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    Comunicação

    Explico algumas coisas

    Perguntam-me: onde estão os lírios? E a metafísica coberta de papoulas? E a chuva que muitas vezes golpeava suas palavras enchendo-as de frestas e pássaros? Vou lhes contar tudo o que me passa. Eu vivia num bairro de Madrid, com campanários, com relógios, com árvores. Dali se via o rosto seco de Castela como um […]

    POR: Pablo Neruda

    3 min de leitura

    Perguntam-me: onde estão os lírios?
    E a metafísica coberta de papoulas?
    E a chuva que muitas vezes golpeava
    suas palavras enchendo-as
    de frestas e pássaros?

    Vou lhes contar tudo o que me passa.

    Eu vivia num bairro
    de Madrid, com campanários,
    com relógios, com árvores.
    Dali se via
    o rosto seco de Castela
    como um oceano de couro.
    Minha casa era chamada
    a casa das flores, porque por todas as partes
    brotavam gerânios: era uma bela casa
    com cachorros e crianças.

    Raul, lembra?
    Lembra, Rafael?
    Frederico, lembra?
    Debaixo da terra,
    lembram da minha casa com balcões
    onde a luz de junho afogava flores em suas bocas?
    Irmão, irmão!

    Tudo
    era burburinho de vozes, o sal das mercadorias
    aglomeração de pão palpitante,
    mercados de meu bairro de Arguelles com sua estátua
    como um tinteiro pálido entre as merluzas:
    o azeite chegava em colheres,
    uma profunda palpitação
    de pés e mãos enchia as ruas,
    metros, litros, essência
    aguda da vida,
    pescados amontoados,
    contextura dos tetos com sol frio no qual
    a flecha se fatiga,
    delirante marfim fino das batatas,
    tomates se espalhando até o mar.

    E numa manhã tudo estava ardendo,
    e numa manhã fogueiras
    saiam da terra
    devorando seres,
    e desde então fogo,
    pólvora desde então,
    e desde então sangue.
    Bandido com aviões e mouros,
    bandidos com anéis e duquesas,
    bandidos com padres de preto abençoando-os
    vinham pelos céus a matar crianças,
    e pelas ruas o sangue de crianças
    corria simplesmente, como sangue de crianças.

    Chacais que os chacais rechaçariam,
    pedras que o cardo seco morderia e cuspiria,
    víboras que as próprias víboras odiariam!

    Frente a vocês vi o sangue
    de Espanha levantar-se
    para afogá-los em uma só onda
    de orgulho e de punhais!

    Generais
    traidores:
    olhem minha casa morta,
    olhem a Espanha dilacerada:
    porém de cada casa morta sai metal ardendo,
    em vez de flores,
    porém de cada ferida da Espanha
    desperta a Espanha,
    porém de cada criança morta levanta-se um fuzil com olhos,
    porém de cada crime nascem balas
    que acharão um dia o vosso coração.

    E me perguntam: por que os seus poemas
    não falam dos sonhos, das folhas,
    e dos grandes vulcões de seu país natal?

    Venham ver o sangue pelas ruas,
    venham ver
    o sangue pelas ruas,
    venham ver o sangue
    pelas ruas!