Em novembro de 1998, Fernando Henrique Cardoso disse, num discurso, que no Brasil não há conservadores – quando muito, há atrasados. Na ocasião ele apenas repetia o que já dissera um ano antes e, como sempre, sem muito propósito. Tratava-se, segundo ele, de citação de uma frase que atribuía a Sérgio Buarque de Holanda, que a teria pronunciado numa banca examinadora, contestando nesse ponto a candidata cuja tese, entre inúmeros outros temas, analisava também o pensamento conservador no Brasil.

A candidata de então, e hoje professora associada da Universidade de São Paulo, era Paula Beiguelman. Princípios convidou-a a comentar o assunto e o resultado é o artigo que segue.

Depois de transferir para a história das idéias a noção de estilo, elaborada na história da arte, o filósofo e sociólogo Karl Mannheim observa que o pensamento europeu de fins do século XVIII e da primeira metade do século XIX tendeu a articular-se em torno das diferenças desenvolvidas a partir dos acontecimentos da Revolução Francesa e da estruturação da sociedade de classes. Essa conexão do pensamento com as linhas políticas permitiria construir polarmente os estilos de pensamento liberal e conservador, aos quais se viria acrescentar posteriormente o estilo de pensamento socialista.

Para exemplificar o novo método, Mannheim escolhe o pensamento conservador (l), estudando-o especialmente na forma como se manifestou na Alemanha e na qual, mais que em qualquer outra vertente, se encontrariam evidenciadas todas as implicações lógicas da posição assumida.
A análise se inicia caracterizando a resposta conservantista ao racionalismo moderno, interpretado este em termos de um pensamento generalizador, abstrato e quantificador, que identifica a verdade com a validez universal e percebe o homem apenas por aquilo que o generaliza e socializa a Razão.

Quanto aos nexos e atitudes vitais, bem como as correspondentes formas intuitivas, qualitativas e concretas do pensamento, são progressivamente recalcadas para a periferia da vida capitalista. E apenas entre a nobreza, camponeses e pequena burguesia as tradições seriam mantidas vivas, ficando a burguesia e o proletariado cada vez mais imersos na nova ordem.
A gênese do conservantismo significaria elevar esses elementos, assim recalcados, ao nível da reflexão, dando origem a uma contralógica elaborada à base dos fatores intelectuais ameaçados pela vitória do racionalismo burguês. Isto é, o pensamento conservador corresponderia, no plano metodológico, ao anticapitalismo dos estratos sociais não diretamente interessados ou mesmo ameaçados pelo processo capitalista.

O sentido da característica mais evidente da lógica conservadora – o apelo ao concreto, ao qualitativo pode ser melhor entendido através do exame do seu papel na discussão das categorias burguesas básicas: propriedade, liberdade e igualdade.
Ao opor-se à propriedade capitalista,o conservantismo ressalta o caráter genuíno da apropriação feudal, que implica certos privilégios inalienáveis que são conservados pelo detentor mesmo depois de perder a posse: a apropriação feudal não conhece a alienação característica da propriedade burguesa, exterior ao proprietário.

Contra a idéia da liberdade individual associada à igualdade, o conservantismo elabora a idéia qualitativa de uma liberdade que representaria a possibilidade do desenvolvimento das peculiaridades individuais de pessoas desiguais. E para escapar a um conceito subjetivo capaz de conduzir à anarquia, a liberdade qualitativa é transferida dos indivíduos para as comunidades orgânicas: estamentos, espírito nacional, Estado (os verdadeiros sujeitos da liberdade).

O pensamento conservador foi elaborado na Alemanha em dois momentos principais.
No primeiro, surge como resposta à tendência ilustrada da monarquia prussiana da segunda metade do século XVIII. A resistência à homogeneização no terreno do direito e da justiça estimula o recurso a um método antigeneralizador, com o qual se fundamenta a diversidade criada pelo direito costumeiro.

Correlatamente, aincompatibilidade do jusnaturalismo com as instituições feudais clássicas leva o conservantismo a combater, em nome de um raciocínio prático, atento às circunstâncias efetivas, a dedução teórica que parte de abstrações doutrinárias. A servidão, por exemplo, condenada pela teoria jusnaturalista, se justificaria pelo universo cultural em que se desenvolveu e pelas relações que criou (prática). Em suma, o conservantismo nega as doutrinas básicas do jusnaturalismo burguês-revolucionário: estado de natureza, contrato social, soberania popular, direitos inalienáveis do homem.
Num segundo momento o conservantismo reage aos triunfos da burguesia colocando em questão os próprios fundamentos lógicos do jusnaturalismo.

O mundo racional burguês de normas abstratas e calculabilidade de conduta é substituído por uma visão particularizadora, que suprime a previsibilidade. Os fatores nãoracionais, considerados irracionais pela lógica burguesa, passam a ser tratados como supra-racionais. História e Vida são contrapostas à Razão, e a realidade ao pensamento.

Dessa maneira, o conservantismo chega à noção de um conhecimento dinâmico, elaborado em três estágios.

No primeiro, a dedução linear de um axioma, característica do jusnaturalismo, é substituída pelo raciocínio em termos de antíteses.

No segundo estágio, o conceito racionalista é substituído pela noção de idéia, referida ao processo de apreensão da realidade influxo No novo contexto, a teoria passa a ser percebida vinculada à prática: a cognição seria a ação e o conhecimento que emerge da ação.

O terceiro estágio consiste na elaboração hegeliana da dialética, que completa a racionalização do irracional (racionalização de ordem superior) compreendendo o indivíduo histórico único em termos da seqüência lógica: tese, antítese e síntese.

Como é sabido, o marxismo leva em conta a dialética hegeliana preparada pelo conservantismo, mas substitui a dinâmica do Espírito pelo processo social economicamente determinado. Igualmente vincula teoria e práxis e também recolhe a descoberta do caráter abstrato das relações capitalistas, mas interpreta e situa o anticapitalismo com referência à luta por uma ordem futura (2). Também rejeita a idéia do indivíduo como base do processo histórico; mas enquanto o conservantismo tende a construir entidades orgânicas cujo protótipo é a família, o pensamento socialista percebe nas classes a força motriz da história. E principalmente adota a perspectiva dos dominados do sistema, que constituem o proletariado.

Além da matriz alemã, há que registrar também a matriz inglesa do conservantismo.
Com efeito, ante a propaganda radical que, dado o êxito da Independência norte-americana e da Revolução Francesa, pretendia estimular na Inglaterra a realização de uma "terceira revolução", o capitalismo inglês assumiu uma atitude defensiva, com desdobramentos doutrinários. É nesse contexto que Edmund Burke, embora fosse representante do capitalismo anticolonialista que apoiara a Independência norte-americana, formula nas suas Reflexões sobre a Revolução Francesa (1790) a crítica das potencialidades subversivas do direito natural, a fim de opor-se a uma eventual transformação por via revolucionária.

Nessa obra, escrita sob o impacto da Revolução Francesa em pleno curso, Burke distingue a mudança política e social (revolução) que "cria a nova propriedade territorial em conexão com a nova república" da reforma operada pela Revolução Gloriosa (1688) que se limitou a implantar um regime capaz de expressar no plano político a distribuição efetiva do poder sócio-econômico. Enquanto a Revolução Gloriosa se apresentava como a maneira de evitar que fossem postergados direitos tradicionais do povo inglês, herdados dos antepassados, a Revolução Francesa legitimava-se com o apelo ao direito natural que, adotado como critério para avaliação do direito positivo, permite que se faça tábula rasa da ordem vigente e se crie uma ordem nova Contra a Constituição racionalista. deduzida do direito natural. define a Constituição prescriptim. que retira sua autoridade do fato de ter existido desde tempos imemoriais. E ao tratamento abstrato dos problemas de governo. contrapõe a idéia da ciência do governo como ciência experimental.

Por fim, depois de substituir o racional pelo razoável Burke. na busca de um baluarte contra as conseqüências perturbadoras do complexo •fIlosofia. luzes, liberdade e direitos do homem", não recua ante a própria apologia do obscurantismo e dos preconceitos. "Sou suficientemente audaz para confessar nesta idade ilustrada que somos geralmente homens de sentimentos inatos – que em vez de prescindir de nossos velhos preconceitos os fomentamos ( … ); o preconceito dá uma norma de ação e evita a irresolução."

Também no Brasil encontramos presente um estilo de pensamento conservador a partir da revolução industrial. O que o caracteriza essencialmente é a posição acrítica com respeito ao status quo sócio-econômico, com destaque para o escravismo.

A defesa doutrinária da escravidão ganha vulto com a Revolução Francesa.

Ante a ameaça da propagação dos princípios que haviam sido postos em prática nas colônias francesas, o escravismo, ao mesmo tempo que rotula de jacobinas as idéias abolicionistas, recolhe a recém-elaborada crítica conservantista ao raciocínio apoiado no direito natural. Assim, Azeredo Coutinho invoca o critério da necessidade social para legitimar a escravidão.

Mais tarde, a má-consciência com respeito à matéria, vigente na opinião mais esclarecida, será interpretada pelo regressismo de Bernardo Pereira de Vasconcelos como um exemplo de atitude não-realista de aceitação de um padrão inadequado ao contexto brasileiro. O próprio tráfico de escravos representaria, ao contrário, (segundo o regressismo) fator de progresso.

Intensificando-se a campanha abolicionista na década de 1880, o conservantismo refutava o conteúdo doutrinário do movimento como decorrente de um raciocínio incapaz de apreender a realidade empírica. Assim, escaparia aos agitadores o fato de que aqueles que pretensamente se visava beneficiar com a liberdade se veriam lançados na anomia com a emancipação geral. Da mesma forma, segundo o conservantismo, o raciocínio abstrato dedutivo dificultaria perceber como da sujeição da raça negra resultavam na prática relações baseadas no exercício de uma proteção paternalista que integrava afetivamente o senhor e seus escravos numa mesma comunidade, ressalvada a diferença de papéis …

Correlatamente, a ordem escravista perdia sua conotação negativa (espoliação do trabalhador escravo) e passava a se inserir num universo de significações culturais que representariam a forma peculiar de ser da sociedade. A crítica ao raciocínio generalizador e a complementar insistência na peculiaridade brasileira são, portanto, utilizadas pelo escravismo para negar a legitimidade de implantar-se a liberdade do trabalho, que não passaria de um padrão exógeno, próprio das economias industriais.
É também o desencadeamento da campanha abolicionista que estimula a expressão de conceitos como os enunciados por Pereira Barreto em 1880 e que evocam os de Burke.

Tratando-se de porta-voz do imigrantismo, não podemos considerar Pereira Barreto perfeitamente identificado com a manutenção do status quo. Será antes o exclusivo receio das potencialidades revolucionárias da agitação abolicionista que o conduz, com o recurso a um raciocínio conservador, à circunstancial defesa do escravismo, uma vez que em 1880 a introdução da grande imigração subvencionada não estava ainda equacionada. Essa virtualidade ideológica, aliás, decorre de maneira fundamental do fato de que, ao contrário do pensamento abolicionista elaborado por Joaquim Nabuco, que adota a perspectiva dos dominados do sistema (e ao qual faremos referência mais adiante) o imigrantismo é a ideologia dos beneficiários do processo.

Quanto a Pereira Barreto, atendo-se à dinâmica espontânea do sistema centrado na lavoura cafeeira, opõe à "metafísica" que subverte a ordem vigente em nome do direito natural (revolução) a idéia da abolição como conseqüência necessária e automática do estabelecimento de uma corrente imigratória (evolução).

Ao mesmo tempo, contrapunha ao "raciocínio absoluto" que conduzia ao abolicionismo, a compreensão das condições empírico-concretas em que a escravidão se tomava necessária e que pretensamente a justificariam.

Por fim, como Burke invocando o obscurantismo, o cientista Pereira Barreto não trepidará em combater o movimento abolicionista apelando para os preconceitos sobre a "raça inferior". "Em definitivo, a preponderância da raça ariana é fundada sobre condições naturais, que seria fútil contestar".
A doutrina conservadora esteve marcadamente presente na construção do arcabouço institucional do Segundo Reinado.

O Código de Processo Criminal de 1832 e o próprio Ato Adicional de 1834 haviam criado uma estrutura judiciária, administrativa e paramilitar de cunho localista e descentralizado. Tal esquema, além de estimular a rebeldia autonomista permitia que, no bojo da agitação, viesse à tona a insatisfação popular.

O regressismo de Bernardo Pereira de Vasconcelos não tardará a apontar a ineficácia do liberalismo localista para a autodefesa da sociedade, preconizando o "regresso" à Autoridade. Em maio de 1840 promulgava-se a lei de interpretação do Ato Adicional. E em 3 de dezembro de 1841 era reformado o Código de Processo criminal de 1832. O autonomismo era derrotado pelo centralismo em benefício da sociedade senhorial (embora à sua revelia) de maneira a propiciar as condições organizatórias sem as quais os detentores do poder sócio-econômico se entrechocariam como forças equivalentes.

Com efeito, a doutrina institucional regressista se desenvolve em tomo da constatação de que a autonomia localista dificultava de fato o exercício das liberdades civis, dado o caráter faccioso da justiça local. A esse autonomismo era contraposto um Executivo central atuante, que introduziria uma justiça governamental objetiva e também desestimularia a desordem.

Ou seja, à referência indiscriminada aos padrões defendidos pelo liberalismo político – que levaria a uma ação inconsistente, inadequada aos próprios fins propostos – o conservantismo opunha um esquema realista, atento às circunstâncias e às peculiaridades da sociedade senhorial brasileira.
Essa atitude, é certo, estimulava a descoberta das características organizatórias específicas da sociedade agrária não-campesina criada pela monocultura escravista. Mas o conhecimento alcançado e esgotava na fundamentação de um planejamento institucional que visava simplesmente preservar o equilíbrio da sociedade, mas não cogita a de por em questão os próprios fundamentos dela, aceita como dado, e não discutida como problema.

Também o pensamento abolicionista focaliza a especificidade da realidade brasileira.
Entretanto, adotada a perspectiva do escravo e a partir de um confronto contrastante com o modelo das sociedades de economia industrial, essa realidade recebe uma avaliação negativa, impelindo à busca de recursos teóricos para o estabelecimento de suas determinações. Daí resulta de imediato o seu tratamento como uma estrutura articulada (sistema).

É com referência a esse sistema que Joaquim Nabuco elabora o conceito de Escravidão. "Quando emprego a palavra Escravidão, sirvo-me de um termo compreensivo, como é, por exemplo, na França, a expressão Antigo Regime, dos resultados do nosso sistema social todo, o qual é baseado sobre a escravidão."

Ao procurar a determinante desse sistema, o raciocínio abolicionista o dissocia analiticamente em planos, dos quais o básico seria o regime territorial e agrícola. Esse plano, que assim se destaca, não é elevado, porém, à categoria de causa: o regime territorial e agrícola escravista é, ele próprio, manifestação do princípio ordenador do sistema em que se insere, isto é, representa o regime territorial e agrícola da Escravidão.

O abolicionismo registra que nesse quadro o elemento nacional é apenas admitido ao trabalho na condição de escravo, ao mesmo tempo em que milhões de produtores potenciais são mantidos em economia de subsistência, nos interstícios da grande lavoura. Apontando assim como alvo a incorporação econômica normal da massa popular brasileira, o abolicionismo transcende a batalha pela emancipação jurídica do escravo, ampliando-a para a reivindicação da mudança do próprio sistema em que a escravidão se insere – e que pode persistir mesmo depois de abolido o estatuto escravista.

O estreito vínculo entre teoria e práxis transformadora no pensamento abolicionista contribui ainda mais para cogitarmos de estabelecer uma correspondência com o terceiro estilo de pensamento, o socialista.

Com efeito, no pensamento de Joaquim Nabuco reencontramos o modelo da metodologia e do raciocínio dialético marxista, desenvolvido, embora com o recurso a categorias peculiares, referidas à análise do sistema periférico tropical e à
participação nas lutas da conjuntura abolicionista (1879-1888).
Da mesma forma, os dominados do sistema cuja perspectiva é adotada são o proletariado num caso, e os escravos no outro. (3)

* Paula Beiguelman é Professora Associada da USP e Vice-Presidenta do Sindicato dos Escritores no Estado de São Paulo.

Notas:
(1) V. "Conservative thought". In:
Essays on sociology and social psychology, Routledge & Kegan Ltd., Londres, 1953.
(2) No Manifesto Comunista é feita uma crítica contundente ao anticapitalismo feudal. Cf. especialmente o tópico "O socialismo feudal".
(3) Para uma mais ampla explanação sobre o pensamento abolicionista ver "Teoria e ação no pensamento abolicionista". In: Formação política do Brasil, de nossa autoria, pp. 177-210, Pioneira, 1976.

EDIÇÃO 52, FEV/MAR/ABR, 1999, PÁGINAS 44, 45, 46, 47, 48, 49