Rússia e Irã: contradança pós-moderna
Mas esse ano, por curiosa coincidência, marca também o 70º aniversário da Conferência de Teerã de 1943, evento importante nas relações russo-iranianas, uma rica tapeçaria de história, salpicada aqui e ali com sangue e traição.
A história das relações russo-iranianas é surpreendente. Putin foi o único líder russo a visitar Teerã, desde a Revolução Bolchevique em 1917. Mesmo assim, os dois países são jogadores antigos na arena geopolítica.
O retorno de Putin a Teerã, quase sete anos depois do sucesso estrondoso da primeira visita, em 2007, é como o desfecho de um conto e respectiva ‘moral da história’. A política exterior russa completou um ciclo. Putin espera limpar os estábulos egeus, removendo, literalmente, os detritos que se acumularam durante os anos quando não estava no Kremlin.
Conseguirá? Dará certo? Putin, sim, é visto como governante carismático pelos iranianos. Mesmo assim, como seus anfitriões avaliarão as intenções de Moscou? Essa última pergunta torna desafiadora a missão de Putin – além de arriscada.
O corte mais violento
A “distância” que se infiltrou no relacionamento russo-iraniano deve ser vista como um dos legados da presidência de Dmitry Medvedev (2008-2012), período quando Moscou só se preocupou com explorar o conteúdo do ‘reset’ com os EUA, que o presidente Barack Obama ofereceu de bandeja. Os ‘ocidentalistas’ que ocuparam o Kremlin durante aqueles anos encaravam o Irã com má vontade e desdém.
O Irã tornou-se preocupação secundária ou terciária para os russos, e a compreensão estratégica que Putin forjara naquela visita histórica começou a atrofiar-se. A Rússia continuou a arrastar-se na questão da usina nuclear de Bushehr, para atender ao que os EUA desejavam.
O Kremlin não resistiu quando os EUA introduziram a questão do Irã nuclear como vetor da cooperação russo-norte-americana no âmbito do ‘reset’. A cooperação da Rússia, país membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, era vital para que o governo Obama conseguisse apertar os parafusos contra o Irã, no que adiante se constatou que seria um regime de sanções incapacitantes com vida própria, que muitos países (como Índia e Japão) aceitaram contra a vontade.
Mesmo assim, Moscou entendeu imediatamente que a questão nuclear iraniana levantava algumas questões fundamentais de legislação internacional e da Carta da ONU, e que teria implicações profundas na operação de todo o sistema internacional.
Moscou também não deixou de perceber que o verdadeiro problema do ocidente com o Irã estava, sim, na ideologia de justiça e resistência; e que nada tinha a ver com Oriente Médio desnuclearizado.
O mais violento dos cortes aconteceu quando Medvedev interpretou as sanções da ONU como causa para que os russos desistissem de um negócio de armas assinado em 2007 para o fornecimento de mísseis S-300, com os quais Teerã contava como item crucialmente importante de sua defesa contra ataques de EUA e Israel.
Medvedev tomou a “decisão final” de desfazer o negócio sob pressão dos EUA, e o Kremlin desmentiu a percepção ainda dominante entre setores influentes do establishment em Moscou, de que a Rússia ainda poderia cumprir suas obrigações contratuais com o Irã.
O então presidente da Comissão de Assuntos Internacionais do Parlamento russo, Konstantin Kosachyov, havia dito que “foram acrescentados [na lista da ONU, de armas sob sanção] oito itens. Mas nenhum item de defesa, como os mísseis S-300. A resolução não terá efeito direto sobre a Rússia.”
Considerado em retrospectiva, o People’s Daily não errou, quando observou, em comentário seco, naquele momento, que “abundam as contradições nas intenções de Moscou relacionadas ao Irã.” De fato, sem a grande mão russa, os EUA jamais teriam conseguido transferir a ‘questão iraniana’ para a ONU.
Colher o momento
Hoje, o balanço do ‘reset’ já é, ele mesmo, um romance. A Organização do Tratado de Segurança Coletiva ainda é pária, na guerra da OTAN no Afeganistão. A independência do Kosovo ganhou pompa e circunstância.
A OTAN lançou suas redes sobre o espaço pós-soviético, continua a avançar rumo às fronteiras da Rússia e pode já ter chegado ao Cáucaso. Os EUA juraram derrotar o projeto de uma União Eurasiana, de Moscou. Claro, a Rússia não pôde impedir a ‘mudança de regime’ na Líbia e, até agora, têm sido ignoradas as objeções russas contra o programa de mísseis de defesa dos EUA.
Tudo isso considerado, vê-se que há um pano de fundo muito complexo a enquadrar a recente iniciativa russa para consertar seus laços com o Irã. A Rússia, ao render-se ao ‘reset’ imposto pelos EUA, feriu muito terrivelmente o Irã, num momento em que o Irã precisava contar com todos os aliados, para sobreviver à incansável pressão que lhes vinha dos EUA. Mas fato é que, mesmo sem Rússia, o Irã, afinal, sobreviveu.
Ataque militar contra o Irã já não é sequer pensável, exceto sob custos gigantescos e riscos ainda mais gigantescos no plano regional; a melhor probabilidade, hoje, é que o impasse EUA-Irã tenha de ser negociado.
Já se preveem conversações diretas entre EUA e Irã. A Rússia, pois, está “colhendo o momento”: Putin será o primeiro chefe de Estado a visitar o Irã na presidência de Rouhani.
Por outro lado, a compreensão e o apoio dos russos podem ajudar a abrir espaço para que o Irã encontre melhor posição para negociar com os EUA. Do ponto de vista do Irã, a firmeza da Rússia – ao impor seu veto como membro do Conselho de Segurança da ONU – é tendência encorajadora. A firme decisão dos russos de rejeitar os resultados de um relatório da ONU sobre testes de mísseis no Irã foi fator decisivo para virtualmente impedir qualquer ampliação do regime de sanções.
Mas a Rússia ter voltado atrás no negócio dos mísseis S-300 ainda ‘está pegando’. O Irã formalizou ação contra a Rússia, reclamando indenização de US$4 bilhões por danos, no tribunal internacional de arbitragem em Genebra. O caso do Irã é forte, mas a verdadeira questão é política – a crise de confiança que se criou no relacionamento entre os dois países, quando Medvedev assinou o decreto de 20/9/2010 que cancelou unilateralmente aquele negócio e uma série de outros contratos para fornecimento de armas ao Irã, além de impedir a entrada e o trânsito, por território russo, de vários cidadãos iranianos conectados com o programa nuclear iraniano, impedindo, simultaneamente, que cidadãos russos, indivíduos e entidades legais prestem serviços financeiros relacionados às atividades nucleares iranianas.
O ministro de Defesa do Irã, general Ahmad Vahid, comentou em termos muito ácidos, quase instantaneamente, o decreto de Medvedev; disse que o decreto mostrava que “não se pode confiar neles [nos russos], o que já se sabia”; e que o embargo era prova de que a Rússia “não consegue agir com independência, nem quando se trata de assunto menor e questão pequena.”
O jornal Kommersant da Rússia noticiava essa semana, na 4ª-feira, citando fontes do ministério de Relações Exteriores em Moscou, que Putin oferecerá a Teerã um sistema alternativo de defesa aérea, Antey-2500, que Teerã pode considerar com substituto interessante para o sistema S-300.
O Antey-2500 é um impressionante sistema de armas, capaz de destruir simultaneamente até 24 aviões inimigos, num raio de 200 km; ou interceptar até 16 mísseis balísticos. Pode-se dizer que o sistema é especificamente adequado para as necessidades de forças terrestres; e é possível que atenda perfeitamente às necessidades do Irã.
Kommersant também noticia que Putin discutirá o programa de expansão para a usina nuclear de Bushehr. Outros relatos indicam que os físicos nucleares iranianos já estão retomando seus estudos em instituições russas. E, há uma semana, Rússia e Irã fizeram um raro exercício de manobras navais conjuntas no Mar Cáspio.
Durante a recente visita do presidente do Irã Mahmud Ahmedinejad a Moscou, no contexto da reunião de cúpula dos países produtores de gás, houve discussões sobre a cooperação no campo da energia.
Pragmatismo perfeito, sem emendas
Rússia e Irã contam com exímios diplomatas, mas, mesmo com todo o pragmatismo perfeito, sem emendas e costuras improvisadas, com que contam hoje, nem assim será fácil a missão de Putin, que aspira a fazer reviver a confiança nas relações russo-iranianas.
A questão é que é indispensável um entendimento estratégico de base, entre as duas potências regionais, para que as discussões consigam avançar. Por exemplo, o ímpeto das políticas iranianas na Síria é derivado da política regional do Oriente Médio – e não se sabe até que ponto Moscou tem interesse em identificar-se com aquela política.
De fato, o presidente Hassan Rouhani recém-eleito tem repetido que as relações do Irã com os estados regionais serão a prioridade de sua política externa. Podem-se espera algumas grandes mudanças nos contatos entre o Irã e os estados do Conselho de Cooperação do Golfo, especialmente Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. A abordagem cautelosa que Teerã adotou em relação aos eventos no Egito reforça o pensamento nessa direção.
E os modelos estão em transformação, também nas relações EUA-Rússia. Apesar de manter posição consistente no caso de Edward Snowden, Moscou tem cuidado, também de não queimar pontes nos contatos com o governo Barack Obama.
A última coisa que o Irã desejaria é ver-se convertido em moeda de troca na détente EUA-Rússia. Atribui-se a Rouhani a ideia de que, sob a política de ‘olhar para o oriente’ [orig. “Look East”] de Ahmadinejad, “o Irã teve de confiar nas políticas dualistas de países como Rússia, China e Índia no plano internacional”. Rouhani teria dito que
Apesar das políticas de ‘olhar para o oriente’, a Rússia considerou que lhe seria interessante fortalecer suas relações com o ocidente. O apoio da Rússia às resoluções de sanções contra o Irã no Conselho de Segurança e o cancelamento de compromissos militares foram algumas das medidas anti-Irã, adotadas pelos russos. Usar da carta “Irã” em seu jogo com o ocidente e, especialmente, com os EUA, sempre trouxe vantagens à Rússia.
Isso posto, os especialistas russos são realistas sobre Rouhani e o veem como membro “moderado” da elite religiosa no Irã – “preparado para fazer concessões ao mundo, homem que sabe que não há sentido algum em guerrear contra moinhos de vento”, nas palavras de Vitaly Naumkin, Diretor do Instituto de Estudos Orientais da Academia de Ciências da Rússia.
Há otimismo cauteloso entre os especialistas em Moscou, para os quais um ‘aquecimento’ nas relações entre Irã e o ocidente não implica necessariamente prejuízo para os interesses russos. Estima-se que esse aquecimento será limitado e incremental, porque “o regime iraniano não poderá renunciar imediatamente a todos os seus valores básicos que tanto incômodo causam no ocidente” – como Naumkin observou.
O processo é facilitado por que Moscou não vê o Irã como fonte de extremismo religioso e a Rússia não enfrenta qualquer ameaça que lhe venha do extremismo xiita. Em princípio, portanto, não há obstáculos a uma cooperação russo-iraniana. O desafio está em construir a complementaridade dos interesses.
A classe média e os tecnocratas iranianos preferem a tecnologia ocidental – e as elites russas (diferentes dos ‘orientalistas’ soviéticos) não nutrem qualquer verdadeira paixão pelo Irã. Simultaneamente, a China é o parceiro comercial e a fonte de investimento com que os iranianos mais sonham.
Quando o Irã abre-se como uma última fronteira para exportar gás, pode até ferir algumas suscetibilidades em Moscou, se as exportações algum dia chegarem ao mercado europeu, fazendo concorrência ao gás russo. Mas os russos levam vantagem em dois domínios chaves: cooperação militar e energia nuclear.
Enquanto isso, a Rússia também está diversificando suas relações com os países da região, o que implica que uma parceria privilegiada com o Irã não pode acontecer em detrimento de laços que começam a se tecer com a Turquia ou com Israel. Em resumo, as duas potências regionais vão-se agrupando e construindo os fundamentos de um relacionamento pós-moderno, diferente de tudo que elas jamais conheceram, até agora.
Traduzido pelo coletivo Vila Vudu.
Publicado em 26/7/2013, M K Bhadrakumar, Asia Times Online
http://www.atimes.com/atimes/Central_Asia/CEN-01-260713.html