Dois Lênin? Ou duas estratégias para duas revoluções? *
“O fato de não ter havido um ‘jovem Lênin’ sugere forte continuidade em seus textos, tanto quanto em seus combates. Não há nele ruptura teórica comparável à que separa o jovem Marx do Marx da maturidade”
(João Quartim de Moraes).
Para Löwy, nos primeiros anos do século XX, Lênin ainda “aceitava algumas premissas ideológicas fundamentais do marxismo ‘pré-dialético’ de Plekhanov e seu corolário estratégico, o caráter burguês da revolução russa”. Mas a leitura crítico-materialista de Hegel, realizada a partir de 1914, o teria libertado “da construção estreita do marxismo pseudo-ortodoxoda II Internacional e dos limites teóricos que esse marxismo impunha ao seu pensamento. O estudo da Lógica hegeliana foi o instrumento pelo qual Lênin desimpediu o caminho teórico que o conduziu à estação finlandesa de Petrogrado”. Continua o autor: “Não há dúvida de que as ‘teses de abril’ representaram um ‘corte’ teórico-político com relação à tradição do bolchevismo do anteguerra (…). É inegável que os Cadernos (filosóficos, 1914) constituíram uma ruptura filosófica com relação ao ‘primeiro leninismo'”. Eis aqui, colocada de maneira clara – sem rodeios –, a tese da existência de dois Lênin.
Dentro desse esquadro teórico, o livro Duas táticas da socialdemocracia na revolução democrática, escrita em 1905, estaria no rol dessas obras não dialéticas do primeiro Lênin. Este seria um texto ainda influenciado pelo esquematismo – gradualista e etapista – predominante na II Internacional. Escreveu Löwy: “Uma análise rigorosa do principal texto político de Lênin nesse período, as Duas táticas da socialdemocracia na revolução democrática, mostra (…) a tensão existente no pensamento de Lênin entre o seu realismo revolucionário geral e os limites que lhe impõe a construção estreita do marxismo supostamente ‘ortodoxo'”. Segue o raciocínio: “a fórmula que era a ‘quinta essência’ do bolchevismo de antes da guerra, do ‘velho bolchevismo’, reflete em seu âmago todas as ambiguidades do primeiro leninismo: ‘A ditadura revolucionária do proletariado e do campesinato’. (…) O termo aparentemente paradoxal de ‘ditadura democrática’ é a prova da ortodoxia, a presença visível dos limites impostos pelo marxismo de outrora”. Portanto, Duas Táticas teria pouca utilidade na compreensão do pensamento político (e dialético) do segundo Lênin, seria inútil para entender a estratégia leninista no processo revolucionário russo a partir de abril de 1917 e de pouco serviria para pensar as futuras revoluções populares e socialistas que ocorreriam no século 20.
O poder de argumentação de Löwy, e também o pouco conhecimento do conjunto da obra de Lênin, levaram a tese da existência de uma cisão – uma “ruptura epistemológica”? – na construção teórica e no esquema tático-estratégico de Lênin a ser aceita por círculos importantes da esquerda marxista. O trotskismo foi o principal beneficiado por essa tese. Afinal, a sua conclusão lógica era de que Lênin teria se aproximado (ou aderido inconscientemente) às formulações teórico-políticas de Trotsky, especialmente à teoria da revolução permanente.
Este breve artigo procurará demonstrar que esta opinião não corresponde à realidade. Lênin foi o pensador revolucionário mais sagaz da primeira década do século 20 e o socialista que melhor conseguiu aplicar a dialética materialista ao campo da ação política revolucionária. A estratégia desenvolvida por ele durante a revoluçãode 1905 é a melhor prova disso e Duas táticas da socialdemocracia na revolução democrática se constitui num verdadeiro tratado da ciência política revolucionária, que merece um lugar de honra ao lado das Teses de Abril e Esquerdismo, doença infantil do comunismo. Por fim, pretendo demonstrar que Lênin jamais renegou esta obra e continuou sustentando aquelas formulações políticas até o final da sua vida. Defendeu a justeza da caracterização da revolução russa até fevereiro de 1917, pelo seu caráter, como democrático-burguesa, e, por isso mesmo, a necessidade das duas etapas – entendo-as como um processo único, ininterrupto.
A Polêmica entre mencheviques e bolcheviques
De fato, o pressuposto básico da elaboração estratégica leninista era o mesmo de todo o movimento socialdemocrata internacional; ou seja: a revolução russa em curso era uma revolução que teria, pelas tarefas a serem realizadas, um caráter democrático-burguês e não socialista. Mas, então, quais novidades foram introduzidas pelo leninismo ao processo revolucionário russo entre 1903 e 1905? A primeira delas é a constatação de que o proletariado, dirigido pela socialdemocracia, deveria procurar construir a sua hegemonia ainda na primeira etapa da revolução e que somente ele poderia conduzi-la de maneira consequente até o seu final, criando as melhores condições para a passagem a uma segunda etapa que seria socialista. A condição para a hegemonia operária seria a incorporação, sob a sua direção, das massas camponesas.
O livro, escrito entre junho e julho de 1905, procurou expor de maneira sistemática as divergências táticas e estratégicas existentes entre mencheviques e bolcheviques que, segundo Lênin, “conduziram a uma discrepância radical de apreciação de toda nossa revolução burguesa”. Na plataforma política dos bolcheviques, expressa naquele opúsculo, constavam: 1º) liberdade política a mais completa possível; 2º) proclamação da República democrática; 3º) governo provisório revolucionário; 4º) convocação da assembleia nacional constituinte – baseada no sufrágio universal, igual, direto e secreto. A condição prévia para a realização desse programa seria a derrubada revolucionária da autocracia czarista. Os mencheviques, por sua vez, negavam a possibilidade – e a oportunidade – de os operários hegemonizar em uma revolução democrático-burguesa apoiando-se nas massas camponesas. Para eles, revolução burguesa deveria, necessariamente, significar hegemonia (direção) burguesa.
Lênin não defendia apenas a necessidade de se construir uma hegemonia proletária durante a revolução democrática, mas também a constituição de um poder revolucionário provisório no qual a socialdemocracia deveria participar ativamente. Esta formulação, tipicamente leninista, era uma completa novidade para a época e soava quase como uma idolatria para os doutrinários socialistas – quer de direita quer de esquerda. Para estes, seria uma contradição falar numa “revolução democrática burguesa hegemonizada pelo proletariado” e, pior, pensar na constituição de um governo provisório (ainda nãosocialista) com a participação de socialdemocratas. Estranhamente, na época (1905), era a ala direita da socialdemocracia russa (os mencheviques) que não aceitava a participação num governo nãosocialista, mesmo revolucionário.
Assim, respondeu aos seus críticos: “Em princípio a participação da socialdemocracia no governo provisório revolucionário (na época da revolução democrática e da lutapela República) é admissível. O Terceiro Congresso do POSDR rejeitou terminantemente a ideia segundo a qual a participação da socialdemocracia no governo provisório revolucionário na Rússia fosse uma variedade do millerandismo e, portanto, inadmissível do ponto de vistados princípios, pois significaria uma possível consagração da ordem burguesa etc. etc.”. A participação socialista num governo nãosocialista (mas revolucionário) teria dois objetivos: “1º) combate implacavelmente às tentativas contrarrevolucionárias; 2º) defesa dos interesses e da independência daclasse operária”.
O líder soviético foi um dos primeiros a desenvolver a dialética da ação de “cima para baixo”, através da participação no poder provisório, e de “baixo para cima”, através da pressão das massas populares sobre esse mesmo governo frentista. Recusou terminantemente o tratamento unilateral dessa questão crucial para o processo revolucionário num país atrasado como a Rússia. “A prolongada época de reação”, afirmou ele, “nos deixou bastante familiarizado com a ideia apenas da ação ‘de baixo para cima’, nos deixou demasiadamente acostumados a considerar a luta apenas do ponto de vista defensivo (…). Em um período como o que a Rússia está atravessando, não é possível tolerar que fiquemos limitados aos velhos lugares-comuns. É preciso difundir a ideia da ação ‘de cima para baixo'”. Chegou mesmo, contra os mencheviques e anarquistas, a pregar a utilização, em benefício da revolução, “das armas e dos métodos do ‘regime estatal burguês'”. Ele, no entanto, tinha plena consciência de que a pressão “de cima para baixo” era uma possibilidade que não poderia ser definida de antemão. Pelo contrário, a pressão “de baixo para cima” deveria ser permanente – uma necessidade de todo e qualquer processo revolucionário.
Lênin afirmou em Duas Táticas: “naturalmente, numa situação histórica concreta entrelaçam-se os elementos do passado e do futuro, um caminho confunde-se com o outro. (…) Mas isto não nos impede minimamente de distinguir lógica e historicamente os grandes períodos do desenvolvimento. Pois todos nós contrapomos a revolução burguesa e a socialista, todos nós insistimos incondicionalmente na necessidade de estabelecer uma distinção rigorosa entre as mesmas, mas poder-se-á negar que, na história, elementos isolados, particulares, de uma e outra revolução se entrelaçam? Não registra a época das revoluções democráticas na Europa uma série de movimentos socialistas e tentativas socialistas? E a futura revolução socialista na Europa não terá ainda muito e muito que fazer para completar o que ficou incompleto no terreno da democracia?”
Continua ele: “o grau de desenvolvimento econômico da Rússia (condição objetiva) e o grau de consciência e de organização das massas do proletariado (condição subjetiva, indissoluvelmente ligada à objetiva) tornam impossível a libertação imediata e completa da classe operária. Só os mais ignorantes podem não levar em consideração o caráter burguês da revolução democrática que está a processar-se; só os mais cândidos otimistas podem esquecer como as massas operárias conhecem ainda pouco os fins do socialismo e os métodos para realizá-lo”.
A democracia burguesa e proletariado revolucionário
Os bolcheviques advogavam a necessidade de conquistar uma república democrática – ainda que burguesa – e destruir a estrutura autocrática do Estado militar-feudal czarista. Por isso, as alianças políticas poderiam– e deveriam – ser as mais amplas possíveis. Afirmou Lênin: “gostam de nos acusar de ignorância do perigo da diluição do proletariado na democracia burguesa (…). Contestamos nossos contendores: a socialdemocracia, que atua no terreno da sociedade burguesa, não pode participar na política sem marchar, em casos isolados, ao lado de democracia burguesa (…). Nossas palavras de ordens táticas (…) coincidem com as da burguesia democrático-revolucionária e republicana”.
A democracia burguesa, contraditoriamente, seria favorável à dominação de classe da burguesia e, ao mesmo tempo, seria a forma de governo (ou regime) que criaria as melhores condições para a organização, conscientização e luta do proletariado. “Quem quiser ir ao socialismo por outro caminho que não seja o da democracia política chegará inevitavelmente a conclusões absurdas e reacionárias”, afirmou Lênin.
Vários anos depois – em Esquerdismo, doença infantil do comunismo –, para defender os compromissos e as políticas de alianças, Lênin utilizaria uma consideração de Marx escrita em 1874: “Somos comunistas”, diziam em seu manifesto os comunardos-blanquistas, “porque queremos atingir nosso objetivo sem nos determos em etapas intermediárias e sem compromissos, que nada mais fazem que tornar distante o dia da vitória e prolongar o período de escravidão. Respondemos: os comunistas alemães são comunistas porque, através de todas as etapas intermediárias e de todos os compromissos criados não por eles, mas pela marcha da evolução histórica, veem com clareza e perseguem constantemente seu objetivo final (…). Os blanquistas são comunistas por imaginarem que basta seu desejo de saltar as etapas intermediárias e os compromissos para que a coisa esteja feita, e porque acreditam firmemente que ‘a coisa arrebenta’ num dia desses e o Poder cai em suas mãos, o ‘comunismo será implantado’ no dia seguinte. Portanto, se não podem fazer isto imediatamente, não são comunistas. Que pueril ingenuidade a de apresentar a própria impaciência como argumento teórico!”
E, referindo-se aos esquerdistas alemães do seu tempo, diria: “Não é possível que os esquerdistas alemães ignorem que toda a história do bolchevismo, antes e depois da Revolução de Outubro, está cheia de casos de manobra, de acordos e compromissos com outros partidos, inclusive os partidos burgueses! Fazer a guerra para derrotar a burguesia internacional, uma guerra cem vezes mais difícil, prolongada e complexa que a mais encarniçada das guerras comuns entre Estados, e renunciar de antemão a qualquer manobra, a explorar os antagonismos de interesses (mesmo que sejam apenas temporários) que dividem nossos inimigos, renunciar a acordos e compromissos com possíveis aliados (ainda que provisórios, inconsistentes, vacilantes, condicionais), não é, por acaso, qualquer coisa de extremamente ridículo? (…) Desde 1905 (os bolcheviques) defenderam sistematicamente a aliança da classe operária com os camponeses contra a burguesia liberal e o czarismo sem negar-se nunca, ao mesmo tempo, a apoiar a burguesia contra o czarismo (na segunda fase das eleições ou nos empates eleitorais, por exemplo)”.
Lênin critica, também, a falsa ideia dos esquerdistas russos que negavam que a revolução burguesa e o desenvolvimento do capitalismo pudessem trazer alguma vantagem para os trabalhadores. Escreveu: “Quanto mais completa e decisiva, quanto mais consequente for a revolução burguesa, tanto mais garantida estará a luta do proletariado contra a burguesia, pelo socialismo”, e concluiu: “em certo sentido, a revolução burguesa é mais vantajosa para o proletariado que para a burguesia”. Por isso, o marxismo “não ensina o proletariado a ficar à margem da revolução burguesa, a não participar dela, entregar a sua direção à burguesia (…). O triunfo completo da atual revolução”, afirmou, “será o fim da revolução democrática e o começo da luta decisiva pela revolução socialista (…), então substituiremos a palavra de ordem da ditadura democrática pela da ditadura socialista do proletariado”.
Mas será que o Lênin pós-1914 passaria a negar o seu esquema tático eestratégico anterior? Quando, afinal, ele passou a defender uma mudança substancial na política bolchevique e quais as razões dessa alteração, ocorrida em abril de 1917?
Em março de 1915, numa conferência das seções do POSDR no estrangeiro, quando a guerra mundial estava no seu segundo ano e ele já havia avançado nos seus estudos sobre Hegel, Lênin escreveria: “a guerra civil a que exorta a socialdemocracia revolucionária na época presente é a luta do proletariado com as armas na mão contra a burguesia, pela expropriação da classe dos capitalistas nos países capitalistas avançados, pela revolução democrática na Rússia (república democrática, jornada de oito horas e confiscação das terras dos latifundiários), pela república nos países monárquicos atrasados em geral etc.”.
No seu informe sobre a Revolução de 1905, escrito em janeiro de 1917, ele ainda afirmaria: “a peculiaridade da Revolução Russa é que, por seu conteúdo social, foi uma revolução ‘democrático-burguesa’, enquanto por seus métodos, foi uma revolução ‘proletária’. Democrático-burguesa porque o objetivo imediato a que se propôs, e que se poderia alcançar diretamente com suas próprias forças, era uma república democrática, a jornada de trabalho de oito horas e o confisco dos imensos latifúndios da nobreza, todas medidas que a revolução burguesa da França realizou quase plenamente em 1792 e 1793”. Este foi um dos últimos textos escritos por Lênin antes da eclosão da revolução russa e nele ainda está presente o que Löwy chamou de “corolário estratégico do marxismo pré-dialético: o caráter burguês da revolução”.
Quartim de Moraes avalia que Löwy tem uma visão “livresca do combate revolucionário”, pois ignora ou subestima um acontecimento fundamental (a revolução de fevereiro, e eu acrescentaria a recriação dos sovietes) para a reformulação estratégica de Lênin em abril de 1917. Continua o autor: “a revolução de fevereiro instaurou uma nova situação política, que exigia uma mudança igualmente radical do programa e da tática bolchevique”. Algo claramente explicitado nas Teses de Abril, e inclusive reconhecido por Trotsky. Lembro que nos anos em que Lênin esteve vivo (até 1924), Trotsky nunca disse que a principal liderança do Partido Bolchevique teria aderido às suas teses sobre a revolução permanente, e consequentemente a inexistência de etapas na Revolução Russa.
A mudança de estratégia em abril não teria significado a negação da justeza da política bolchevique adotada em 1905? Talvez o impacto da revolução de fevereiro pudesse ter catalisado (ou fundido) a concepção dialética recém-assimilada e a política leninista – e feito o “velho bolchevique” superar-se e aderir ao trotskismo (ainda que mitigado). E, assim, o teria feito negar o caráter democrático-burguês da primeira etapa da Revolução Russa; ou, melhor, negar a própria existência de etapas nas revoluções em países pouco desenvolvidos. Creio não ter sido isso exatamente o que aconteceu. Façamos uma leitura, ainda que rápida, dos textos posteriores a fevereiro de 1917.
Nas Teses de Abril, que, segundo Löwy, representaria “um ‘corte ‘teórico-político em relação à tradição do bolchevismo do anteguerra”, podemos ler: “Nossa tarefa imediata não é a ‘introdução’ do socialismo, mas apenas passar imediatamente ao controle da produção social e da distribuição dos produtos aos Sovietes de deputados operários”. Decerto, essa não era uma formulação presente em Duas Táticas.
Voltemos à questão: O que acarretou essa mudança na estratégia bolchevique? Como disse Quartim de Moraes, foi a própria realização da revolução democrático-burguesa de fevereiro. “Na Rússia”, escreveu Lênin, “o poder de Estado passou para as mãos de uma nova classe, a saber, a burguesia e os latifundiários que se tornaram burgueses. Desta forma a revolução democrático-burguesa está consumada na Rússia“. Nas suas Cartas de Longe afirmaria: “A primeira revolução terminou. Seguramente, esta primeira etapa não será a última da nossa revolução”. Eis aqui o segredo revelado! A revolução democrático-burguesa já estava consumada e era preciso passar para a segunda etapa, rumo ao socialismo. Mesmo o processo de transição ao socialismo deveria conhecer fases e etapas.
Contudo, a revolução estava se realizando não da maneira imaginada pelos bolcheviques – nem da maneira pretendida pela burguesia liberal-monárquica. As particularidades do processo revolucionário russo – a correlação de forças real – criaram uma situação política e estrutura de poder novas. “Essa circunstância excepcionalmente original levou ao entrelaçamento de duas ditaduras: a ditadura burguesa e a ditadura (democrática) do proletariado e do campesinato”. O desenvolvimento revolucionário “já ultrapassou os limites da revolução democrático-burguesa comum, porém ainda não atingiu uma ditadura ‘pura’ do proletariado e do campesinato”. Em outra passagem, afirmou: “O ‘Soviete de Deputados Operários e Soldados’ – aí tendes a ‘ditadura revolucionária democrática do proletariado e campesinato’ já consumada na realidade”. Voltamos aqui à velha fórmula, considerada a “quinta essência do bolchevismo de antes da guerra”. Lembramos que “ditadura democrática do proletariado e do campesinato”, fórmula esboçada em 1905 e retomada em 1917, não era a ditadura do proletariado (socialista), e sim um de tipo governo democrático-popular.
Como podemos ver, ele jamais negou a justeza – e a operacionalidade – dessa fórmula (ditadura democrática do proletariado e dos camponeses), e sim que ela havia se realizado de maneira imprevista e, portanto, estaria sendo superada pela vida. Em uma de suas Cartas de Longe (A análise da situação atual), escrita também em abril de 1917, constatou: “Desde a revolução, o poder está nas mãos de uma classe diferente, uma classe nova, isto é, a burguesia (…). A este nível, a revolução burguesa, ou democrático-burguesa, está concluída (…). As palavras de ordem e ideias bolchevistas, no seu todo, têm sido confirmadas pela história; mas, concretamente, as coisas resultaram de forma diferente; são mais originais, mais peculiares, mais variadas do que se podia ter esperado (…). ‘A ditadura revolucionária e democrática do proletariado e do campesinato’ já se transformou em realidade, mas de maneira altamente original, e com um número de modificações extremamente importantes (…). ‘O Soviete de Deputados Operários e Soldados’ – aí tendes a ‘ditadura revolucionária e democrática do proletariado e campesinato’ já consumada na realidade”. No entanto, “temos lado a lado, coexistindo simultaneamente, a regra burguesa (…) e uma ditadura revolucionária e democrática do proletariado e campesinato que vai cedendo voluntariamente poder à burguesia, tornando-se voluntariamente um apêndice da burguesia”. E concluiu: “Este fato não se enquadra nos velhos esquemas”. Portanto, os esquemas táticos devem se adaptar à realidade e não o contrário.
A existência dos Sovietes permitiu uma aproximação entre as duas etapas da revolução russa – fazendo com que o processo (ininterrupto) fosse mais rápido do que Lênin e os bolcheviques pensavam anteriormente. Portanto, foi a vitória da revolução de fevereiro e a criação do duplo poder que conduziram às Teses de Abril e à reformulação da estratégia leninista.
Novamente, Lênin se defendeu da acusação de querer saltar etapas na revolução. “Mas não estamos nós em perigo de cair no subjetivismo, de querer chegar à revolução socialista ‘saltando’ sobre a revolução democrático-burguesa – que ainda não está concluída e nem esgotou o movimento camponês? Eu poderia incorrer neste erro se dissesse: ‘Não ao czar, sim a um governo operário’. Mas, eu não disse isso (…). Afirmei que não pode haver outro governo (exceto um governo burguês) na Rússia que não seja o dos Sovietes de Deputados operários, trabalhadores rurais, soldados e camponeses (…). E nestes Sovietes (…) são os camponeses, os soldados, isto é, a pequena burguesia, que têm preponderância, para usar um termo científico, marxista, uma caracterização classista (…). Nas minhas teses, precavi-me seguramente a fim de não saltar sobre o movimento camponês (…) ou sobre o movimento pequeno-burguês em geral, contra qualquer brincadeira de ‘tomada do poder’ por um governo operário, contra qualquer tipo de aventureirismo blanquista (…). O controle sobre a banca, a fusão de todos os bancos num só, não é ainda socialismo, mas passo rumo ao socialismo”.
O caráter democrático-burguês da Revolução Russa e os pressupostos estratégicos bolcheviques, condensados em Duas Táticas, seriam defendidos muitos meses depois da grande revolução socialista de outubro. Na brochura A revolução proletária e o renegado Kautsky, escrita em 1918, Lênin afirmou: “em 1905 os bolcheviques esclareceram completamente a questão embrulhada por Kautsky. Sim, a nossa revolução era burguesa (…). Tínhamos clara consciência disso, dissemo-lo centenas e milhares de vezes desde 1905, nunca tentamos saltar por cima deste degrau necessário do processo histórico nem tentamos aboli-lo por decreto (…). Mas, em 1917, desde o mês de abril (…) dissemos abertamente e explicamos ao povo: agora a revolução não pode se deter nisto, pois o país avançou, o capitalismo deu passos em frente, a ruína atingiu proporções nunca vistas, o que exigirá (quer queira quer não) passos emfrente, para o socialismo“. Aqui está o cerne da teoria leninista da revolução ininterrupta (por fases), que diferia da teoria da revolução permanente de Trotsky.
A resolução do 2º Congresso da Internacional Comunista, realizado em 1920, reafirma a necessidade de se realizar a revolução democrática burguesa nos países atrasados e coloniais. As Teses sobre os problemas nacional e colonial, possivelmente escritas pelo próprio Lênin, diziam que, em relação “aos Estados e às nações mais atrasadas, onde predominam relações feudais, patriarcais ou patriarcal-camponesas”, a “obrigação de todos os partidos comunistas é ajudar o movimento democrático-burguês de libertação desses países (…). “A Internacional Comunista deve selar temporariamente acordos com a democracia burguesa dos países coloniais e atrasados, porém não deve se fundir com ela e tem que manter incondicionalmente a independência do movimento operário”, conclui.
É claro que existiam concepções etapistas no interior do partido bolchevique, mas elas nunca foram compartilhadas por Lênin. O confronto entre as posições justas e as esquemáticas sobre as etapas na Revolução Russa pode ser constatado entre abril e novembro de 1917. Alguns bolcheviques ainda estavam presos aos velhos esquemas enrijecidos. Ao contrário do que muitos afirmaram, eles não aplicavam as teses presentes em Duas táticas da socialdemocracia na revolução democrática, e sim faziam uma leitura distorcida delas e recuavam para uma visão esquemática predominante na II Internacional — criticada por Lênin durante a revolução de 1905 —, que encarava a revolução como tendo etapas rígidas, estanques, sem comunicação entre si. Segundo esta concepção, era preciso um longo período de desenvolvimento capitalista, sob o domínio político burguês, para que então se pudesse avançar a uma segunda etapa da revolução. Não foi à toa que, quando os bolcheviques tomaram o poder e começaram a construir o socialismo, Plekhanov afirmou horrorizado: “Mas esta é uma violação de todas as leis da história”. De fato, a única coisa violada pela ação dos bolcheviques foi a visão metafísica da história que procurava se erigir em lei.
Assim, é preciso não confundir etapismo com a concepção de que nos países atrasados a revolução poderia ter duas fases distintas. O etapismo – de tipo menchevique – é um desvio desta concepção marxista. Neste sentido, Lênin jamais foi etapista, embora defendesse a existência de etapas e fases na Revolução Russa, mesmo no processo de construção do socialismo.
O leninismo, ao contrário dos esquemas esquerdistas, afirmava a necessidade de se respeitar as fases e etapas dos processos revolucionários concretos, sem cair em visões estanques e etapistas. Para ele, a revolução deveria ser um processo ininterrupto e os revolucionários não deveriam erigir uma Muralha da China entre a etapa democrático-burguesa e socialista – esperando calmamente que as forças produtivas se desenvolvessem, como advogavam os reformistas. Por isso, o leninismo, em última instância, foi também a negação do economicismo – que fazia das “forças produtivas” o demiurgo da história –, pois colocou no centro a política revolucionária e reafirmou o papel da ação consciente dos homens na história. Ou, como escreveu Marx em Dezoito de Brumário de Louis Bonaparte: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.”
Outro erro teórico e histórico – ainda mais grave – que cometem alguns teóricos esquerdistas é confundir a defesa da existência de etapas na revolução com reformismo. Abstraem o fato de que os principais revolucionários socialistas do século 20 (Lênin, Stalin, Dimitrov, Mao Tsé-tung, Ho Chi-Mihn, Fidel, Samora Machel) defendiam a revolução em duas etapas. Não sem razão, foram acusados pelos trotskistas de serem estalinistas. Também foram defensores da revolução democrática (ou nacional-libertadora) precedendo a socialista os intelectuais e líderes comunistas Antônio Gramsci e George Lukács. Honestamente não se pode acusá-los de reformismo.
* Este é um dos capítulos do livro Lênin: presença da revolução, organizado por Aloísio Sérgio Barroso e editado pela Fundação Maurício Grabois, Editora Anita Garibaldi e a Sociedade Amigos de Lênin.
** Augusto C. Buonicore é historiador, diretor de publicações da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e dilemas da revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.
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