Logo Grabois Logo Grabois

Leia a última edição Logo Grabois

Inscreva-se para receber nossa Newsletter

    Comunicação

    Episódio sinistro de Virgulino Ferreira

    A Jorge Amado e Odorico Tavares I Sobre um chão de sol manchado, passeavas pelos campos o teu cangaço sem rumo. Com um olho na morte e o outro no fel que se elaborava em tua vida sem prumo. Teus olhos apenas viam fogo, sol, lâmina, fumo e apetrechos de emboscada. Em vez de chapéu, […]

    POR: Redação

    6 min de leitura

    A Jorge Amado e Odorico Tavares

    I

    Sobre um chão de sol manchado,
    passeavas pelos campos
    o teu cangaço sem rumo.
    Com um olho na morte e o outro
    no fel que se elaborava
    em tua vida sem prumo.

    Teus olhos apenas viam
    fogo, sol, lâmina, fumo
    e apetrechos de emboscada.
    Em vez de chapéu, possuías
    um céu de couro à cabeça
    com três estrelas fincadas.

    Tua missão neste mundo
    era governar o escuro:

    acender uma fogueira
    com os mil destroços da fúria.

    Cultivar lavoura estranha:
    semear em sepultura.

    E arriscar, que é certo o risco
    na profissão da aventura.

    Nos sítios onde campeavas,
    nordeste avaro e sinistro
    de sóis sem fim do sertão,
    povoavas as campinas,
    as vastidões desoladas
    com tua negra solidão.

    A solidão que habitava
    teu sono e tua ração

    e que ia mesmo até onde
    não ia um boi nem um cão,

    onde não chegava um homem
    nem sua degradação,

    onde não iam as aves
    nem ia a recordação,

    onde só ia ela mesmo,
    em tua perseguição.

    II

    A feira de Vila Bela
    tem chocalhos para vacas.
    Na feira de Vila Bela,
    feijão e pó nas barracas.

    Na feira de Vila Bela,
    arreios, cordas e facas.
    Na feira de Vila Bela,
    chapéus de couro, alpercatas.
    Na feira de Vila Bela,
    um ceguinho pede esmola.
    Na feira de Vila Bela,
    o cego e sua viola:

    – “Dona, siga o meu conselho,
    vá rezar uma oração,
    porque eu já vejo, à distância,
    a ira de Lampião.
    Fiquem somente os soldados,
    o sargento e o capitão.

    Fico eu também que sou cego
    e não sei da claridade.
    Se Lampião me matar,
    mata somente a metade,
    que a outra já levou Deus
    por sua agreste vontade”.

    III

    Às cinco horas, a tarde
    aguardava a escuridão.
    Uma cabra ruminava
    e um boi dormia no chão.
    Pelo silêncio voava
    o vento da solidão
    e o longo céu transformava
    seu ourazul em carvão.

    Às seis e meia da noite,
    Corisco cuspiu no chão,
    Volta Seca olhou em torno,
    fez sinal a Lampião.

    Às sete e meia da noite,
    Virgulino disse: não.
    Só meia hora depois
    cuspiu fogo a sua mão.

    Na frente seguem as balas
    e, logo após, o trovão.
    Depois dele vai Lusbel
    no corpo de Lampião.

    Por dez minutos, o chumbo
    passeou na escuridão,
    entrou no medo de alguns
    e, de outros, no coração.

    Entrou também, de repente,
    na branca imaginação
    das mocinhas que dormiam
    com os seios presos na mão.

    – “Venha o chefão”! Ele veio.
    Foi passado no facão.
    – “Venha agora o carcereiro
    que é homem sem precisão.

    Saia o vigário da igreja
    pra me dar sua bênção.
    Volta Seca, solte os presos
    que o mundo já é prisão”.

    IV

    Veio o sol imperecível
    e iluminou toda a vila,
    pôs luz no ar e no medo
    na carne, no pó, na argila.

    Banhou de luz um vaqueiro
    que tinha de uma fazenda,
    parou na almofada de uma
    avó que fazia renda.

    Desceu ao chão e secou
    sangue rubro derramado,
    brilhou nos botões da farda
    do cadáver de um soldado.

    Na meia-manhã, a vila
    preparava um pelotão
    para sair pelos campos
    afora, em persguição.

    Mas norte, sul, leste e oeste,
    pra toda a parte é sertão
    e nele ninguém descobre
    Virgulino Lampião.

    V

    Um dia é apenas um dia,
    pois os dias, dias são.
    Um dia será teu dia,
    Virgulino Lampião.

    Teus olhos míopes, tua
    coragem e tua mão
    ficarão paralisados,
    Virgulino Lampião.

    De nada adiantará
    aquela forte oração
    que te deu em Juazeiro
    Padre Cícero Romão.

    A morte será tão grande
    que até mesmo a solidão
    que há tantos anos te habita
    será cortada a facão.

    VI

    A feira de Vila Bela
    tem chocalhos para vacas.
    Na feira de Vila Bela,
    feijão e pó nas barracas.
    Na feira de Vila Bela,
    arreios, cordas e facas,
    Na feira de Vila Bela,
    chapéus de couro, alpercatas.
    Na feira de Vila Bela,
    um ceguinho pede esmola.
    Na feira de Vila Bela,
    o cego e sua viola:

    – “A lenda tem pés ligeiros
    e corre mais no sertão,
    corre mais do que lembrança,
    mais que soldado fujão.

    Corre mais que tudo, só
    não corre mais que oração
    e isso mesmo quando é feita a
    Padre Cícero Romão.

    Hoje todo o mundo sabe
    quem foi ele, o capitão.
    Junta o sabe e o não sabe
    e inventa outro Lampião.

    Mas, dele mesmo, não sabem
    e nem nunca saberão,
    pois ele nunca viveu,
    não era sim, era não,

    como essas coisas que existem
    dentro da imaginação.
    Quem puder que invente outro
    Virgulino Lampião.

    Carlos Pena Filho
    Livro Geral – Poemas
    Organização e seleção de textos: Tania Carneiro Leão
    3ª Edição