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Prezado Renato*:
Desculpe a demora, mas o fim de semana foi de reunião pesada, e para completar esse feriado contrarrevolucionário e ridículo daqui de São Paulo. Encaminho algumas breves (e iniciais) considerações, em termos bibliográficos – digamos de sustentação à abordagem teórica -, mais ou menos como o companheiro sugeriu. Gostaria muito de seu retorno, pois o tema é vasto, instigante e intensamente forjador de indagações e pesquisas. Estímulo o qual desde já lhe agradeço, igualmente compartilhando curiosidade, dúvidas e indagações. 
A meu juízo e sinteticamente formulando assim a questão por você aludida: as dimensões (e desenvolvimento) da compreensão relacional entre o espontâneo e o consciente – desdobrando-se daí a contemporaneidade da teoria e prática do Partido como fator chave da consciência revolucionária – reclamam ser atualizados à luz das novas contribuições teóricas que auxiliem na reconfiguração de conteúdos e contornos da problemática em foco. Noutras palavras: são válidas mais do que nunca as observações do epistemólogo português Armando Castro (a quem tive a sorte de acompanhar em algumas de suas obras): não há como “Conhecer o conhecimento” (Avante!, 1989) sem os recursos ao instrumento da interdisciplinaridade científica. Certamente isso não é novidade alguma para você. Mas veja o que quero assumir concretamente:
“Acresce que, sendo exacto que somente a partir dos progressos das múltiplas disciplinas, tanto psicológicas, sociais e históricas como ainda biológicas, (…), é que se criaram as condições para a construção da Epistemologia Geral, além desta existe os ramos da ciência do conhecimento científico, que dizem respeito a uma subárea do sistema geral de ciências como as ciências da natureza, as lógico-dedutivas, as ciências do homem. Mas estamos em condições de erguer outras – trata-se do estudo das leis específicas de uma disciplina em concreto, como a Física Mecânica, a Física das Altas Energias, a Biologia Molecular, a Economia, a História, a Sociologia, a Psicologia, etc. Eis aqui os ramos que designo, respectivamente, por Epistemologias Regionais e por Epistemologias disciplinares” (“A contribuição de Marx à teoria e à metodologia das ciências”, A. Castro, Lisboa, 1983, in: “Conhecer…”, p. 83).
Também não lhe é noviço o problema da complexificação do conhecimento científico (e das ciências), notadamente desde o andar da crise dos anos 1970 e das sucessivas quebras (ou crises) de paradigmas – aqui recusando a taxonomia do Kuhn ou a liquidação de uma ciência como empresa racional -, novamente repondo a imprescindibilidade de uma epistemologia geral, em cuja unidade de seu objeto teórico aborda:
“antes de tudo, que fenômenos epistêmicos como o relativismo histórico dos conhecimentos científicos, a dinâmica das ciências e suas leis, bem como a categoria de ‘fenômenos pós-fenomenais’… se explicam reciprocamente”; ou ainda, que isso implicaria numa teorização da própria dinâmica “que explica o relativismo histórico dos conhecimentos científicos” (“Teoria do conhecimento científico”, v. 8, A. Castro, Lisboa, Instituto Piaget, 2001, pp. 39 e 41).
Simultaneamente, e adentrando mais ao assunto focado, diria que, nos dias que sucedem a debacle do socialismo real do leste europeu e especialmente a desestruturação da URSS: 1) em termos gerais, o furacão irracionalista, ao lado do relativismo epistemológico e da regressão “pós-moderna” passaram a ditar as tendências vulgares da filosofia contemporânea das ciências – incontornável acrescer a amplificação das formas fetichizadas da alienação espalhadas aos mais recônditos lugares do planeta, através da profunda hegemonia do capital financeiro e da alta finança em geral. 2) A esse quadro “disforme”, o pano de fundo da evolução entre o espontâneo e o consciente desenha um paradoxal processo fortemente regressivo da civilização burguesa nucleada pelo seu aríete anglo-saxão e sua agressiva ideologia. Ondas miasmáticas a engolfar as organizações anticapitalistas “tradicionais” seriam inevitáveis 3) Creio que, bem mais ainda hoje os processos formativos geradores de níveis distintos de consciência compreendem – como citou o grande pensador Gaston-Granger a Costa de Beauregard – a reversibilidade da concepção de espaço-tempo (em relatividade restrita), sendo que é neste espaço-tempo que “na realidade funcionaria nossa consciência”: “o psiquismo deve ser concebido como co-extensivo ao espaço-tempo” (Beauregard, apud Gaston-Granger, in: “O irracional”, São Paulo, Unesp, 2002, p.245). Psiquismo… Sim, pode-se agregar aí também a historicidade da consciência.
Acontece que em “A matéria roubada. A apropriação crítica do objeto da física contemporânea”, o brilhante físico e historiador da ciência Michel Paty argumenta, de maneira “simples”, que a matéria é roubada pelo pensamento (ou o pensamento rouba a matéria), sendo o conhecimento desse real (preexistente) inesgotável; por isso mesmo o conhecimento da matéria “é menos abstrato do que parece” (pp. 29-29). Segundo Paty, todo conhecimento é “transposição a uma ordem simbólica”, o que não significa que o conhecimento científico “se reduza ao conhecimento comum”; pois é a atividade humana e sua aptidão “capaz de produzir o imaginário e o simbólico” (p. 33). Porém – afirma Paty em uma de suas conclusões -, são as “diversas instâncias de intervenção” da prática que determinam a ciência moderna ou as rupturas no conhecimento científico: e resultam “precisamente da consideração de novas relações entre aos conceitos e a prática, a teoria e a experiência, a ciência e a sociedade” (São Paulo, Edusp, 1993, pp. 278-9).  …
Espaço e tempo, linguagem e consciência. Neste viés é conhecida a crítica contundente de M. Bakhtin (“Marxismo e filosofia da linguagem”, São Paulo, Hucitec, 2010, p. 33, 14ª edição) à visão psicologista e à concepção idealista da cultura, as duas essencialmente situando a ideologia na consciência: o signo (o símbolo) seria uma capa, a expressão técnica da compreensão (interior). Para Bakhtin, essa própria consciência só pode se manifestar, surgir e “se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos” (idem, p. 34). Em se transferindo, portanto, o estudo das ideologias pelo das consciências e suas leis, têm-se um ato material e social introduzidos a fórceps “no quadro da consciência individual”. É que a consciência individual é um fato social e ideológico, sendo que a única definição objetiva possível de consciência:
“é de ordem sociológica. A consciência não pode derivar diretamente da natureza, como tentaram e ainda tentam mostrar o materialismo mecanicista ingênuo e a psicologia contemporânea” (biológica, behaviorista…). “(…) A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de relações sociais” (idem, pp. 35-36, 14ªedição).
Prolongando esse espectro há as observações críticas a Merleau-Ponty, de J. Barata-Moura, acerca da visão da “intencionalidade” (“consciência intencional”): ela seria a característica fundamental da consciência, de sua práxis objetiva (sua realização simbólica) apenas estando espaço-temporalmente a uma espera reveladora de uma intenção. Dito de outra maneira, a fala de significação (simbólica) da consciência intencional termina por ser oriunda de um comportamento efetivamente prático, não um subproduto da atividade pensante: o pensar para (a tomada de) consciência se dissolve “na prática material”, comprometendo, assim, “decisivamente a possibilidade de uma sua elucidação concreta e material com a sua constitutiva remissão para o terreno da linguagem, da atividade linguística” (“O conceito de práxis para Merleau-Ponty”, in: Da práxis à representação. Itinerários do idealismo contemporâneo, Lisboa, Avante!, 1986, pp. 93-95). Relembre-se, porque práxis, para Marx, significa e tão somente pratica materialmente transformadora – transformadora de suas circunstâncias e de si -, o que nem toda atividade humana o é. (ver: Teses sobre Feuerbach).
Buscando resumir esses dois últimos tópicos. Todavia, uma tomada de consciência individual, uma subjetividade, não pode converter-se no objeto do conhecimento científico social; a explicação da consciência social pela articulação das ciências da sociedade é decisiva para o entendimento da atividade dos homes na história. Seriam – Kelle & Kolvazán, em “Teoria e História”, Lisboa, Avante! 1990) -, alguns princípios que norteariam a concepção científica da consciência social: 1) o princípio da reflexão (materialista; Lênin); 2) o do ser social como determinador dessa consciência social; 3) o do sistema de conceitos (sistematização); 3) o do exame da sociedade integrando um sistema social de relações sociais correspondentes ou um sistema social específico (“consciência historicista”). O princípio do historicismo, entretanto, haveria de ser teorizado com rigor, desde a utilização das categorias e leis da dialética materialista, bem como buscar combinar “a previsão, a certeza e a estabilidade com a flexibilidade, variabilidade e relatividade” (pp. 55-63). De outra parte, ressalta Barata-Moura que a consciência não deve ser identificada com a exteriorização de seus resultados expressos e imediatos (ideias/semântica/prática), ou com as ações que ela declaradamente determina: ela “não pode ser senão a consciência da prática existente ou subsistente”. Ou citando Marx-Engels em A ideologia alemã, recorda o filósofo português: “A consciência nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real” (“Prática. Para uma aclaração do seu sentido como categoria filosófica”, Lisboa, Colibri, 1994, p. 33). 
E finalmente espremendo uma síntese do resumo anterior, diríamos que, na verdade, estamos falando duma totalidade: a unidade concreta entre o ser e a consciência. Enfocando a questão por laços contíguos, Barata-Moura em “Ideologia e prática” (Lisboa, Avante! 1978) observa que consciência não é coisa separada ou domínio a parte, tampouco instância etérea, isolada do ser real dos homens. Esses homens são um conjunto “complexo de relações sociais”, na e pela atividade conjunta e perene (prática) de transformação materializada (natural e social) “onde a consciência se inscreve, ocupando um lugar determinado específico” (p. 120-121). Refletindo sempre a realidade objetiva, seja do ponto de vista objetivo ou subjetivo, “a consciência sempre está situada e em situação” (idem, p. 122). Daí que compreender as conexões entre a previsão, a certeza e a estabilidade com a flexibilidade, variabilidade e relatividade, é simultâneo à recusa de uma visão do conhecimento como estado natural, estável e fixo, deformante, portanto, da possibilidade de se passar a uma explicação das leis que regem a aproximação científica do conhecimento; “da sensação à percepção, da imagem captada por esta à elaboração racional (de caráter analítico-sintético, formulando abstrações e generalizações) e depois,…à sua prática individual e à prática social conjunta, tanto acumulada ao longo do tempo com duma coletividade em dada fase da sua evolução, eis o conjunto de elementos que se integram para produzir o conhecimento” (A. Castro, “Teoria do conhecimento científico”, vol. 1, Lisboa, Limiar, 1978 (pp. 79-82).
Em termos de arremate acerca da historicidade epistêmica da relação entre o espontâneo e o consciente. 1) Conforme assinalou Lênin, frequentemente acontece quando na história ocorre uma mudança brusca, “até os partidos avançados levam um tempo mais ou menos longo para habituar-se à nova situação, repetem palavras de ordem que ontem eram corretas mas hoje perderam todo o sentido…tão ‘subitamente’ com tão ‘súbita’ foi a brusca viragem da história”(“A proposito de las consignas”, in: Entre dos revoluciones. Artículos y discursos de 1917, Moscou, Progreso, 1978).
2) Ora, mas a história é sempre o continuum passado, presente e futuro. O Hobsbawm bem acima citado enfatiza que os vínculos entre passado e futuro não é concatenação arbitrária de circunstâncias e eventos. As estruturas das sociedades humanas – descreve -, seus processos e mecanismos de reprodução, mudança e transformação voltam-se para restringir “o número de coisas passíveis de acontecer, determinar algumas coisas que acontecerão e possibilitar a indicação de probabilidades maiores ou menores para a grande parte das restantes”; “certo grau (admitidamente limitado) de previsibilidade” (idem, p. 50).
3) Reiteradamente o que pressupõe o conhecimento como “um processo histórico – onde as demais condições do viver e da cultura, das etapas de desenvolvimento dos saberes e das técnicas, da própria prática social, igualmente se inscrevem, e com o qual interagem”. E no que respeita ao pensar, “a consideração materialista de relatividade diz-nos que o saber é função de um relacionamento histórico determinado” (J. Barata-Moura, “Sobre Lénine a filosofia. A reivindicação de uma ontologia materialista dialéctica com projecto”, Lisboa, Avante!, 2010, pp.113 e 116).
Em tempo. O exame indispensável das Jornadas de Junho, de seus radicais desdobramentos na cena política brasileira, como sugeri no artigo passado revelam centralmente o acúmulo de contradições velhas e novas do desenvolvimento do capitalismo brasileiro em seu novo ciclo politico. Fazendo explodir novas mediações (notadamente sociais, também politicas e ideológicas) entre o consciente (a deflagração organizada por pequenos grupos em rede) e o espontâneo (mas não desprovido de “intencionalidade”) de adesão “súbita” de grandes massas, motivou a tentativa de captura das manifestações pela direita neoliberal, especialmente pela mídia oligopolista (enxovalhada nas ruas), e abriu um rumo político em disputa, contra o governo Dilma.
Abraço fraternal,
Aloísio Sérgio Barroso
São Paulo, 18 de julho de 2013

*Renato Guimarães, editor da Revan