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    América Latina

    Sul Global desafia hegemonia ocidental na pauta dos direitos humanos

    Encontro China-América Latina propõe nova governança internacional, soberania e cooperação digital contra desigualdades e narrativas seletivas.

    POR: Isis Paris Maia

    7 min de leitura

    Palestinos carregam sacos de farinha após a entrada de ajuda humanitária em Gaza por um ponto de passagem na fronteira, em Beit Lahia, no norte da Faixa de Gaza, em 27 de julho de 2025. Foto: Rizek Abdeljawad/Xinhua
    Palestinos carregam sacos de farinha após a entrada de ajuda humanitária em Gaza por um ponto de passagem na fronteira, em Beit Lahia, no norte da Faixa de Gaza, em 27 de julho de 2025. Foto: Rizek Abdeljawad/Xinhua

    Notas da Segunda Mesa Redonda China-América Latina sobre Direitos Humanos — ou o cinismo ocidental em xeque

    Enquanto o Ocidente insiste em manter seu monopólio moral sobre os direitos humanos, a Segunda Mesa Redonda China-América Latina e Caribe revela o desgaste e a hipocrisia dessa narrativa hegemônica. Em um cenário marcado por guerras, genocídios televisionados e imposições unilaterais, emerge o Sul Global buscando construir sua própria agenda. O evento é um convite para questionar e um esforço de construção de alternativas para desenvolvimento e articulação além dos paradigmas dominantes.

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    1. A Nova Ordem Mundial discute os rumos da governança global.

    Estive na Segunda Mesa Redonda China – Estados Latino-Americanos e Caribenhos sobre Direitos Humanos, realizada no último dia 25, em São Paulo, organizada pela Sociedade Chinesa de Estudos de Direitos Humanos (CSHRS), Universidade Renmin da China (RUC) e Universidade do Estado de São Paulo (UNESP). O evento reuniu representantes de 20 países num esforço conjunto para rediscutir os caminhos da governança global em direitos humanos sob uma ótica não tutelada pelo Ocidente. Trata-se do primeiro evento do Sul Global com essa ambição: construir, em comum, uma agenda própria, enraizada nas realidades nacionais e no respeito à soberania — ou seja, o que a China tem chamado de comunidade de destino compartilhado. Esse conceito expressa a ideia de que todos os países, apesar de suas diferenças, estão interligados e devem cooperar para enfrentar desafios globais como a pobreza, as mudanças climáticas, os conflitos e as desigualdades. Isso, evidentemente, não se faz por meio do recurso à força ou imposição de modelos institucionais.

    Leia mais: China propõe nova visão para a humanidade em meio à turbulência global

    Este ano, um dos temas centrais foi o papel das ferramentas digitais na promoção dos direitos humanos, assunto diretamente conectado à minha pesquisa de doutorado. Foram apontados três grandes desafios para o presente e o futuro digital:

      1. garantir os direitos humanos no ambiente virtual;
      2. estabelecer princípios éticos e regulatórios capazes de conter aplicações nocivas das tecnologias, especialmente aquelas que reforçam desigualdades ou comprometem direitos fundamentais; e
      3. combater a discriminação algorítmica.

    Cabe ressaltar, que no Ocidente, as Big Techs estadunidenses têm determinado os caminhos e usos dos espaços digitais, moldando algoritmos, capturando dados e instrumentalizando seus fins mercadológicos.

    A China tem defendido uma governança digital global menos desigual, baseada na soberania tecnológica e na cooperação internacional. Os acordos firmados por Lula em Pequim, em maio deste ano, apontam para essa mesma direção. No campo tecnológico, Brasil e China assinaram memorandos sobre propriedade intelectual, inteligência artificial, economia digital e indicações geográficas, além de parcerias com a ApexBrasil, o IBGE e o Ministério das Comunicações. Destacam-se, ainda, a criação de um Centro Conjunto de Transferência de Tecnologia e a declaração de intenções para o compartilhamento de dados espaciais com países da América Latina e do Caribe iniciativas que reforçam um modelo de cooperação baseado em troca, autonomia e respeito mútuo, sem imposições nem condicionalidades políticas.

    Leia mais: Programa China-América Latina projeta autonomia digital e independência das Big Techs

    Outro ponto recorrente foi a defesa da soberania como condição para os direitos humanos. Os países presentes insistiram em que não é possível garantir qualquer direito quando o território está ocupado, quando há sanções unilaterais ou quando se impõe um modelo externo sob ameaça, chantagem ou guerra. Obviamente, a experiência colonial de muitos países latino-americanos e caribenhos, assim como a memória das invasões estrangeiras sofridas pela China, formam um pano de fundo comum para essa crítica. O reconhecimento da desigualdade global como herança de um sistema colonial não foi tratado como retórica, e sim colocado como base para qualquer novo paradigma em direitos humanos.

    Isis Paris Maia, professora colaboradora do GEChina-UnB, durante a Mesa Redonda China–Estados da América Latina e do Caribe sobre Direitos Humanos, em São Paulo, em 25/07/2025. Crédito: Organização do evento/Divulgação.

    A pauta também abordou a necessidade de repensar a governança internacional de direitos humanos. Hoje, muitos dos organismos multilaterais foram esvaziados de sentido, ao serem capturados por interesses políticos e assimétricos. O documento final deste Fórum, nomeado como “Consenso de São Paulo”1, defende um multilateralismo genuíno, com votos iguais entre os países, o fortalecimento da ONU e a construção de mecanismos mais justos, transparentes e inclusivos. Ao invés da politização dos direitos humanos, trata-se de integrar direitos civis e políticos com os direitos econômicos, sociais e culturais. Ou seja, direitos são construções históricas e políticas, e não existem no vácuo, tampouco liberdades (como de expressão ou organização) existem à margem de condições concretas que transcendam contextos de fome, desemprego e insegurança. Falar em democracia ignorando o direito ao desenvolvimento e à autodeterminação é uma distorção.

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    2. Gaza escancara o cinismo da ordem hegemônica

    Diante da situação de Gaza, a denúncia foi uníssona: estamos testemunhando um genocídio em tempo real, com apoio ativo ou silêncio conivente de potências ocidentais que se dizem defensoras dos direitos humanos. Em Gaza, centenas de pessoas morrem diariamente, com mais de 55 mil mortes oficialmente registradas. Trata-se, como muitos já apontaram, do primeiro genocídio televisionado da história, exibido em tempo real diante de uma comunidade internacional que escolhe assistir. O governo de Israel, com o apoio dos Estados Unidos, que vetaram em 5 de junho mais uma resolução do Conselho de Segurança da ONU pedindo cessar-fogo imediato, continua promovendo a morte de palestinos por diferentes meios, incluindo a obstrução deliberada da ajuda humanitária.

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    Ironicamente, os mesmos que, por meio da grande mídia ocidental, bradam sobre o “genocídio” no Tibet e Xinjiang. Vamos aos dados: em 1953, a população da Região Autônoma do Tibet era de cerca de 1,15 milhão de pessoas2 e, em 2020, chegou a 3,64 milhões3; já a do Xinjiang passou de 4,87 milhões em 19534 para mais de 12 milhões em 2021. Não apenas a demografia, mas os indicadores econômicos e sociais apontam na direção do desenvolvimento dessas regiões. Para ilustrar, em 1949, a expectativa de vida em Xinjiang era de apenas 30 anos e hoje é de 74,4 anos; já no Tibet, saltou de 35 anos para 70 anos. Essa seletividade narrativa, que serve a interesses geopolíticos bem definidos, revela mais sobre quem a propaga do que sobre os fatos que alega denunciar.

    Dessa forma, este evento, por tudo que representou, coloca em xeque o monopólio moral do Ocidente sobre a pauta dos direitos humanos. O antigo centro do sistema mundial, hoje se vê diante de crises, com as instituições políticas capturadas pela plutocracia; crescimento da polarização social; e esgarçamento do tecido social e hiperindividualismo. A ascensão do Sul Global é demográfica, econômica, mas também política, de modo que se forjam entendimentos e concepções para dar conta de suas realidades concretas e que não partem de prescrições nem de intervenções externas.já a do Xinjiang passou de 4,87 milhões em 1953

    Isis Paris Maia é historiadora, Mestre e Doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É Professora Colaboradora do GEChina-UNB e Pesquisadora do CEBRAC.Se dedica a compreensão da governança chinesa e suas instituições.

    Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG


    Notas

    1 São Paulo Consensus on China-Latin American and Caribbean States Human Rights Communication and Cooperation. Leia aqui

    2 Tibet’s population: past and present. Leia aqui

    3 Population: Tibet. Leia aqui

    4 Demographics and Development in Xinjiang after 1949 – Stanley Toops. Leia aqui

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