Este ano comemora-se o centenário do arraial de Belo Monte, fundado por Antônio Mendes Maciel, também conhecido como Antônio Conselheiro. Líder de um dos movimentos mais importantes da América do Sul que culminou na maior guerra civil do Brasil, depois da Cabanagem no Pará, tanto o seu nome como o conteúdo social dessa guerra no campo não têm sido devidamente avaliados de acordo com a importância social e política do acontecimento. A guerra liderada por Antônio Conselheiro é um reflexo eloquente das contradições que existiam naquela época e ainda persistem nas relações sociais do nosso setor agrário. Eclodiu em plena zona agropecuária dos grandes latifúndios no interior da Bahia e a violência dos combates travados entre os chamados fanáticos e as tropas legais bem reflete o grau de antagonismo a que haviam chegado as relações entre o latifúndio e a massa camponesa explorada na época.

É verdade que muita tinta já foi gasta para estudar esse movimento como sendo de fanáticos, messiânico, religioso e pré-político, mas nunca, ou quase nunca, como um protesto social da massa camponesa. Com isto, exclui-se o movimento de Canudos do nosso processo emergente de transformação social, colocando-o como atípico, marginal e divergente daquilo que seria a nossa evolução histórica normal. Daí procurarem enquadrar o seu principal líder como uma pessoa exótica, louca, delinquente ou dominado por complexos patológicos. E, por outro lado, a massa que o seguia como composto de ignorantes, fanáticos e possuídos de fantasias alucinatórias. O fanatismo religioso, a ignorância, a crença em milagres e na salvação no além substituem o estudo objetivo das causas pelas quais a massa camponesa seguiu o seu líder, organizou-se e pegou em armas com tanta obstinação, dando um exemplo de heroísmo como encontramos poucos na história contemporânea. Tudo isto será compreendido se atentarmos mais nos fatos e menos nos preconceitos ideológicos daqueles que o estudaram.

Desmoralizado demais o viés racista que apontava Antônio Conselheiro como um mestiço e, por isto, com os desequilíbrios que a mestiçagem proporciona, e os camponeses que o seguiam como possuídos de loucura coletiva, as ciências sociais tradicionais procuraram outros caminhos para explicar a excepcionalidade do movimento, os motivos que determinaram não se poder colocá-lo como um capítulo dos mais importantes da nossa história política, mas como um caso de patologia social

(1). Surgiu a explicação messiânica, pré-lógica, carismática e finalmente pré-política do movimento. Criou-se um conceito do movimento social que somente seriam considerados políticos aqueles que tivessem condições de elaborar um programa de ação e governo de acordo com os postulados da Revolução Francesa e que descambassem, como conclusão, em um projeto liberal. Os demais seriam formas arcaicas de movimento social, banditismo social, milenarismo, mas todos fora dos padrões que lhe dariam as razões para serem reconhecidos como políticos.

Embora o conceito tenha sido cunhado por um historiador grandemente ligado ao pensamento marxista – E. J. Hobsbawn – acreditamos que ele seja eurocêntrico, elitista e uma forma neoliberal de analisar e interpretar a dinâmica social. Se o aceitarmos seriam excluídos como políticos todos os movimentos do chamado Terceiro Mundo. A luta de Zapata e Pancho Villa no México, a de Sandino, na Nicarágua, o movimento camponês de Pugachov, na Rússia, todos os movimentos de libertação da África como o kimbangista, incluindo os Mau Mau e os Lumumba. Tudo isto seria englobado sob o rótulo de milenarismo, salvacionismo ou messianismo e com isto seria descartada a essência dos mesmos, conservando-se apenas a sua casca exterior, a sua forma. Marx dizia: “(…) não haverá jamais movimento político que não seja social ao mesmo tempo. Não será senão numa ordem de cousas na qual não haja mais classes e antagonismo de classes, que as evoluções sociais deixarão de ser revoluções políticas” (2). Achamos, por isto, que todos os movimentos que desejam mudança social são movimentos políticos, mesmo com o fato de os próprios agentes coletivos o desconhecerem. O que varia é o grau de consciência social de cada um e as propostas subsequentes para a mudança. Mas todos se enquadram na transformação revolucionária (ou não) da sociedade.

“Canudos só pode ser entendido cientificamente como um movimento político”.

Hegel dizia que a África era um continente sem história. Com esta formulação todos os movimentos do Terceiro Mundo não têm essência política e por isto fugiram à lógica da história. Por outro lado, todas as lutas dos servos durante a Idade Média contra o feudalismo não teriam conteúdo político. No entanto, Engels escreveu: “(…) a oposição revolucionária contra o feudalismo manifesta-se através de toda a Idade Média. Segundo as circunstâncias aparece como misticismo, heresia aberta ou insurreição armada. No que se refere ao misticismo já se conhece até que ponto os reformadores do século XVI sofreram sua influência. Também Munzer muito lhe deveu” (3). O que desejamos dizer, finalizando essas considerações introdutórias, é que o movimento de Canudos foi um movimento político e que somente se assim o situarmos poderemos compreendê-lo cientificamente.

A fundação do arraial: Quando Antônio Conselheiro fundou o arraial de Canudos, fê-lo decidido a marcar uma nova etapa na luta que vinha liderando. Desde 1874, quando pela primeira vez se tem notícias suas, nas províncias de Bahia e Sergipe até a fundação de Canudos em 1893 passaram-se praticamente vinte anos. Durante esse período o peregrino foi preso, perseguido pelo clero e travou uma escaramuça com a polícia. Decidido a estabelecer uma base territorial para o movimento percorreu as terras dos estados de Alagoas, Sergipe, Pernambuco e Bahia até chegar à região de Canudos. Isto porque, segundo um dos seus biógrafos, Abelardo Montenegro, ele previa novas perseguições, depois de ter desbaratado tropas da polícia em Massete. A fazenda onde Antônio Conselheiro se instalou com o seu povo era uma área abandonada de grande extensão e que se achava desocupada desde 1891. Ficava num entroncamento das estradas de Geremoabo, Uauá, Cambaio, Rosário, Chorrochó e Curral dos Bois. O local era dos mais favoráveis para o início da construção do arraial, pois estava protegido por serras pedregosas em cujas vertentes se estendiam caatingas. “Para lá chegar” – escreve Abelardo Montenegro – “o caminhante teria de atravessar uma zona sem água e sem recursos” (4). Como diz o mesmo autor, Antônio Conselheiro não se considerava mais o peregrino, o missionário secular, o evangelizador que palmilhara o sertão no desempenho da missão divina. “Julgava-se o Conselheiro” (5). Instalou-se, assim, em “(…) lugar mais seguro”, como afirma Rui Facó, construindo celeremente seu reduto defensivo que batizou de Belo Monte e que depois ficaria célebre com o nome de Canudos. Correndo a notícia da fundação do arraial, logo para lá se dirigiram pessoas de vários estados do Nordeste como Ceará, Pernambuco, Alagoas, Minas Gerais e até de São Paulo. O arraial cresce rapidamente, num ritmo febril que mais se acentua com a chegada incessante de novos peregrinos que se fixam no local. Diz Marco Antônio Villa: “(…) as casas são construídas pelos próprios sertanejos e, apesar das tentativas de Antônio Vilanova de organizar uma ocupação planejada do espaço urbano, o que se vê são construções que se espalham ao longo do Vaza-Barris e pelas encostas à semelhança da maioria das cidades brasileiras da época, principalmente durante o último ano de vida da cidade, quando cresceu em ritmo vertiginoso” (6).

O arraial assim construído tinha um centro comercial, uma escola e obviamente uma igreja, além do templo novo em construção e que nunca foi terminado. Como diz ainda Marco Antônio Villa “(…) apesar de importância econômica, como centro criador de gado, e política, como um dos maiores núcleos comerciais do interior o poder público nunca se importou por Canudos. O governo estadual não oficializou o município, nem designou delegado, juiz e outras autoridades. A criação de uma escola foi uma iniciativa da comunidade. A professora Maria Francisca de Vasconcelos, de 26 anos, que tinha cursado a escola normal em Salvador, se estabelece em Canudos. Sua importância social pode ser medida pela designação da rua em que morava: a rua da professora” (7).

Com o passar do tempo há uma divisão de poderes, e Antônio Conselheiro passa a exercer principalmente o religioso. A gestão do poder público fica nas mãos de outros líderes: João Abade, Pajeú, Joaquim Macambira e Antônio Vilanova. João Abade, ao que tudo indica, ficou responsável pela segurança do arraial, pois Frei João Evangelista de Monte Marciano, que esteve em Canudos em 1895 em uma santa missão de espionagem, diz que ele era tratado por seus habitantes de chefe do povo e comandante do povo. Chefiava também a Guarda Católica ou Companhia do Bom Jesus, organização armada que era responsável pela segurança de Antônio Conselheiro. José Calasans informa que ele já se tornara pessoa destacada do séquito antes da chegada a Canudos. Dirigira, em maio de 1893, o primeiro choque dos jagunços com soldados da polícia baiana. A criação da Guarda Católica, fato sucedido após a ocupação da antiga fazenda do Vaza-Barris, veio fortalecer a posição do cabecilha.

Se esta era a organização política, do ponto de vista econômico havia um sistema de circulação monetária interessante: “(…) o dinheiro não circulava em Canudos, e o existente era mantido em um cofre sob a responsabilidade de Antônio Vilanova que, para intercâmbio interno, emitia um vale. Com o passar dos anos, esse vale era também aceito nas cidades vizinhas, revelando não só a carência do meio circulante como também a importância da economia local para a região circunvizinha. É uma falácia afirmar que em Canudos só circulava dinheiro republicano: ele não pegava em dinheiro de nenhuma espécie” (8).

“O comunitarismo de Canudos era uma alternativa ao latifúndio que dominava o sertão”.

Através dessa dinâmica demográfica e social, Canudos, de simples fazenda que fora, constituía agora um povoado. Havia crescido graças à invasão de terras vizinhas abandonadas. Transformara-se em ativo centro de comércio. Os comerciantes de Monte Santo, Cumbe, Uauá e outras localidades vizinhas, segundo informações de Honório Vilanova, tinham inveja de Canudos, porque os comerciantes do arraial não pagavam impostos e prosperavam. Abelardo Montenegro afirma: “(…) havia gado para o açougue. Os paióis continham provisões. As roças estavam plantadas. Enquanto isso a influência do Conselheiro se estendia pelos sertões, aumentando, por isso, o temor dos fazendeiros e das autoridades” (9). Mas a carne que estava no açougue era decorrência de uma atividade pecuária intensa e racionalização da sua distribuição. Além da carne para a alimentação dos seus habitantes, criou-se uma indústria de couro que dava para ser largamente exportada. Os curtumes localizavam-se às margens do rio Vaza-Barris, ao lado das roças de legumes, cana-de-açúcar, batata, feijão, mandioca, melancia, que eram cultivados das terras que os sertanejos recebiam de Antônio Vilanova quando chegavam ao arraial. Havia também atividade metalúrgica fabricando-se no arraial machados, facas, foices para serem usados nas atividades agrícolas e possivelmente militares. Fabricavam também pólvora com o salitre local, o enxofre próximo do São Francisco e relativamente próximo a Canudos e a galena argentífera do Assuruá. Desenvolvia-se, assim, uma economia comunitária e alternativa bem superior nas suas relações sociais e na distribuição da produção àquela latifundiária, baseada na exploração camponesa do resto da região. Daí o temor e o ódio dos fazendeiros pelo crescimento dessa economia e o nome do seu líder Antônio Conselheiro.

Para garantir a integridade territorial do arraial e manter a organização interna de Canudos, foram criados mecanismos administrativos e militares. Antes das invasões das tropas republicanas, a sua mais importante organização militar era incontestavelmente a Guarda Católica, comandada por João Abade, composto de cerca de seiscentos homens. Era um grupo remunerado, mantido pelo próprio Conselheiro com recursos angariados entre os fiéis. Essa Guarda era também conhecida como Companhia do Bom Jesus e foi criada para fins defensivos, pois segundo o próprio frei Marciano, ao interpelar o conselheiro para saber por que tanta gente armada em Canudos, ele lhe respondeu: “É para a minha defesa que tenho comigo estes homens armados, porque V. revma. há de saber que a polícia atacou-me e quis-me matar no lugar chamado Masseté, onde houve mortes de um e do outro lado”. Desses membros da Companhia do Bom Jesus, segundo o mesmo Frei Marciano, havia perto de “(…) mil homens e se vestiam de camisa, calça e blusa azulão, gorro azul à cabeça, alpercatas aos pés”. Durante a paz esse efetivo permanecia no arraial. Com a guerra houve necessidade de distribuir esses comandados de João Abade para as missões de vanguarda em Uauá, serra do Cambaio, Cocorobó, Umburanas etc. Piquetes foram colocados em pontos estratégicos e entregues à chefia de jagunços corajosos, alguns com experiência em luta armada, de guerrilhas. Ficaram conhecidos como comandantes de piquetes, tendo Euclides da Cunha recolhido alguns dos seus nomes e postos avançados.

Esses piquetes eram compostos de em média vinte homens. Para Cocorobó e caminho de Uauá foram designados os irmãos Mota (ou Mata), sendo que João, caboclo moço, movimentou-se nesses dois pontos e Chiquinho de Maria Antônia parece ter andado também em Canabrava. O negro Estevão, com a fama de malvado, segundo José Calasans, tomou conta da estrada do Cambaio, onde se distinguiu anteriormente, por ocasião da expedição Febrônio de Brito, o guerrilheiro João Grande, chefe dos caboclos de Rodelas. Gozava a fama de bom jogador de facão, morreu despedaçado por uma granada (10). Após a segunda expedição, no entanto, a luta se transformou em guerra de todo o povo, envolvendo, no mesmo nível, velhos, mulheres e crianças. Canudos transformou-se em uma fortaleza.

As mulheres deram exemplo de combatividade e heroísmo. A maioria preferia morrer a deixar-se aprisionar, e mesmo quando prisioneiras adquiriam uma atitude de altivez tão desafiadora que eram degoladas pelos soldados do Exército. Macedo Soares escreveu nesse sentido que: “(…) as mulheres uivavam de cólera, animando maridos e irmãos, limpando as armas e preparando-lhes a parca refeição”. Como diz o mesmo autor, “(…) todos, entre eles, que podiam empunhar uma arma combatiam. Até os meninos auxiliavam-nos”.

“O direito camponês contra o direito e privilégios da oligarquia”.

Guerra Nacional: Diante do fracasso da terceira expedição, os brios do Exército são desafiados e inicia-se uma verdadeira mobilização, é como se estivéssemos em guerra contra a potência inimiga. Os camponeses de Canudos haviam derrotado tropas comandadas em princípio por um tenente, depois por um major e finalmente por um coronel, reputado como representativo da elite do Exército Nacional. Com a derrota de Moreira Cesar houve uma síndrome do medo que se exteriorizou no discurso restaurador: Canudos nada mais era do que um foco de monarquistas que desejavam fazer voltar o antigo regime. Com essas palavras todas as restrições à Guerra de Canudos foram neutralizadas e a opinião pública se uniu diante de um objetivo inadiável: liquidar a sua população e o seu líder de forma que o exemplo servisse para todos aqueles que desejassem desestabilizar a República. Um verdadeiro delírio de patriotice tomou conta das classes dominantes, classe média, intelectualidade, políticos, militares e oportunistas de toda laia. O objetivo nacional era destruir o reduto de Antônio Conselheiro. Um monarquista, Gentil de Castro, foi assassinado no Rio de Janeiro, jornais monarquistas foram empastelados, vivia-se o dia do resgate da honra nacional. A pátria estava em perigo! “As nossas armas estão cobertas de crepe”, dizia o ministro da Guerra e o jornal O País noticiava diariamente os acontecimentos sob o título denunciador: “A Catástrofe”. E, de fato, a expedição Moreira Cesar fora exatamente isso. Os guerrilheiros de Canudos não apenas derrotaram os soldados da poderosa expedição, mas também mataram seu comandante e os melhores oficiais que a compunham, inclusive o coronel Tamarindo, que o substituíra. Como diz Rui Focó com propriedade, “(…) o aniquilamento completo da força militar tão numerosa para a época e para as circunstâncias, a perda de todas as armas e munições, agora em poder dos camponeses sublevados, criaram uma situação de pânico entre as classes dominantes do Brasil inteiro”.

A luta final inicia-se com os conselheiros já muito mais experientes e, acima disto, muito bem armados em face da apreensão das armas e munições das outras expedições. Aprenderam nas outras expedições também a conviver com a violência. Defendiam as suas casas, as suas famílias e terras contra um assaltante que justificava a sua violência apenas na posse de poder, na defesa dos privilégios das oligarquias e no ódio a tudo aquilo que significasse legitimação do direito dos camponeses. É isso que explica as grandes baixas nas fileiras do Exército. Basta dizer que a 4ª expedição, ao chegar à Favela, tinha perdido 1200 homens num total de 4300. No combate de 18 de julho, que as armas legais consideravam uma vitória, dos 3500 soldados e oficiais lançados ao ataque, mais de 1000 foram postos fora de combate, e o número de oficiais mortos e feridos deixava muitas unidades sem comando. Nesse mesmo dia, batalhões de 400 soldados e oficiais ficaram reduzidos a 300, 250 e até à metade. Um batalhão teve seis oficiais mortos e quatro feridos. A ala de cavalaria foi desbaratada e nesse mesmo dia ficaram fora de combate 67 oficiais sendo 27 mortos.

Nesta altura da guerra a violência do oprimido contrapôs-se à violência do opressor e os camponeses passaram a não fazer mais prisioneiros, mesmo porque não havia mais condições de alimentá-los, executava-os.

E não podia ser de outra forma. Os canudenses lutavam com tropas infinitamente superiores. A primeira expedição compunha-se de 100 soldados, a segunda de 600, a terceira de 1200 e a quarta cerca de 10.000. Ao todo os homens de Antônio Conselheiro lutaram com cerca de 12.000 soldados. Venceram as três primeiras e só foram derrotados pela última, depois de uma série de combates heróicos, depois de infringir pesadas baixas ao inimigo.

“Palmares, cabanagem e Canudos indicam o caminho da luta pela liberdade no Brasil”.

Os grandes proprietários de terras saíram vitoriosos. E com eles os liberais republicanos que deram o golpe de 15 de novembro e conservaram a mesma estrutura de poder e pólos de dominação da sociedade escravista. O liberalismo republicano, num pacto com as oligarquias latifundiárias, destruiu até o último homem os habitantes de Canudos. Os políticos liberais exultaram com o feito. Apenas algumas vozes isoladas de estudantes se fizeram ouvir denunciando o genocídio. Para eles, o fundamental era a preservação da ordem latifundiária. Rui Barbosa redigiu um discurso que faria no Senado denunciando a selvageria do Exército. Dizia o rascunho do seu texto: “Canudos arrasou-se; mas não é no arrasamento de Canudos que se acha o maior proveito moral. Suprimistes uma colônia de miseráveis. Mas não tocaste na miséria que a produziu. A miséria é a ignorância, o estado rudimentário, o abandono moral dessas populações, sem escolas, sem cultura cristã, sem vias férreas, sem comércio com o mundo civilizado. Os jagunços são as vítimas da situação embrionária de uma sociedade enquistada ainda na rusticidade colonial. A lição não está na exibição atroz de uma cabeça cortada ao corpo exumado de um núcleo de homens decididos a se matarem pela visão de um falso direito, espetáculo oriental, que os nosso sentimentos repelem e que nem o pretexto da curiosidade científica absolve (…) Supunha-se que esta nação só se compusesse da população híbrida, invertebrada e mole das cidades; mas o deserto revoltado nos fez sentir na medula do leão a substância de que se fazem os povos viris. Mais ainda outra coisa se viu: para debelar um arraial, defendido pelo frenesi de um núcleo de homens decididos a se matarem pela visão de um falso direito, foi mister um exército. Calculem agora quantos exércitos não seriam necessários para semear neste país, para lhe impor o cativeiro, imaginem se há reações militares, que não desapareçam ao sopro do direito popular, quando a nação levantada tiver consciência, a vontade e a coragem de sua soberania” (11).

Essas palavras de Rui Barbosa, que eram para ser ditas no Senado, ficaram no fundo da gaveta do sagaz político baiano.

O significado de Canudos: A Guerra civil de Canudos e a violência brutal da elite governamental e do seu seguimento militar vieram pôr a nu o conteúdo da nova ordem republicana que se instaurara no país. Aos gritos do liberalismo mais exacerbado, os políticos republicanos fizeram um pacto com a antiga classe senhorial, conservando-lhe o poder e os instrumentos de dominação. A estrutura agrária, ainda uma herança sesmarial da Colônia, mostrou como ainda funcionava com os seus mecanismos de repressão intactos. Nossa história tem três momentos, que simbolizam os momentos de ruptura com o sistema de dominação e conseguiu abalar a sua estrutura: Palmares, no Brasil Colônia; Cabanagem, no Brasil Império; e Canudos, na República. Esses três momentos, nos quais os escravos e a plebe rebelde passaram a ser agentes dinâmicos da História, mostram como somente através desse radicalismo o Brasil poderá reformular os pólos de poder e de opressão e articular um novo ordenamento social no qual os oprimidos possam fazer a história.

* Sociólogo, escritor e professor examinador de pós-graduação da Universidade de São Paulo.

Fotos de Antonio Olavo extraídas do livro Memórias Fotográficas de Canudos. Atualmente realiza documentário intitulado: Paixão e guerra no sertão de Canudos.

NOTAS
(1) Sobre a explicação patológica do movimento ver: RODRIGUES, Nina: As coletividades anormais, capítulo sobre “A loucura epidêmica de Canudos”, Civilização Brasileira, SP, 1939, p. 50, sgs.
(2) MARX, K. Miséria da filosofia, Flama, SP, 1946, p. 156-57.
(3) ENGELS, F. As Guerras Camponesas na Alemanha, Vitória, RJ, 1946, p. 38.
(4) MONTENEGRO, Abelardo F. Fanáticos e Cangaceiros, Henriqueta Galeno, Fortaleza, 1973, p. 107, sgs.
(5) Idem, op. cit.
(6) VILLA, Marco Antonio. Canudos – o campo em chamas, Brasiliense, SP, 1992, p. 32.
(7) Op. cit.
(8) Op. cit.
(9) MONTENEGRO, Abelardo F., op. cit.
(10) CALASANS, José. Quase biografia de jagunços, Universidade da Bahia, Salvador, 1986.
(11) BARBOSA, Rui. Obras Completas, vol. XIV, tomo I. Rio de Janeiro, 1952, p. 299-304.

EDIÇÃO 30, AGO/SET/OUT, 1993, PÁGINAS 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23