A história do Fórum Social Mundial (FSM) é bem conhecida. Surgiu em 2001, como reação à economia política neoliberal dos anos 1990 e como contraponto ao Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. Desde então, movimentos sociais, organizações da sociedade civil e partidos de esquerda realizaram poderosos encontros anuais, nos quais se discutiam alternativas globais ao modo de produção capitalista. Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, tornou-se a principal sede, mas cidades como Dakar, Nairóbi e Túnis também receberam edições do FSM.
Naquele início de século, o mundo vivia uma onda progressista em resposta ao neoliberalismo — especialmente na América Latina. Em 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional ocupou Chiapas, no México, em uma contundente manifestação contra o Nafta, o acordo de livre-comércio entre México, EUA e Canadá. Poucos anos depois, em 1998, Hugo Chávez foi eleito presidente da Venezuela. A partir daí, consolidou-se o chamado Ciclo Progressista — ou “Onda Rosa” — que levou ao poder lideranças como Lula e Dilma no Brasil, Evo Morales na Bolívia, Rafael Corrêa no Equador, Néstor e Cristina Kirchner na Argentina, Fernando Lugo no Paraguai, Pepe Mujica e Tabaré Vázquez no Uruguai, Ollanta Humala no Peru e Michelle Bachelet no Chile.
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Em Porto Alegre, milhares de jovens se reuniam para ouvir os discursos inflamados e anti-imperialistas de Chávez, Lula, Morales, Corrêa e outros líderes progressistas. O lema “um outro mundo é possível” não era apenas um slogan, mas um chamado que mobilizava corações e mentes contra a lógica do consumismo e em favor de uma relação mais harmônica entre humanidade e natureza.
Entretanto, a história não segue linhas retas. Logo veio a reação neoliberal, conservadora e autoritária. Jair Bolsonaro no Brasil, Javier Milei na Argentina, Donald Trump nos EUA, Viktor Orbán na Hungria, Giorgia Meloni na Itália e Nayib Bukele em El Salvador são exemplos de líderes que ascenderam com base em um populismo de extrema direita. Muitos dos que sonhavam com “um outro mundo possível” passaram a temer o avanço de novos fascismos. Até autores liberais de centro-direita, como Steven Levitsky, Daniel Ziblatt e Yasha Mounk, soaram o alarme em best-sellers de títulos sugestivos, como Como as democracias morrem e O povo contra a democracia. Paralelamente. O FSM perdeu vitalidade e deixou de mobilizar multidões.

Assembleia dos Movimentos Sociais no Fórum Social Temático, em Porto Alegre (RS), em 23/01/2016. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
A pergunta que se impõe é inevitável: não seria a hora de um novo Fórum Social Mundial, à altura do nosso tempo? A crítica ao neoliberalismo permanece atual, mas hoje é igualmente urgente enfrentar o avanço da extrema direita e do autoritarismo.
Há sinais de esperança espalhados pelo planeta. No México, López Obrador e Claudia Sheinbaum demonstram que é possível governar para os mais pobres. No Chile, a esquerda construiu unidade em torno da liderança de uma mulher comunista, Jeannette Jara. Em Burkina Faso, no coração da África Ocidental, o jovem Ibrahim Traoré reivindica a herança anticolonial e propõe um novo projeto nacional. No próprio centro do capitalismo financeiro global, em Nova York, o socialista democrático Zohran Mamdani desponta como favorito à prefeitura – passo que pode pavimentar uma futura candidatura presidencial de Alexandria Ocasio-Cortez nos EUA.
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Essas experiências se desenvolvem em meio a um cenário de transformação geopolítica: o declínio relativo da hegemonia dos Estados Unidos e a ascensão acelerada da China socialista, expressa no fortalecimento dos BRICS como articulação estratégica do Sul Global. As instituições herdadas dos Acordos de Bretton Woods — criadas para assegurar um sistema financeiro internacional controlado pelo Norte Global, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial — perdem gradualmente relevância diante de novas iniciativas, como o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e os mecanismos de desdolarização apoiados por sistemas de pagamentos transfronteiriços emergentes.
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É nesse contexto que a convocação de um novo Fórum Social Mundial se torna histórica. Se mudanças já ocorrem “por cima”, por meio de novas dinâmicas estatais de governança, é fundamental que também aconteçam “por baixo”, no âmbito de uma sociedade civil global. Um encontro capaz de voltar a encantar a juventude, fortalecer a solidariedade, inspirar mobilizações planetárias e reafirmar que um outro mundo é possível – sem neoliberalismo e sem fascismo.
Theófilo Rodrigues é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UCAM e coordenador do Grupo de Pesquisa da FMG sobre a Sociedade Brasileira.
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.