Segundo o autor, “enfrentar o problema das eleições que virão pela frente, tanto das municipais quanto das parlamentares e a presidencial, é inescapável. O caminho, como sempre, está em combinar a luta social à luta institucional. Não se deve abrir mão de qualquer uma das duas vertentes. É improdutivo, ainda que reconheça a legitimidade do impulso, recusar as instituições, que estão fortemente desgastadas (…). O caminho completamente extrainstitucional vai fracassar, embora o caminho exclusivamente institucional tenha mostrado seus limites”. Continua o texto, “tentou-se formar uma frente única de esquerda e não deu certo. O esforço resultou em duas frentes, a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo (…). No que se refere à unidade eleitoral, a divisão sugere que, no fundo, PT, PCdoB e PSOL não conseguiram se juntar. Sem estabelecer essa base, à qual se deveriam agregar diversos outros partidos, e quem sabe movimentos sociais (em um formato ainda a ser inventado) haverá visível fragilidade na esfera decisória. Para barrar os retrocessos postos acima, o sectarismo precisa ser considerado pecado mortal. A frente ampla tem de ser unificada em torno da questão da democracia, isto é, reunir todos aqueles que são a favor da democracia”. E conclui: “a bandeira da legalidade ficou com a esquerda. Quem praticou a ilegalidade foi a direita e os setores de centro que a ela se associaram – centro o qual, aliás, precisa ser deslocado em direção às posições de defesa dos direitos conquistados. Não conseguiremos a maioria de que precisamos sem a adesão, também, de setores de centro”. Leia abaixo o artigo completo.

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Por uma frente ampla, democrática e republicana (1)

O golpe parlamentar em curso colocou a classe trabalhadora numa situação de defensiva, qualquer que seja o seu resultado. Entender o quadro a partir do ângulo de classes é o mais rentável do ponto de vista analítico. O governo de Michel Temer, até este momento interino, apresenta um programa claramente neoliberal. Com algumas diferenças, é o mesmo responsável pela quebra dos países do sul da Europa e vem sendo implementado em diversos lugares, com características locais, mas sempre com igual sentido. Basta ver as propostas que estão sobre a mesa – e as que permanecem no ar – para verificar o caráter da ofensiva em curso (2). Para exemplificar o que desejo transmitir e ser breve, vou me referir apenas a temas estruturais.

Em 24 de maio de 2016, foi dada a largada para a plataforma regressiva. O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, anunciou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que contém o aumento do gasto público por prazo prolongado, limitando-o à inflação. Isso significa constitucionalizar restrições ao investimento social, na mão contrária do que foi decidido em 1988, quando promulgada a atual Carta. Se aprovada a PEC ora anunciada, a margem de manobra do Estado ficaria restrita, mesmo que a receita volte a subir, o que certamente vai acontecer porque a economia não permanecerá sempre em recessão. Trata-se de mudança que implica congelar, por tempo amplo, as possibilidades de diminuir a desigualdade via políticas sociais. Seria uma maneira de brecar o decidido pelo Congresso Constituinte eleito em 1986.

Em segundo lugar, fala-se em instituir idade mínima para a aposentadoria, assunto que estava parado há quase vinte anos. Quando em 1998 Fernando Henrique Cardoso tentou levá-lo adiante, foi barrado na Câmara dos Deputados (é verdade que por apenas um voto). Hoje, a intenção de Temer é mais radical do que a de FHC, pois pretende atingir os que já que estão no mercado de trabalho. Constitui questão de grande impacto, pois diz respeito a um dos mais importantes direitos do trabalhador: o de ter uma garantia de renda por parte do Estado depois de ter passado uma vida na labuta. Convém lembrar que muitos dos brasileiros de baixa renda começam a trabalhar muito cedo, sendo os principais prejudicados pela eventual mudança.

Terceiro, cogita-se de desvincular a seguridade social dos aumentos do salário mínimo. Para se ter uma ideia do que está em jogo, o economista Guilherme C. Delgado, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), mostra que há 30 milhões de benefícios vinculados ao salário mínimo: 18,3 milhões da própria Previdência, 8 milhões do seguro-desemprego e 3,9 bilhões do Benefício de Prestação Continuada (BPC)(3). São direitos da base da pirâmide que equivalem, em valor, a dez vezes o Bolsa Família. “Removido esse vínculo, a questão do piso de benefícios sociais passaria a ser assunto administrativo do Ministério da Fazenda, a serviço do ‘ajuste fiscal’, como assim o fora na época dos governos militares”, afirma Delgado. Em um cálculo inexato, mas expressivo, multiplique-se o número de benefícios por quatro (a família média) para imaginar quantos cidadãos poderiam eventualmente ser indiretamente atingidos pela medida em cogitação.

Quarto. É possível que se tente privatizar empresas públicas de sociedades de economia mista, como os Correios e a Casa da Moeda, além de setores da Petrobras e da Eletrobras, afirma Queiroz no artigo citado anteriormente. Com efeito, o documento “A travessia social”, divulgado pelo PMDB às vésperas da ascensão de Temer, defende que “o Estado brasileiro expandiu demasiadamente as suas atribuições e acabou desabando sob seu próprio peso. Em qualquer horizonte razoável, o Estado terá que renunciar a funções de que hoje se ocupa, e terá mesmo que amputar partes de sua arquitetura”.

Quinto. Cogita-se de flexibilizar as leis trabalhistas por meio de emenda segundo a qual o negociado prevaleceria sobre o legislado. Para quem acompanha o assunto, não é novidade. A ideia circula há anos e chegou a ser posta na pauta do Congresso meses atrás, mas recolhida diante das críticas. Caso o novo governo consiga levá-la adiante, as empresas poderão negociar com seus trabalhadores regras que passem por cima da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Talvez para setores superorganizados da classe trabalhadora não houvesse consequências negativas, pois têm força suficiente para barrar a retirada de direitos. No entanto, a vasta maioria dos assalariados perderia a proteção da CLT, o que representaria retrocesso para antes da década de 1940.

Esses cinco itens sintetizam o que está em jogo: retirar direitos conquistados em décadas de luta. Se minha hipótese estiver correta, será necessário juntar todas as forças possíveis para evitar que isso aconteça, formando uma maioria social capaz de bloquear tais iniciativas. Porém, para que essa corrente seja efetiva, terá de conseguir apoio expressivo em um Congresso visivelmente inclinado a posições conservadoras, como se viu no afastamento da presidente Dilma Rousseff.

Por isso, a batalha será árdua e exigirá alto grau de abertura, no sentido de constituir frente ampla. A construção dela vai desafiar a capacidade política da esquerda. É natural que a esquerda esteja interessada em fazer o justo balanço da experiência lulista, portanto gastarei umas linhas com o assunto, o qual ainda vai requerer extensa reflexão. O lulismo acertou numa série de coisas: ao avançar no emprego, na renda e no Bolsa Família, entendido como um patamar mínimo (e tendente a ser universalizado), para aquém do qual o Estado não deixaria nenhum brasileiro ficar. Contudo, houve um erro importante: o de não ter apresentado, quando havia maioria para tanto, a chamada Consolidação das Leis Sociais (CLS). Se a CLS tivesse passado, hoje a situação seria mais difícil para as forças conservadoras regressistas.

O lulismo garantiu pleno emprego e expressivo aumento da renda – e aqui é preciso lembrar a valorização real do salário mínimo, o principal elemento de distribuição de renda no Brasil –, dando um piso de seguridade social no país, além de medidas menos estruturais mas relevantes, como o programa Farmácia Popular, que garante medicamentos de consumo popular a preço muito baixo, ou o Programa Universidade para Todos (ProUni), em aliança com o ensino privado, o que desgosta os que, como eu, prefeririam universalizar o ensino público e gratuito, mas que facultou o acesso de milhões de estudantes de baixa renda ao ensino universitário. Todas elas poderiam ter sido incorporadas à CLS. Na ausência da CLS, a transformação de bons programas em direitos não ocorreu. É preciso assinalar as contradições do lulismo, sem deixar de reconhecer os avanços promovidos.

Mas a realização do necessário ajuste de contas não pode nos impedir de olhar imediatamente para o futuro. A classe trabalhadora entra dividida no período defensivo. Primeiro porque as forças sindicais racharam na luta contra o impeachment, e um importante setor do sindicalismo apoia o governo interino, resultado do golpe parlamentar. Embora essa ala afirme não endossar propostas como a idade mínima de aposentadoria, faz elogios ao plano de contenção do gasto público. Será necessário, em primeiro lugar, reconstruir a unidade do trabalho para ter chance de barrar as propostas regressivas que listei anteriormente. Tarefa difícil.

Outra questão é que o subproletariado e a nova classe trabalhadora, que surgiu com a expansão do emprego, sobretudo entre os jovens de baixa renda cuja escolaridade cresceu nos últimos treze anos, não foram politizados durante o processo. Isso foi o resultado das características desmobilizadoras e despolitizantes do lulismo. Há setores que se autopolitizaram, por exemplo, os estudantes secundaristas, que desde 2015 estão fazendo um movimento importante no Brasil. Mas eles não correspondem ao conjunto dos novos trabalhadores, entre os quais ideias de meritocracia e redução do Estado, paradoxalmente, cresceram.

Comparativamente, a burguesia se unificou e se politizou mais do que a classe trabalhadora na crise do lulismo. A partir de 2013, o capital cerrou fileiras em torno de uma plataforma de forte impregnação neoliberal. Se não houver reunificação e politização da classe trabalhadora e das camadas populares em geral, a batalha que se aproxima será perdida. Por outro lado, se o retrocesso for bloqueado, talvez antes cedo do que tarde seja possível retomar a perspectiva de novas conquistas, a qual foi bloqueada em dezembro de 2014, quando Dilma cometeu o equívoco fatal de entregar a economia para o adversário.

Já que mencionei a escolha de 2014, julgo pertinente registrar que antes Dilma tentou encontrar uma saída para continuar avançando dentro da conjuntura econômica internacional negativa que se abriu em 2011. Como se sabe, o lulismo foi fruto de uma situação particularmente favorável que se esgotou definitivamente em 2011, tendo começado a mudar em 2008. A presidente buscou, então, uma aliança com a burguesia industrial para continuar a diminuição da desigualdade, alavancando a reindustrialização do país. A tentativa fracassou porque a burguesia industrial se mostrou desinteressada de um projeto de soberania nacional que implicasse confronto mais sério com outras frações do capital, inclusive estrangeiro. Num projeto de longo prazo de transformação do Brasil, a lição que resta é que será necessário contar apenas com as forças populares. Serão elas, sozinhas, capazes de produzir a transformação necessária? Este é um significativo ponto de interrogação para o futuro.

O lulismo não terminou, mas está sofrendo uma enorme derrota. Nela, o papel da operação Lava Jato foi decisivo. Em função disso, o lulismo e o conjunto da esquerda (porque, de algum modo, todos estão associados) estão obrigados a prestar contas quanto ao problema da corrupção. Compreende-se perfeitamente que alguns setores de esquerda não queiram se vincular ao lulismo. Na prática, porém, estão ligados, uma vez que o grosso da população não os distingue. Então, é preciso dar explicações sobre o que aconteceu. A Lava Jato pode ter sido seletiva e tendenciosa, o que deve ser denunciado; no entanto, levantou uma quantidade assustadora de indícios a respeito de desvios fabulosos.

Não se pode asseverar que todos os indícios sejam fatos, porque tudo ainda está em discussão, mas as denúncias e as acusações precisam ser respondidas imediatamente. Existe uma opinião pública no Brasil e ela merece ser esclarecida, para não falar do conjunto da sociedade, a respeito das revelações que explodem desde março de 2014. A questão da corrupção não é de esquerda, centro ou direita. Em tese, todas as correntes ideológicas podem ser republicanas. Não tenho confiança no republicanismo da direita brasileira, mas isso não nos permite abrir mão de defender que a esquerda precisa ser republicana. Ao contrário, para a esquerda, recuperar o moral será um dos capítulos decisivos na rearticulação do próximo período.

Outro ponto diz respeito ao caráter partidário da frente necessária. Enfrentar o problema das eleições que virão pela frente, tanto das municipais quanto das parlamentares e a presidencial, é inescapável. O caminho, como sempre, está em combinar a luta social à luta institucional. Não se deve abrir mão de qualquer uma das duas vertentes. É improdutivo, ainda que reconheça a legitimidade do impulso, recusar as instituições, que estão fortemente desgastadas. As transformações terão de ser realizadas também por meio delas, salvando-as e fortalecendo-as. Tal orientação, faz parte do compromisso maior da esquerda com a democracia. O caminho completamente extrainstitucional vai fracassar, embora o caminho exclusivamente institucional tenha mostrado seus limites.

Em 2015, tentou-se formar uma frente única de esquerda e não deu certo. O esforço resultou em duas frentes, a Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo. Num certo sentido, não foi grave, porque as duas têm conversado, há pontes entre elas, o que representa a viabilidade de unidade social. Mas no que se refere à unidade eleitoral, a divisão sugere que, no fundo, PT, PCdoB e PSOL não conseguiram se juntar. Sem estabelecer essa base, à qual se deveriam agregar diversos outros partidos, e quem sabe movimentos sociais (em um formato ainda a ser inventado) haverá visível fragilidade na esfera decisória. Para barrar os retrocessos postos acima, o sectarismo precisa ser considerado pecado mortal.

A frente ampla tem de ser unificada em torno da questão da democracia, isto é, reunir todos aqueles que são a favor da democracia. De todos os aspectos da situação defensiva em curso, um dos pouco positivos é que a bandeira da legalidade ficou com a esquerda. Quem praticou a ilegalidade foi a direita e os setores de centro que a ela se associaram – centro o qual, aliás, precisa ser deslocado em direção às posições de defesa dos direitos conquistados. Não conseguiremos a maioria de que precisamos sem a adesão, também, de setores de centro.

Encerro lembrando que este quadro não é só brasileiro. Fiquei muito impressionado com entrevista recente do ex-ministro das finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, em que defende, diante da ascensão dos ultranacionalistas, da extrema-direita e dos fascistas na Europa e no mundo, estar na hora de toda a esquerda internacional se unir em torno da bandeira democrática para barrar a ascensão de movimentos nitidamente anticivilizatórios. Espero que, no Brasil, tenhamos inteligência e energia para fazê-lo.

* André Singer foi porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência da República (2003-2007). É professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e autor, entre outros, dos livros Esquerda e direita no eleitorado brasileiro e Os sentidos do lulismo.

 

Notas

1 Este texto é fruto de intervenção realizada no seminário “Os caminhos da esquerda diante do golpe” (Universidade de São Paulo, maio de 2016). Mantive o caráter oral da exposição, embora tenha tirado repetições e precisado inúmeras passagens. Agradeço aos professores Ricardo Musse e Lincoln Secco pelo convite para participar do debate e a Ivana Jinkings pelas condições de produção e edição do resultado final. 

2 Recomendo, a respeito, a leitura do artigo “Governo Temer não fugirá da agenda impopular”, de Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), disponível para consulta em: . 3 Ver Guilherme C. Delgado, “‘A Retórica da Intransigência’ outra vez na liquidação da política social”, Plataforma política social, 17 maio 2016; disponível em: < http://plataformapoliticasocial.com.br/a-retorica-da-intransigencia-outra-vez-na-liquidacao-da-politica-social/>.