de ficar à espera da perfeição absoluta — a que jamais alguém atinge — para voltar aos leitores. O tema das rebeliões — das lutas de classe, em suma — está virgem, praticamente, entre nós. O seu plano de trabalho para o levantamento desse longo processo é, pois, uma exigência atualíssima.”
Em 25 de março de 1964, poucos dias antes do golpe militar que colocaria o Brasil em uma ditadura por 21 anos (1964–1985), Clóvis Moura recebeu de Mário da Silva Pinto, editor da Civilização Brasileira, os originais revisados de Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha para avaliar antes da publicação.
“Releia cuidadosamente o original, Clóvis. Em geral, o revisor é muito bitolado, sabe de sua gramática e de sua ortografia, mas não bola nada mais longe disso: falta, nele, o escritor, o homem afeito às novas palavras que a linguagem moderna vai incorporando à vida.”
Críticas e respostas poéticas
Em carta escrita em 11 de julho de 1964, no dia seguinte ao seu aniversário, Clóvis Moura, então com 39 anos, responde a uma crítica de Herculano Pires no Diário da Noite sobre um dos poemas de seu livro Espantalho na Feira. A crítica foi em relação ao uso da palavra “carreira” utilizada no poema de Moura para se referir ao ofício de poeta.
“Se o seu repúdio é compreensível não é, no entanto, justificável. O poeta faz, de fato, uma carreira no seu sentido lato, isto é, trilho, traço, estrada caminho. O que acontece, no entanto, é que a palavra foi desfigurada pelo carreirismo, que é a forma patológica de um fenômeno natural. Por falta de vocábulo autônomo, os dois significados foram ligados. O que é uma lástima. Dai não se admitir, dentro de postulados normais e decentes, o uso da palavra carreira como se ela estivesse subordinada ao carreirismo. É que as palavras, como quer Carlos Drummond de Andrade, ‘não nascem amarradas’. E isto você tem razão. Tem razão quando postula um termo novo para designar o processo de nascimento, evolução e maturidade do poeta. Mas, de qualquer maneira, temos de admitir que há uma dinâmica própria na obra e cada poeta com o seu processo de transformação intrínseco, com o seu combustível próprio, com a sua dialética: uma carreira. Dai continuar a dizer que o poeta tem uma carreira que pode ser carreira artística ou carreirismo sofisticado”, escreve Moura.
Em uma carta de 20 de julho de 1965, Clóvis Moura responde a uma carta de Carlos Batista dos Santos, de 10 de junho — data em que o escritor completou 40 anos —, sobre seu livro Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha, e diz ter ficado “muito satisfeito” com as considerações.
“De fato tentamos fazer um livro imparcial sobre aquele escritor. O resultado é que se houve pessoas como o senhor que reconheceram o esforço, houve, também, da parte dos sectários de Euclides, uma série de incompreensões. Muitos ainda julgam um livro sobre alguém em termos de ser contra ou a favor da personalidade estudada… São os profissionais de Rui, Euclides, Tobias, Barreto, Caxias… Isto decorre do fato de estarmos, no momento, apenas iniciando o reexame crítico do desenvolvimento das ideias no Brasil. Outro fator que também influi para as deformações apologéticas e superficiais é a ‘oficialização’ de alguns personagens da nossa história cultural, social ou mesmo militar. Contudo, palmo a palmo, vamos corrigindo erros, restaurando a verdade e procurando dar a cada um o que a cada um pertence e tirando também o que é acréscimo forçado. Com Euclides, formou-se um misto, conforme disse no meu livro. Acho que, no momento, escrevi um livro que não diminuiu a estatura do autor de Os Sertões.”
A poesia e o ensaio
Em 18 de fevereiro de 1965, Jorge Amado escreve a Clóvis Moura agradecendo o envio dos livros Argila da memória e Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha:
“Gostei muito, realmente mesmo, destes teus poemas.”
Em 2 de setembro daquele ano, o escritor Baiano volta a escrever a Clóvis Moura, diz aguardar a chegada do livro Âncora no Planalto e informa que o editor Antonio Olinto havia recebido os livros e estava “muito impressionado com sua poesia.”
Em nova carta, de 8 de novembro, Jorge Amado conta ter andado “em tal aperto de tempo, trabalhando no meu romance, que nem sei se já te mandei dizer o quanto me agradou teu Âncora no Planalto.” O escritor baiano trabalhava em seu romance Dona Flor e seus dois maridos, que seria publicado no ano seguinte. Na carta, ele volta a elogiar a produção poética de Clóvis Moura:
“Creio que realmente é teu melhor livro de poesia e com ele atingiste completa madurez. Não sei como o livro foi recebido, mas penso que ele não pode deixar de ter repercussão apesar de que a edição é realmente pobre. Fico por aqui, apressadíssinmo, quis apenas te mandar um abraço de parabéns.”
A empolgação com a produção poética de Clóvis Moura não era compartilhada por Nelson Werneck Sodré. Em 26 de novembro de 1965, o historiador comunista escreve a Clóvis Moura para informar que as condições não estavam favoráveis para a publicação da segunda edição de Rebeliões da Senzala:
“Espero que você termine o novo texto das ‘Rebeliões’; não se apresse, pois, no momento, a publicação me parece difícil. Li o seu livro de poesias, há nele coisas interessantes, mas você é principalmente ensaísta. Espero que, vindo ao Rio, me procure, há muito que conversar e, naturalmente, é impossível por carta”, escreve Sodré sobre o momento político daquele ano, sob o regime de exceção imposto pelos militares.
Em carta anterior, de 25 de maio, Sodré havia ressaltado a importância de continuar o trabalho de Rebeliões da Senzala, mesmo na incerteza de uma editora para publicá-lo:
“Creio que você deve empenhar-se no livro sobre os escravos: será livro novo, praticamente, e esse sucesso garantido. Não se preocupe com editor. Nesse momento, trabalhar e escrever e divulgar constitui a resposta melhor à reação.”
Nessa carta, ele elogia a repercussão do livro sobre Euclides da Cunha, para o qual ele assina a orelha:
“Fico satisfeito em saber da boa repercussão de seu livro sobre Euclides, realmente o que há de melhor sobre o grande ensaísta. É natural que só agora essa repercussão se reflita em debates. Isso se deve ao quadro geral, ainda pouco propício ao trabalho cultural. Mas vamos emergindo breve, e nota-se por toda parte uma ascensão da curiosidade e do interesse pelos problemas culturais.”
Rebeliões da Senzala renasce: nova edição e recepção crítica no Brasil
Depois de um longo processo de elaboração, a segunda edição de Rebeliões da Senzala é publicada pela Editora Conquista em 1972. Em 10 de julho, Sebastião Hersen, fundador e proprietário da editora, escreve a Clóvis Moura “satisfeito em saber que o livro agradou, apesar dos ‘gatos’ tradicionais que são dores de cabeça constantes”.
“Você não faz ideia da dificuldade de se vender livros hoje em dia por esse Brasil afora. Os que compram fácil, não pagam; os que pagam, não compram”, escreve Hersen.
Jorge Amado recebeu pelo correio uma cópia da nova edição, enviada no dia 25 de julho, e parabenizou Moura pela publicação em correspondência enviada no dia 23 de agosto:
“Receba os parabéns pela edição que está muito bonita. Aliás, essa coleção do Hersen é das mais bonitas do Brasil. Você já sabe da minha opinião sobre seu livro que eu acho importantíssimo. Espero que nessa segunda edição ele obtenha a repercussão nacional que merece.”

Carta de Jorge Amado a Clóvis Moura de 25 de julho de 1972. Fonte: Reprodução / Acervo Cedem / Unesp
Em carta de 28 de julho de 1972, Hersen comemora as críticas recebidas pelo livro nos jornais de maior tiragem no Rio de Janeiro da época: O Globo e Jornal do Brasil, fato que ele classifica como “uma coisa raríssima, estarrecedora”, “que não existe mais”. O editor enumera:
“1º porque o crítico não obtém remuneração justa pelo seu trabalho; 2º porque o jornal não vai perder espaço com material que já era. Mas aconteceu, graças aos bons ofícios de um amigo comum.”
1975: fundação do Ibea, morte de Herzog e independência de Angola
O ano de 1975 foi de intensa atividade para Clóvis Moura, com a fundação por ele do Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (Ibea), com o objetivo de pesquisar e debater os problemas do negro no Brasil.
No dia 29 de maio de 1975, Clóvis Moura escreveu, na condição de presidente do Ibea, ao Cardeal Arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, para encaminhar um comunicado da organização, “denunciado fatos que atestam uma tendência perigosa em curso, isto é, o reaparecimento do nazismo e a agudização do racismo em nosso país, num momento em que todos os povos do mundo estão procurando acabar as diferenças sociais decorrentes de cor, religião, raça ou nacionalidade”.
Também como presidente do Ibea, Moura iniciou uma articulação com vários países africanos, com o objetivo de estabelecer cooperação nas pesquisas sobre o tema. Em 11 de setembro daquele ano, ele escreveu ao deputado federal Adalberto Camargo, da Câmara de Comércio Afro-Brasileira, solicitando a relação dos nomes dos embaixadores de todos os países africanos com representação no Brasil.
No dia 29 de outubro de 1975, Moura enviou cartas para as embaixadas de Gana, Trinidade e Tobago, Senegal, Zaire, Costa do Marfim e Nigéria com objetivo de estabelecer um intercâmbio de informações entre o Ibea e esses países.
Dias antes, em 24 de outubro, o poeta Luiz F. Papi escreveu a Moura para parabenizar a criação do instituto:
“Sua atuação junto ao movimento negro de São Paulo me deu aquela alegria de saber que você não abdicou da participação prática e está sempre disposto a dar sua contribuição e experiência ao que possa haver de mais generoso ente as causas da emancipação humana.”
No dia seguinte ao envio dessa carta, um dos crimes contra a humanidade de maior repercussão aconteceu nos porões da ditadura militar em São Paulo: o brutal assassinato do jornalista Vladimir Herzog. O comunicado da morte feito pelo I Exército falava em suicídio, posição questionada desde o primeiro momento pelo Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, então presidido pelo alagoano Audálio Dantas (1929-2018).
Foi a Audálio Dantas que Clóvis Moura se dirigiu no dia 30 de outubro de 1975 para prestar suas condolências pela morte do colega jornalista:
“Em nome do Ibea — Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas dirijo-me a V. Sª. para manifestar nossa profunda emoção face à tragédia que enlutou a classe jornalística e todo o nosso povo, com a morte do jornalista Vladmir Herzog. Ao tempo em que deploramos o acontecimento, manifestamos a convicção de que a sua morte poderá servir para que tenha início no Brasil uma fase de reformulação dos atuais métodos em relação à pessoa humana.”
No dia 1º de novembro daquele ano, Clóvis Moura escreveu ao Movimento Pela Libertação de Angola (MPLA) para felicitar a luta popular que possibilitou sua independência de Portugal:
“No momento em que Angola, após uma vitoriosa luta pela independência, instala o seu primeiro governo livre de colonialismo e inicia a sua trajetória de nação independente, o Ibea – Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas, refletindo o contentamento não apenas de seus membros, mas da comunidade negra consciente do Brasil e das suas forças democráticas, não podia omitir-se. Desta forma, transmitimos aos companheiros o nosso abraço fraternal, esperando que Angola possa vencer rapidamente a etapa de consolidação de sua independência e passe a desenvolver-se aceleradamente. Nossa saudação fraternal estende-se a todas aquelas pessoas, grupos ou instituições que, nesse país, resistiram ao colonialismo, proporcionando as premissas para a atual vitória do povo angolano.”
Em outra correspondência, desta mesma data, o presidente do Ibea se dirige ao governo independente de Angola para propor uma colaboração:
“Nesse sentido é que oferecemos os nossos préstimos na área do intercâmbio cultural e de colaboração fraternal em tudo aquilo que nos for solicitado, objetivando o desenvolvimento desse país e a solução dos problemas mais urgentes, ligados às tarefas de consolidação da sua Independência, naquilo que estiver ao alcance de nossas possibilidades. Essa será uma forma de reconhecermos o esforço que o povo angolano fez, não apenas para libertar-se do colonialismo, mas, também, pelo seu exemplo de autoafirmação democrática e de compreensão dinâmica do futuro da Humanidade.”
Obra, reconhecimento e direitos do escritor
Após ser informado pelo jornalista Jaime Martins, locutor da Rádio de Pequim por 20 anos, de que Rebeliões da Senzala havia sido editado na China e adotado, inclusive, para uso em escolas, Clóvis Moura escreveu, em 31 de julho de 1985, ao adido cultural da República Popular da China:
“Em primeiro lugar, desejaria obter um exemplar do mesmo, saber o nome do tradutor e a tiragem da edição. Em segundo, saber como seria possível receber os direitos autorais de acordo com o total da tiragem da edição e de que forma isto poderia ser feito.”
Em 1985, durante o governo de José Sarney, o nome de Clóvis Moura foi cogitado para a presidência da Fundação Nacional Pró-memória, com respaldo das entidades ligadas ao movimento negro no país, mas acabou sendo preterido. Em carta ao então senador Fernando Henrique Cardoso, de 1º de agosto daquele ano, se queixou da nomeação de Ricardo Gioglia, anunciado pelos jornais como nomeado para o cargo:
“Desta forma, o ministro da Cultura despreza a solicitação de centenas de pessoas e entidades que, de todo o Brasil, haviam indicado o meu nome. Vê-se como esta chamada Nova República transformou-se, em pouco tempo, no jubileu do oportunismo e do continuísmo da ditadura. Aqueles que lutaram durante mais de vinte anos para ver reimplantada a Democracia no Brasil são jogados como sucata, com toda indiferença, ao lado da estrada para que o triunfalismo dos oportunistas possa se afirmar. Felicidade na sua campanha para prefeito.”
Em 1988, Clóvis Moura escreveu uma carta para Caio Graco Prado, da Editora Brasiliense, reclamando da demora no recebimento dos direitos de seu livro. Com a inflação do período e a rápida desvalorização da moeda, a demora no pagamento representava prejuízo para os autores.
“Da forma como as coisas estão se desenvolvendo, o escritor nacional (que não recebe em dólares) chegará a um extremo de desmoralização profissional que não será interessante nem para ele, nem para as próprias editoras […] Quero lhe dizer que nisto não há nada de pessoal, mas significa uma atitude de protesto profissional e de afirmação de dignidade diante da política das editoras que falam como Lula mas agem como Maílson da Nóbrega.”

Carta de Clóvis Moura a Caio Graco Prado de 1988. Fonte: Reprodução / Acervo Cedem Unesp
Apesar de ter cursado a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras em Salvador na década de 1940, Moura teve o reconhecimento acadêmico de sua produção apenas na década de 1980, quando recebeu o título de Doutor Honório Saber pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), o que possibilitou que participasse como examinador em bancas de mestrado e doutorado na USP e na Unicamp.
Entre suas publicações, destacam-se os livros teóricos A Sociologia posta em questão (1978), Quilombos e a rebelião negra (1981), Sociologia do negro brasileiro (1988), As injustiças de Clio: o negro na historiografia brasileira (1990). Em 1994, Moura entregou à Editora Anita Garibaldi Dialética radical do Brasil negro, obra em que aborda o racismo inserido no contexto do imperialismo e do neocolonialismo.
Clóvis Moura faleceu no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, no dia 23 de dezembro de 2003, aos 78 anos de idade. Naquele ano, o intelectual comunista havia publicado sua última obra em vida: A encruzilhada dos Orixás: problemas e dilemas do negro brasileiro. Em 2024, de forma póstuma, foi publicado o Dicionário da escravidão negra no Brasil.