Eleições na Província de Buenos Aires na Argentina e o ocaso de Milei
No cenário político dinâmico e muitas vezes imprevisível da Argentina, as eleições legislativas na província de Buenos Aires foram um evento de importância capital. A votação, que renovou 23 cadeiras no Senado e 46 na Câmara dos Deputados da Legislatura Provincial, serviu como um termômetro da política nacional, um teste crucial para as forças políticas em jogo.
O resultado, que deu à aliança peronista de centro-esquerda 47% dos votos contra 33,8% da aliança de direita apoiada pelo presidente Javier Milei, foi mais do que uma vitória local. Foi um sinal claro de mudança na maré política e uma indicação das crescentes dificuldades enfrentadas pelo governo central.
A eleição na província de Buenos Aires, a maior da Argentina em população e território, foi habilmente transformada pela mídia e pelos partidos políticos em um referendo sobre o governo Milei. O resultado reflete diretamente o sentimento de descontentamento da população, levando a uma derrota significativa para a aliança de direita.
Leia mais:
Utopia do estado mínimo traz impactos sociais na Argentina
Memória e Verdade: a violência contra as mulheres na ditadura argentina
Embora o cenário eleitoral na província seja complexo, com oito grandes distritos e um sistema de votação não estritamente proporcional, a direita e a extrema-direita se mostraram desarticuladas e fragmentadas, em forte contraste com a solidez da coalizão peronista.
A derrota do governo não pode ser atribuída a um único fator. Uma confluência de eventos acelerou o desgaste político, como a insatisfação popular com a economia e os recentes casos de corrupção. O envolvimento de figuras-chave, incluindo a própria irmã de Milei, Karina Milei, teve um impacto devastador na credibilidade da administração. Esses escândalos são vistos como particularmente graves, pois atingiram a base eleitoral que mais sofreu com os cortes de gastos, como os aposentados e o sistema de assistência a pessoas com deficiência.
Em meio a esse cenário de adversidade, o governador de Buenos Aires, Axel Kicillof, emerge como uma figura de proeminência incontestável. Ex-ministro da economia no governo de Cristina Fernández de Kirchner e reeleito governador em 2023, Kicillof se destaca como a liderança mais forte da oposição e um possível candidato presidencial. Sua ascensão reflete a resiliência do peronismo, que tem a capacidade histórica de se reerguer e se aglutinar em torno de uma liderança forte quando parece à beira do colapso.
Leia mais sobre América Latina:
Venezuela sob ataque: Trump intensifica pressão e ameaça soberania sul-americana
Chile: Lawfare contra Daniel Jadue expõe ameaça à democracia na América Latina
Programa China-América Latina projeta autonomia digital e independência das Big Techs
Kicillof se diferencia de seu adversário por seu perfil acadêmico e por manter uma postura mais austera e respeitosa, evitando a agressão verbal que tem caracterizado a retórica da extrema-direita. Ele personifica o mal-estar da população com o governo.
As perspectivas para o governo após a derrota na província são “muito complicadas”. O próprio Milei, em sua declaração pós-eleição, não demonstrou disposição para o diálogo, afirmando que irá aprofundar as mudanças, o que sugere um caminho de maior confronto. A instabilidade é agravada por rumores sobre a possível saída do ministro da Economia, Luis Caputo, e pela incerteza em torno da economia, que pode enfrentar uma crise de fuga de capitais.
A vitória do peronismo em Buenos Aires não é apenas um feito eleitoral. É um lembrete da persistente influência da tradição peronista e da capacidade de seus líderes de se adaptarem e capitalizarem o descontentamento popular.
Nesse cenário, a figura de Axel Kicillof emerge como a mais forte da oposição, com seu perfil acadêmico e sua abordagem calma contrastando fortemente com a polarização e as agressões verbais que marcaram a campanha. A derrota do governo é um sinal de alerta de que suas políticas e sua imagem estão sob escrutínio crescente, e o caminho à frente para a Argentina está repleto de incertezas, tanto no plano político quanto no econômico. A eleição em Buenos Aires, portanto, foi muito mais do que um evento local: pode ter sido um presságio de desafios significativos para o futuro político da nação.
Javier Vadell é professor do departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica – PUC de Minas Gerais.
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.