A covid expõe o apartheid sanitário global
Apesar da retórica sobre os bens públicos mundiais, a corrida pelo acesso às vacinas contra o coronavírus evidencia novamente a desigualdade entre as nações no mercado farmacêutico. Além da covid-19, o problema se manifesta em três se manifesta de três formas: no subfinanciamento da pesquisa em doenças tropicais; no sistema de direitos de propriedade intelectual que exclui países em desenvolvimento dos resultados da pesquisa do Norte Global; e na dilapidação das capacidades de pesquisa e produção dos países mais pobres.
Grande alívio na Europa: as primeiras doses da vacina contra a covid-19 estão serão aplicadas. O debate público se concentra sobre os desafios logísticos… e sobre a liberdade individual, sobretudo num setor da população que desconfia de um produto elaborado sob condições extraordinárias. Essa preocupação, comum nos países ricos, se contrapõe às questões dos países pobres, onde a disponibilidade das futuras vacinas está longe de ser uma realidade em futuro próximo. A penúria nesses locais não está desconectada da abundância no Norte: por meio de acordos bilaterais com os laboratórios que abrigam, os governos ocidentais reservaram os primeiros bilhões de doses que serão produzidas: capazes de vacinar várias vezes suas populações.
Lançada em abril pela «aliança da vacina» (GAVI), em associação com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Fundação CEPI1 (1), a plataforma COVAX (Covid 19 Vaccines Global Access) procura ultrapassar a lógica do “cada um por si” destacando as contribuições dos Estados (são mais de 180 que ingressaram na iniciativa) para sustentar a pesquisa e a produção de um grande número de doses de vacinas, para negociar os melhores preços possíveis com a indústria e garantir uma distribuição mais justa das doses entre países e no interior de seus territórios. A Covax estabeleceu um mecanismo de co-financiamento, pelos países ricos, de um bilhão de doses, que serão reservadas aos 92 países mais pobres, em nome do princípio segundo o qual “ninguém estará em segurança até que todo o mundo esteja seguro”. Embora seja muito cedo para avaliar a inciativa Covax, que tem o mérito de existir, já se tornou evidente que sua eficácia será reduzida pelos acordos prioritários que os países rigos assinam em paralelo, com os laboratórios. O montante monetário envolvido nestes compromissos é muitas vezes maior que as somas destinadas por estas mesmas nações ao dispositivo COVAX.
Essa desigualdade no acesso aos medicamentos é apenas um pequeno sintoma de uma posição globalmente desvantajosa dos países do Sul Global na ordem farmacêutica internacional. As origens das dificuldades desses países pobres no acesso aos produtos médicos e farmacêuticos essenciais em matéria de saúde pública são bem conhecidos. Elas tem sido objeto de numerosos relatórios e declarações dentro das organizações internacionais nos últimos 30 anos. As dificuldades manifestam-se em três níveis: na falta de investimento, em escala mundial, na pesquisa em doenças que atingem principalmente os países do Sul Global; na existência de um sistema de patentes que limita as possibilidades de acesso dos países do Sul aos medicamentos; e, ainda que algumas patentes expirem, há a incapacidade de produção dos medicamentos nos países mais pobres.
As doenças tropicais negligenciadas
A OMS soou o alarme em 2003: no mundo, menos de 10% da pesquisa médica dedica-se às doenças que totalizam 90% da mortalidade. Junto das mais conhecidas (malária, tuberculose e hanseníase, encontramos também doenças mais negligenciadas, como a kala-azar/calazar (leishmaniose visceral), a doença do sono (tripanossomíase africana) e a doença de Chagas (tripanossomíase americana), que afetam os países em desenvolvimento mais pobres. Os bilhões de dólares investidos todos os anos na pesquisa e desenvolvimento (P&D) farmacêuticos em todo o mundo são orientados pelos laboratórios para doenças que afetam indivíduos cobertos por planos de saúde (públicos ou privados) com base financeira para pagar valores cada vez mais elevados. A impossibilidade de reduzir as margens de lucro abaixo da escala das exigências de seus acionistas desvia as grandes empresas de farmacêuticos de atender as necessidades de países com orçamentos de saúde limitados.
O problema foi muitas vezes levantado no contexto da Assembleia Mundial da Saúde, órgão decisório da OMS. Desde 1974, esse órgão pede ao diretor geral da OMS para “intensificar as atividades de pesquisa da organização sobre doenças tropicais e para aumentar o esforço para obter mais recursos extra-orçamentarios para esse fim2. Uma resolução que se transformou no ano seguinte na criação do “programa de pesquisa e de formação relativo às doenças tropicais”, com um duplo objetivo: concentrar-se em novos métodos de luta contra essas doenças que sejam, ao mesmo tempo, aplicáveis, aceitáveis e financeiramente suportáveis para os países em desenvolvimento e reforçar a capacidade desses países de colocar em prática, por si mesmos, essas novas técnicas. Ainda que esse programa tenha permitido avanços, sua amplitude limitada não foi suficiente para inverter a tendência: entre 1975 e 2000, de 1400 medicamentos “inovadores” (novas moléculas que obtêm novas autorizações de entrada no mercado), apenas 13, aproximadamente 1%, são dedicadas ao tratamento das doenças tropicais3.
No inicio dos anos 2000, o tema das doenças tropicais suscitou um renascimento de interesse pelo tema, no contexto dos “objetivos do milênio para o desenvolvimento e a emergência do paradigma da saúde pública mundial4 (global health). Em meio à difusão da AIDS, e depois do Ebola, o desenvolvimento de doenças nos países do Sul foi visto como um “risco global”, enquanto novas formas de intervenção, novos atores (ONGs e fundações) e novos modos de financiamento (parcerias público-privadas) prosperaram e reconfiguraram o campo da saúde publica mundial. Dotada de um orçamento maior que o da OMS, da qual ela se torna o segundo financiador, a Fundação Bill e Melinda Gates é um ator central nessa mutação. Sob seu incentivo ou sua participação foram lançadas sucessivamente a Aliança da Vacina (GAVI) (2000); o Fundo Mundial contra a AIDS, malária e tuberculose (2002); a Unitaid (2006); o Consorcio sobre Doenças Tropicais Negligenciadas (2007) e outros.
Combater o sistema de patentes
O aumento dos recursos permitiu avanços notáveis no combate à muitas doenças tropicais negligenciadas. Entretanto, a arquitetura da ordem sanitária internacional não foi questionada. O método preferido pelos empresários da saúde mundial consiste em obter mais poder diante das empresas farmacêuticas com base no volume de recursos que conseguem reunir. Este procedimento não questiona as regras do mercado dos medicamentos e a lógica das patentes que condicionam a pesquisa e o desenvolvimento. De uma forma mais convincente, a “Drugs for Negligected Diseases Iniciative”, lançada em 2003 pelos Medicos sem Fronteiras, o Instituto Pasteur e quatro institutos de pesquisa de países em desenvolvimento (India, Brasil, Quênia e Malasia) e apoiada pela OMS, contribuiu, durante os anos 2010, para ampliar as capacidades autônomas de pesquisa e produção do Sul Global, fora do perímetro das “Big Pharma”. No conjunto, entretanto, a influência muito invasiva da Fundação Gates, que pressiona na definição das prioridades das parcerias público-privadas, e na canalização de grandes quantidades de auxilio publico ao desenvolvimento, enfraqueceu os processos decisórios democráticos, principalmente a Assembleia Geral da Saúde, que deveria governar as políticas internacionais de saúde publica.
A solução estrutural para o subfinanciamento crônico da pesquisa sobre doenças tropicais reside em dissociar o custo da pesquisa e o preço dos medicamentos5. Redigido em 2012, um relatório importante da OMS sobre as fontes de financiamento em pesquisa e desenvolvimento “de interesse dos países em desenvolvimento” propõe o embrião de um sistema que transformaria a Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) em Saúde num bem público mundial6. A peça-mestra deste mecanismo seria definir objetivos de investimento público para a pesquisa em escala nacional e internacional, indexados ao PIB dos países. Essa regra de financiamento pelos Estados deveria, de acordo com os organizadores do relatório, ser articulada a um mecanismo internacional de coordenação comandado pela OMS e gerido por uma convenção internacional juridicamente impositiva.
O sistema de patentes não é apenas um freio à P&D das doenças endêmicas dos países pobres. Ele também limita drasticamente o acesso desses países aos tratamentos que resultam da P&D relacionada às doenças que afetam igualmente os países do norte – como a AIDS ou a covid-19. Na virada do milênio, a luta dos países em desenvolvimento pelo acesso aos antirretrovirais gerou um grande conflito Norte-Sul. A polêmica estavam em como interpretar o princípio da flexibilização, que os países ricos haviam aceitado incluir no acordo sobre os direitos de propriedade intelectual da OMC (adotado em 1995), e que deveria implicar em exceções no regime de monopólios de mercado, em situações de emergência sanitária. Nesses casos, abria-se, aos países em desenvolvimento, a possibilidade de produzir tratamentos antes que expirassem suas patentes.
Vinte anos mais tarde, numa repetição dessa história, os países industrializados acabaram de recusar uma demanda da Índia e da África do Sul, apoiadas por um grande número de países pobres, para que se permitisse aos membros da OMC bloquear aplicação de certas disposições do Acordo sobre os TRIPS (Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual que se referem aos Comércio, na sigla em inglês). Esta flexibilidade estaria aberta quando se tratasse da “prevenção, contenção ou tratamento7 da covid-19. Apesar das posturas e da retórica sobre os bens públicos mundiais, os lideres dos países ricos mantêm sua preferência por opções, como a iniciativa COVAX, que preservem a arquitetura atual, em que a busca pelo lucro ocupa o centro do sistema sanitário mundial.
Para uma maior soberania sanitária
Um terceiro desafio reside nas capacidades nacionais de produção de medicamentos nos países em desenvolvimento8. Ainda que um país como a Índia tenha se tornado o primeiro fabricante mundial de medicamentos genéricos, notadamente antirretrovirais (80% da produção mundial), a maioria dos países mais pobres depende totalmente do mercado mundial para sua provisão de remédios. Essa situação é o produto da decadência/desmonte das políticas nacionais de apoio à fabricação de medicamentos que se seguiu às crises econômicas e financeiras dos anos 1980 e 1990. Ela deriva de uma doutrina que durante muito tempo prevaleceu nas organizações internacionais de desenvolvimento e, em particular na OMS, de acordo com a qual somente as cadeias de valor internacionais poderiam garantir a esses países a disponibilidade de medicamentos de qualidade a um preço viável.
O colapso dos circuitos de abastecimento que se dá com a covid-19, em particular em relação às drogas exportadas pela índia, contribui a uma tomada de consciência. Muitos dos responsáveis pelos sistemas sanitários no Sul Global dão-se conta da necessidade de avançar para uma forma de “soberania sanitária”, a partir do reinvestimento tanto nos sistemas nacionais de P&D, quanto na apropriação das tecnologias e nas capacidades de produção. Essa mudança inscreve-se numa nova reflexão sobre o desenvolvimento, iniciada há cerca de 15 anos e que traz à baila a ideia de “politica industrial”. A coordenação e o compartilhamento dos avanços tecnológicos em escala internacional deveriam ser associados aos esforços de construção das políticas nacionais que permitam reduzir a dependência dos países pobres em relação aos principais centros de produção mundial. O auxílio público ao desenvolvimento tem um papel importante nesse tema, com a condição de estar alinhado a uma estratégia nacional baseada num consenso político interno.
1A Coalizão pelas inovações em matéria de preparação às epidemias foi criada em 2017 para financiar a pesquisa sobre novas vacinas contra agentes infecciosos [emergentes].
2Assembleia mundial da Saúde (1990), Programa especial de pesquisa e de formação relacionada às doenças tropicais (TDR): Progressos realizados na pesquisa e transferência de tecnologia aos serviços nacionais de saúde.
3R. Brauman , « Maladies négligées et maladies oubliées », Conférence donnée lors du Forum de l’Université « Santé/Droits de l’homme », MSF, 6 février 2003.
4C. Baxerres, F. Eboko , « Politiques, acteurs et dynamiques à l’ère de la Global Health », Politique africaine, 2019, vol. 156, n° 4.
55. G. Velásquez, « Vers une recherche sans brevets », Le Monde diplomatique, avril 2013.
6Assemblée mondiale de la Santé, « Rapport du groupe de travail consultatif d’experts sur le financement et la coordination de la recherche-développement », 2012, Organisation mondiale de la Santé, Genève.
7« Members discuss intellectual property response to the Covid- 19 pandemic », 20 octobre 2020, OMC, www.wto.org
8F. Polet, « Covid-19 au Sud : face au nationalisme vaccinal, l’enjeu de la souveraineté sanitaire », 2020, www.cetri.be.
François Polet é coodenador de pesquisas no Centro Tricontinental (CETRI) | Tradução: Vitor Costa
Extraído de OutrasPalavras