Em meados do século XIX, depois que o imperador chinês proibiu o comércio do ópio em função do seu impacto devastador sobre a saúde pública, a Grã-Bretanha deflagrou duas guerras sucessivas contra a China (1840-1842 e 1856-1860), alegando que a medida prejudicava os interesses de empresas britânicas e violava a “liberdade de comércio”.
Derrotada militarmente, a China foi obrigada a se abrir para as rotas do narcotráfico. Os cinquenta principais centros econômicos do país foram transformados em “concessões estrangeiras”, que deixaram de estar sujeitos à legislação e autoridade do Estado chinês. Passou a vigorar o princípio da “extraterritorialidade”, segundo o qual essas concessões ficaram submetidas à legislação e autoridade das potências controladoras. Esse princípio (e as concessões decorrentes) se tornou inaceitável no mundo a partir dos processos de descolonização da segunda metade do século XX.

Navios de guerra britânicos atacam uma bateria chinesa no rio das Pérolas, em 1841, durante a Primeira Guerra do Ópio. Ilustração publicada na obra Narrative of a Voyage Round the World: Performed in Her Majesty’s Ship Sulphur, During the Years 1836–1842, do capitão Sir Edward Belcher, R.N. Crédito: Encyclopædia Britannica / britannica.com
Quase duzentos anos depois, o presidente Trump deflagra uma guerra comercial global movida pela mesma lógica imperial da “extraterritorialidade”: a disposição de impor unilateralmente, pela força ou pela coerção, a autoridade do seu Estado para além das suas fronteiras nacionais. Tal como o Império Britânico puniu a China por coibir comerciantes de ópio britânicos, Trump ameaça punir qualquer país que tente regular as atividades de plataformas digitais que operam em seus territórios visando coibir o impulsionamento de conteúdo criminoso (como a propagação do racismo, a incitação à violência, a divulgação de pornografia infantil e a promoção do terrorismo). Alega que isso prejudica os interesses de empresas norte-americanas e viola a “liberdade de expressão”.
Soberania digital: O caso DeepSeek e os desafios do Brasil na Era das Big Techs
No caso do Brasil, exige, ademais, o fim “imediato” do julgamento do seu aliado e amigo local, o ex-presidente Jair Bolsonaro: ingerência inaceitável nos assuntos internos do país, além de ataque direto às bases do Estado Democrático de Direito e à independência do poder judiciário. Trata-se de exigência inconcebível para os poderes da República e para a sociedade brasileira.
Como Jean Bodin já indicava nos primórdios do sistema internacional, a soberania é “inalienável” porque constitui a própria essência do Estado moderno, que não reconhece qualquer autoridade externa “superior”. A soberania, portanto, só é “negociada” pelo Estado na rendição. Não é o caso.
Respeitado o direito mútuo à autodeterminação – princípio que emana da própria Revolução Americana – toda negociação é bem-vinda. Mas a situação exige uma resposta global que reafirme e promova a cooperação internacional multilateral com base nos princípios da não-intervenção, da igualdade entre os Estados e do direito ao desenvolvimento. O mundo do século XXI não comporta “recaídas imperiais”.
Leia mais: Como China, BRICS enfrentam modelo imperial de Trump
Luis Fernandes é professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio e da UFRJ.
*Artigo originalmente publicado no jornal O Globo em 31/07/2025, sob o título Tarifaço é a nova Guerra do Ópio.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.