A Palmeira dos Índios do prefeito Graciliano Ramos
Um cano estourado jorra água na escadaria e molha os tornozelos de quem entra. A secura do lugar, naquela que já é considerada a pior estiagem dos últimos 40 anos, evita que a recepção à Prefeitura de Palmeira dos Índios fique encharcada.
Dois óleos com moldura dourada estão pendurados atrás do balcão. Retratam James Ribeiro Calado Sampaio Monteiro, 42 anos, prefeito reeleito, e José Helenildo Ribeiro Monteiro, prefeito duas vezes da cidade, morto em 2006, aos 60 anos, no último mês de seu mandato na Câmara dos Deputados.
Um cartaz afixado na porta tem um disque denúncia com o brasão federal contra falsos cadastrados no Bolsa Família: “Fique de olho. Ajude o Bolsa Família a ajudar famílias”.
Uma galeria de prefeitos está distribuída nas duas paredes laterais da sala. A maior delas tem ao meio novamente James, o 69º prefeito. Está logo acima de Helenildo, contemplado com dois retratos iguais, um para cada mandato.
Graciliano Ramos de Oliveira, o 13º prefeito de Palmeira dos Indios, que governou a cidade de 7 janeiro de 1927 a 10 de abril de 1930, está na extremidade inferior direita, ofuscado pelo sol vindo do janelão aberto para a praça da Independência. “Nunca tinha visto esse retrato, acho que puseram há pouco tempo”, diz um funcionário de passagem por ali.
Na quarta-feira, completam-se 60 anos da morte do escritor seco e lúcido, que escrevia cortando palavras.
Foi daquela casa, construída em 1919 para abrigar a sede da prefeitura, que Graciliano se lançou à literatura. Os relatórios com os quais prestaria contas de sua gestão ao governador de Alagoas iriam parar na imprensa do Rio e cair nas graças do poeta e editor Augusto Frederico Schmidt.
“Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca. Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta. Há descontentamento. Se a minha estada na prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos”, escreveu Graciliano ao fim de um dos relatórios.
Foi uma premonição. Dezesseis anos depois de renunciar à prefeitura, já morando no Rio, filiou-se ao Partido Comunista e, por insistência dos amigos, candidatou-se à Câmara dos Deputados por Alagoas. O Estado lhe deu 62 votos. Sem pisar lá, enviou por escrito discurso eleitoral que começava assim: “Meus raros amigos de Alagoas”.
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Os relatórios de prestação de contas escritos por Graciliano Ramos ao governo de Alagoas caíram nas graças de poeta e editor no Rio
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James Ribeiro, 56º sucessor de Graciliano, senta-se à mesa de seu gabinete com uma expressão de poucos amigos. Numa folha afixada à porta da sala, lê-se: “Não entre sem autorização”. Noutra, ao lado: “Banheiro exclusivamente do prefeito”.
Cerca-se de meia dúzia de assessores e secretários. Outro tanto observa a entrevista em pé. Mantém, sobre a mesa, a Constituição Federal e o livro “Ética, Direito e Administração Pública”. No pulso direito tem amarrada uma fita azul de Nosso Senhor do Bonfim.
Indiciado pela Polícia Federal no inquérito que apura o escândalo dos sanguessugas, Ribeiro foi acusado de receber propina do empresário Luiz Antonio Vedoin, fornecedor de ambulâncias. O pai, que exercia mandato de deputado federal, foi inocentado pela CPI dos Sanguessugas. O atual prefeito, à época seu assessor parlamentar, seria absolvido da acusação de improbidade administrativa, mas ainda enfrenta duas ações penais.
Filiado ao PSDB desde que ingressou na carreira pública, James Ribeiro estudou administração de empresas e elegeu-se prefeito pela primeira vez aos 38 anos, três a mais do que Graciliano ao assumir a prefeitura.
Nomeia o governador Teotônio Vilela (PSDB) e o senador Renan Calheiros (PMDB), nessa ordem, como seus principais suportes na prefeitura. Diz que não teria conseguido calçamento para a cidade, Minha Casa Minha Vida ou uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) – que foi inaugurada há dois anos, mas ainda não funciona – sem o apoio de ambos. “A atividade política está criminalizada”, lamenta, em defesa do presidente do Senado.
Mas é Helenildo sua principal inspiração na política. O gabinete tem mais uma galeria de fotos do pai, uma delas com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e abriga ainda a réplica da placa de inauguração da adutora, batizada com o nome de Helenildo. Inaugurada em 2009 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda hoje a adutora carece de bombas e ramais para levar água aos pequenos produtores da região.
Oito décadas atrás, pai de prefeito só aparecia por ali soltando fumaça pelas ventas. Corria o ano de 1928. Graciliano Ramos vivia insatisfeito com a ausência de uma lei municipal que regulamentasse a vida na cidade. Foi buscar papéis do império, de 1865, e valeu-se de algumas poucas leis já aprovadas para redigir um novo código que levou à apreciação dos vereadores, então chamados de conselheiros.
Dali resultou o Código Municipal com 82 artigos. Entre as condutas reprovadas estava a de deixar animais soltos na área urbana. Pois o fiscal foi dar com porcos de Sebastião Ramos, comerciante e produtor rural respeitado na cidade, bem no meio da rua. Constrangido, contou ao prefeito. Graciliano queixou-se porque o fiscal não atirara nos porcos e mandou lavrar a multa. Feito o pagamento, entregou o recibo ao pai, que o recebeu sob protestos.
Seu Sebastião, como o filho o chamava, pagou dobrado a insistência para que o filho aceitasse o cargo.
Um matuto esfarrapado apareceu um dia na prefeitura para denunciar abusos. O gado do vizinho tinha invadido sua roça de mandioca. Prejuízo danado. Em vez de indenização, recebera do vizinho outra invasão do gado, dessa vez acabando com o plantio de verdura.
– O senhor devia ter vindo há mais tempo. Por que não veio?
– O gado é do pai de vosmecê.
– Pois fique o senhor sabendo que prefeito não tem pai nem mãe.
Mandou prender o gado e chamar o pai.
– Seu Sebastião, eu não pedi para ser prefeito. O senhor cometeu uma injustiça não mandando reparar os estragos desse caboclo. Isso dá cadeia. O senhor deve pagar uma multa e os estragos que o gado fez no roçado.
James Ribeiro, assim como todos os políticos da cidade, gosta de citar Graciliano, principalmente em discursos eleitorais. As afinidades eletivas extrapolam os limites da cidade. Uma campanha publicitária do governo estadual já retratou Graciliano como o pai da responsabilidade fiscal no país. Só não disse que o homem era comunista.
O atual prefeito quer trocar a escultura de pedra do rosto de Graciliano fincada na entrada da cidade pela da família de Fabiano, de “Vidas Secas”, o livro mais vendido de Graciliano, hoje na 116ª edição.
A escultura foi colocada lá por Alberico Cordeiro, prefeito, já morto, que governou Palmeira na década passada e é tido, até hoje, como aquele que mais cultuou a imagem do escritor na cidade. Até memorial quis edificar, mas foi vencido pela falta de recursos.
Uma das poucas informações públicas disponíveis no site do Tribunal de Contas do Estado de Alagoas é a lista (desatualizada) de contas municipais rejeitadas pela instituição. Lá consta a de Palmeira dos Índios em 2005, quando a cidade era gerida por Cordeiro. Em levantamento patrocinado pelo Instituto Ethos em 2012, o tribunal de Alagoas foi considerado o segundo menos independente do país. Só perde para o de Mato Grosso.
Além de “Vidas Secas”, o atual prefeito de Palmeira dos Índios diz ter lido os relatórios, que chama de “documentários”. A prestação de contas de Graciliano não era exigida pela legislação da época. Oitenta anos depois, a lei exige que os prefeitos prestem contas, mas até seus leitores mais atentos são privados de acesso às de Palmeira.
“Há quatro anos o Tribunal de Contas não recebe nem vota as contas do município”, diz Vladimir Ivanovich Barros, um advogado e jornalista de 40 anos que foi candidato derrotado na campanha que reelegeu Ribeiro. Filiado ao PCdoB, Barros candidatou-se a vice de chapa liderada pela neta petista do prefeito que Graciliano substuíra na prefeitura. Atribui seu nome e o dos irmãos (Dimitri e Svetlana) à predileção do pai, Ivan Barros, promotor de justiça e jornalista, por Dostoiévski e pelo socialismo soviético.
A sede do semanário fundado pelo pai, “Tribuna do Sertão”, fica num sobrado recentemente reformado. A entrada é ladeada por esculturas de padre Cícero, frei Damião e Tenório Cavalcanti, outro palmeirense ilustre. Apenas uma escada separa seu escritório de advocacia da redação do jornal que dirige.
Antes de se sentar, pousa sobre a mesa uma pilha de livros do pai, autor da biografia que melhor descreve os entreveros do escritor com Sebastião Ramos. Tem um arquivo particular sobre Graciliano, no qual consta a coleção de “O Índio”, o jornal que circulou na cidade no início do século XX e teve no escritor um de seus fundadores.
Nas edições encadernadas que mostra, lê-se, entre poucos anúncios, o da Loja Sincera, o estabelecimento comercial que Graciliano herdou do pai: “Preços sem competência”. A loja firmou-se com uma reputação de preços baixos onde não adiantava barganhar. A fachada foi destruída, mas o prédio continua lá, ao lado da prefeitura, e abriga uma unidade da Casa Guido, rede de varejo local. Uma faixa anuncia a política de vendas: “Aproveite agora mesmo seu cartão Guido e parcele nas compras em até 10 vezes sem juros”.
No jornal de Vladimir a maioria dos anunciantes vem de Arapiraca, a 38 km de Palmeira. A primeira página sempre estampa uma moça de biquíni e denúncias, ora contra o governador, ora contra o prefeito. Os aliados são os senadores Fernando Collor (PTB) e Renan. Uma edição de fevereiro trazia reportagem de alto de página sob o título “Garotinho confirma a força de Collor à Presidência” e artigo de Renan, colaborador fixo. “Ele é como uma fênix que renasce das cinzas”, comenta o diretor de redação sobre seu colunista.
Renan é a única afinidade comum entre os dois adversários, que se miram abaixo da cintura em seus ataques recíprocos. Em casa, onde faz uma pausa para o almoço, Ribeiro deita falação contra seus adversários.
Comenta o escândalo que o envolveu em 2006 e o relaciona à morte do pai, por aneurisma: “Recebi do Vedoin um cheque de R$ 5 mil para as camisetas de minha campanha, mas meu pai nunca apresentou emenda para beneficiá-lo. É claro que Vedoin tinha a expectativa de vender ambulância para a prefeitura, mas eu perdi a eleição”.
A mulher, Mosabelle, uma afilada morena de rabo de cavalo e colar de pedras, chega para almoçar. Um cachorro, o único dos 11 da chácara a perambular pelo alpendre, se aproxima. O hábito dos sertanejos de nomear seus cachorros por bichos do mar caiu em desuso. O shar-pei de 8 anos chama-se John.
Mais carismática que o marido, chama os serviçais da casa para sentarem-se à mesa posta no alpendre da casa. Enfermeira, tem um cargo administrativo na Secretaria da Saúde, mas diz que ganhava melhor como coordenadora de um hospital de Maceió.
Dos parentes acomodados na prefeitura, o mais difícil de encontrar é o irmão de James, Lucas, que responde pela Secretaria de Finanças. A pergunta sobre a prestação de contas do município é recebida com estranheza. Todos no gabinete do prefeito conhecem o relatório de Graciliano, mas ninguém parece ter muita familiaridade com a prestação de contas da atual administração.
“Dessa contabilidade quem cuida é Ivan”, diz James, enquanto passa o celular com o contador da prefeitura na linha. “Hoje ainda essa prestação de contas estará no seu e-mail.” Quinze dias e uma infinidade de requerimentos depois, o documento continuava desconhecido – ou omitido – por prefeito, chefe de gabinete, secretário particular, secretário de Articulação Política e secretário de Finanças.
A prestação tampouco está acessível no Tribunal de Contas de Alagoas, onde a requisição de uma informação pública passa por quatro gabinetes e acaba represada no gabinete do presidente da instituição.
Quem precisa das contas daquele tribunal fica quase tão impaciente quanto o presidente do Supremo, Joaquim Barbosa, que, nesta semana, chamou de lenientes os bancos retardatários em prestar informações sobre lavagem de dinheiro.
As sanções previstas para prefeituras que falhem em prestar contas não parece preocupar ninguém em Palmeira. A Confederação Nacional dos Municípios informa que 80% das cidades do país estão impedidas de fazer convênios com a União por inadimplência com o Tesouro Nacional. E o PAC está aí para quem quiser obras sem quitar as contas.
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Teotônio Vilela e Renan Calheiros são os principais suportes de James Ribeiro na Prefeitura de Palmeira dos Índios
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Graciliano usava uma régua para traçar as linhas que separavam receitas e despesas da prefeitura no livro-caixa ainda hoje guardado no museu que leva seu nome e está instalado na casa onde viveu. O museu é gerido por João Tenório, um dedicado funcionário da prefeitura, que detém o acervo, mas não a casa, desapropriada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. No museu, primeiras edições, manuscritos e documentos originais do escritor deterioram-se pela ausência de vitrines climatizadas, a despeito de reforma recente do Iphan.
Sem dinheiro para pagar o aluguel de um estande, o museu corre o risco de ficar de fora da Festa Literária Internacional de Paraty, que neste ano homenageia o escritor.
Enquanto mostra a casa, Tenório é interpelado, pela janela, por uma moça que segura um capacete de moto. “A seleção da Sadia-Perdigão já terminou?”, indaga.
A empresa, hoje BRF, uma das maiores indústrias de alimentos do país, não tem unidades em Alagoas, mas recruta mão de obra em Palmeira dos Índios. Para gerar caixa, a prefeitura aluga um precário auditório do museu para o recrutamento.
Os relatórios estão no museu. “Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados”, diz o prefeito escritor na primeira de suas prestações de conta, ainda muito desconhecida por seus conterrâneos.
Quando Graciliano decidiu renunciar ao cargo, dois anos depois de ter sido eleito, para aceitar o de diretor da Imprensa Oficial do Estado, o relatório já tinha feito sua fama literária no Rio. O seu legado de administrador público é que foi engavetado. E não apenas em Palmeira dos Índios.
James Ribeiro recebeu uma folha de pagamentos com 22 meses de administrações anteriores, inclusive a de seu pai. A antessala do gabinete é permanentemente lotada de funcionários com precatórios a receber e palmeirenses em busca de emprego.
Diz não entender de contabilidade, mas desenvolve a seguinte métrica para conseguir dinheiro federal: “Com a renegociação da dívida tiramos a certidão negativa e conseguimos o empenho dos recursos. Quitamos a primeira parcela, mas não estamos conseguindo pagar as outras. São cinco milhões apenas de dívidas com o INSS. Aí vamos ter que renegociar de novo e pagar outra parcela para conseguir mais uma liberação”.
Como a maioria das prefeituras do país, a de Palmeira dos Índios tem uma arrecadação pífia. Quem sonega? “Os bancos, pode pôr aí”, diz o prefeito, enquanto encomenda os dados da receita de ISS e IPTU. Diz ter enviado projeto à Câmara de Vereadores propondo um perdão de até 90% dos juros das dívidas dos contribuintes que decidissem regularizar sua situação fiscal. “Não teve adesão”, lamenta.
Um papel lhe chega às mãos e informa uma inadimplência de 80% dos tributos municipais. E, para sua surpresa, lista como maior devedor do município um clube, em cuja diretoria têm assento secretários do prefeito, como seu chefe de gabinete, José Clóvis Leite, sobrinho-neto do escritor e o único da família a se aventurar na política com um mandato, já findo, de vereador.
No segundo relatório Graciliano conta ter dobrado a arrecadação e narra as dificuldades. Faz 80 anos, mas parece hoje: “O esforço empregado para dar ao município o necessário é vivamente combatido por alguns pregoeiros de métodos administrativamente originais. Em conformidade com eles, deveríamos proceder sempre com a máxima condescendência, não onerar os camaradas, ser rigorosos apenas com os pobres-diabos em proteção, diminuir a receita, reduzir a despesa aos vencimentos dos funcionários, que ninguém vive sem comer, deixar esse luxo de obras públicas à Federação, ao Estado ou, na falta deles, à Providência Divina”.
Hoje a Prefeitura de Palmeira dos Índios tem 1.992 funcionários. Na época de Graciliano, eram 11. E o escritor prefeito resistia a aumentar o quadro: “Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos. Saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles”.
Como em toda prefeitura, os gabinetes administrativos hoje são lotados, mas faltam médicos no único hospital da cidade. Promovem-se concursos públicos em atendimento à lei, mas os apadrinhados forçam a fila.
O labirinto de gabinetes da Prefeitura de Palmeira dos Índios está sempre apinhado de gente esperando para falar com o prefeito. Ao atravessá-lo, James Ribeiro é abordado ao pé do ouvido, e responde baixinho: “Não posso, se eu chamar fora do concurso o Ministério Público dá em cima de mim”.
“Já vim aqui quatro vezes e não consegui falar. Da próxima vez vou lá na casa dele. Fiz isso uma vez, às 6h30 já ‘tava’ lá”, diz um servente de pedreiro que busca emprego e aguardava Ribeiro às 7 horas em frente da prefeitura.
Já não se veem os mendigos da época de Graciliano, mas a fila para o recadastramento no Bolsa Família dá a volta no quarteirão.
Seu código municipal proibia a mendicância. Mas a medida de maior eficácia foi convocá-los ao trabalho. Reuniu os pedintes e perguntou quanto recebiam de donativos. Ofereceu-lhes o dobro para que construíssem um muro. Foram um dia e depois sumiram. Para as estradas que se orgulhava de ter construído, mandou buscar os presos.
Em palestra que fez por lá, o economista Cícero Péricles, organizador do minucioso “Almanaque dos Municípios Alagoanos”, traduziu Palmeira dos Índios em números: o IBGE encontrou 20 mil famílias na cidade, sendo 11 mil cadastradas no Bolsa Família.
A frequência dos beneficiários à escola é quase total. O prefeito se orgulha de ter cumprido a meta de avanço do Ideb, o que devolveu ao município o selo Unicef, medalha alcançada por 10% das cidades do Estado. As escolas estão sendo reformadas, o almoxarifado é lotado de livros didáticos enviados pelo MEC e a merenda, a despeito das denúncias de superfaturamento, abarrota os freezers.
As crianças chegam à aula uniformizadas e puxando suas malas de rodinhas estampadas pelo desenho animado da moda. As escolas exibem cartazes com os alunos premiados em olimpíadas e concursos nacionais.
Um deles é José Wallace dos Santos. Filho de agricultores e aluno de uma escola rural do município, foi selecionado em 2010 pela embaixada americana para intercâmbio que culminou com uma entrevista com Michelle Obama na Casa Branca. Hoje, aos 19 anos, é aluno de direito de uma faculdade privada em Arapiraca, estagia no Ministério Público, dá aulas de inglês e é presidente do PMDB jovem.
Articulado, vestido com uma camiseta que trouxe de lembrança da Flórida, cita a professora que enxergou sua facilidade para línguas e o diretor da escola que equipou todas as salas com ar condicionado. Foi lá que conheceu Graciliano, de quem cita “Vidas Secas”. Nunca ouviu falar dos relatórios do escritor prefeito.
Os pais de Wallace integram o contingente que recebe o maior volume de recursos federais do município, o de aposentados. Em Palmeira dos Índios a Previdência tem 22 mil beneficiários. Em valores, o INSS leva para a cidade quase dez vezes o montante do Bolsa Família e mais do que o dobro das transferências municipais.
Corre pouco dinheiro de iniciativa privada na cidade. Os maiores empregadores privados são os laticínios. Não se entabula uma conversa de dez minutos com alguém sobre Palmeira que não passe pela comparação, sempre nostálgica, com Arapiraca. O Cine Palácio, uma sala de projeção com folhas de eucalipto espalhadas no chão, é lembrado como o apogeu de uma Palmeira que já se foi.
O polo industrial que está a caminho e as cinco faculdades já instaladas na cidade podem até aproximar a diferença entre as duas economias, mas hoje um fosso de lamentações as separa. Até a década de 1970 os moradores de Arapiraca se deslocavam até Palmeira para fazer compras. Com o fumo, que fomentou a agroindústria do lugar, a economia bombou e hoje Arapiraca, além de uma população três vezes maior, ultrapassa Palmeira na arrecadação de ISS 35 vezes.
Sócio de um dos laticínios, o Bona Sorte, Roberto Amaral oferece uma explicação à la Graciliano para a decadência de Palmeira. Médico veterinário formado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, nascido na família com maior tradição leiteira de Alagoas, Amaral é um entusiasta do palmeirense, ainda que não seja nascido na cidade.
Credita na conta dos trabalhadores a produtividade da indústria leiteira da região, que diz ser maior que a de Minas, principal produtor de leite do país. Conta que a Justiça do Trabalho é pouco requisitada na região. A rede de supermercados que é sócia majoritária do laticínio tem 17 lojas no Estado. A que enfrenta menos processos trabalhistas é a de Palmeira.
Em duas horas de conversa não menciona a seca. “Não falta água em Palmeira. Se a população fica desabastecida, é pela gestão da Casal [a companhia de águas do Estado].”
No dia anterior, um emissário do prefeito havia sido despachado para Santana do Ipanema, onde o governador estava, para “pedir pressão no Gilberto Carvalho” pelo perdão da dívida dos agricultores de Palmeira.
Enquanto explica sua tese sobre a decadência de Palmeira, Amaral mostra imagem no Facebook de Nossa Senhora do Amparo, que Graciliano descreve em “Caetés” e ainda hoje está guardada na catedral. Dois rapazes que trabalham lá também desconhecem que “São Bernardo” foi escrito naquela sacristia.
A tese do empresário é que Palmeira é vítima da “síndrome das cidades antigas”. As gerações mais velhas expulsaram os jovens inovadores. Os empresários não deixaram os filhos informatizarem seus estabelecimentos e os políticos resistiram a sucessores que quiseram modernizar a administração pública.
Foi assim com Luciano Barbosa, nascido em Palmeira dos Índios e emigrado para Arapiraca, de onde partiria para o Ministério da Integração Nacional no governo FHC e se tornaria um dos prefeitos mais dinâmicos da cidade, que já conta com cinco administrações do mesmo grupo político. Nos últimos 50 anos, prefeito de Palmeira dos Índios nunca fez o sucessor.
Não teria sido essa também a história de Graciliano? Nas cartas à segunda mulher, Heloísa, com quem, viúvo, se casou no mês seguinte à posse, dava a entender que não se achava com vocação para a coisa – “Para os cargos da administração municipal escolhem de preferência os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou gatuno, que tenho na cabeça uns parafusos de menos, mas não sou imbecil, não dou para o ofício e qualquer dia renuncio” -, mas seus principais biógrafos, entre os quais dois de seus filhos, Clara e Ricardo, concordam que a reação que enfrentou no cargo contribuiu para sua partida de Palmeira.
Valdemar de Souza Lima tem o melhor relato de uma das brigas mais notórias em que se meteu o prefeito escritor. Na manhã do sábado seguinte à sanção do código municipal, Graciliano foi procurado na loja Sincera por um vereador que também era açougueiro. Reclamava do fiscal da prefeitura que fora cobrar o imposto antes do corte da vaca.
Graciliano lhe explicou que assim previa o novo código. O vereador, que se chamava Capitulino, contestou, dizendo ignorar aquela lei. Começou o bate-boca e o prefeito findou se exaltando: “Você quer saber de uma coisa, Capitulino? Eu não tenho culpa de você ser burro, assinar papel no escuro”.
Márcio Henrique Carvalho é um sucessor de Capitulino na Câmara Municipal de Palmeira dos Índios, um prédio encravado do outro lado da prefeitura com um alto-falante do lado de fora que irradia as sessões. Não é açougueiro, embora quando esteja de plantão no Instituto Médico Legal de Arapiraca, principal termômetro da violência crescente da região, possa se confundir com um.
Está no primeiro mandato de vereador, pelo PPS, mas já passou por PHS, PMDB e PSC. É um dos 3 únicos vereadores de oposição, numa legislatura com 15 parlamentares. Nas sessões de estreia apresentou dois sisudos requerimentos de informação ao prefeito, um sobre a Previdência Municipal, que se suspeita quebrada, e outro sobre uma anunciada reforma administrativa.
Na campanha, conta, recusou-se a ir a comícios em que antevia discursos apelativos. “Não queria ser obrigado a concordar com a acusação de que meu adversário entra em rinha de galo ou gasta no jogo. Quero que as pessoas votem em mim porque sou melhor, não porque o outro é pior”, diz, enquanto se serve no restaurante do primo, vizinho à prefeitura.
Foi signatário do abaixo-assinado virtual que pediu a saída de Renan do Senado. “Dizem que ele é um mal necessário para Alagoas. Será?” Eleitor de Luiz Inácio Lula da Silva contra Collor e Fernando Henrique, desiludiu-se em 2010 e votou em Marina Silva.
Conta que, durante a campanha, recusou-se a prometer um posto de saúde a uma comunidade carente da cidade. “Não podia prometer, mas me ofereci para levá-los à Câmara e à prefeitura para pressionar. Se prometesse, teria que assumir compromissos na prefeitura que não posso ter.”
Ao ser abordado por um guardador de carro que pede um ingresso para o jogo do CSE, diz ao moleque que passe no seu consultório.
É o único dos entrevistados que cita “Angústia”, tido como o livro mais pessoal de Graciliano e cujo personagem principal, Luís da Silva, é considerado por Antonio Candido o mais dramático da literatura brasileira.
Médico pneumologista, tem dois tios na galeria de fotos da prefeitura. Da última, Maria José, foi secretário de Saúde. Reconhece-lhe a gestão pouco hábil. Foi esse governo que, somado ao do pai de James Ribeiro, contribuiu para o atraso de 22 meses na folha de salários da prefeitura. Durante o governo do outro tio, Enéas Simplício, ainda não tinha ingressado na política.
“Foi um dos poucos aqui a reproduzir o espírito de Graciliano”, diz Ricardo Vitório, promotor, radialista e ex-vice-prefeito de Helenildo. Era adversário de Enéas, mas reconhece-lhe a retidão.
“Para a maioria, a prefeitura é um troféu”, lamenta, sem deixar de reconhecer que Palmeira nunca teve tantas obras quanto hoje.
Mostra a cidade do alto do Cristo de Goiti, no ponto mais elevado da cidade. Nascido em Quebrangulo, como Graciliano, guarda outra coincidência biográfica com o escritor. Também perdeu a mulher no parto de sua segunda filha.
Não vê benefícios para o Estado com a proeminência de Renan e Collor na política nacional. Credita grande parte da decadência da cidade à desunião de suas lideranças políticas, a mesma que, 80 anos atrás, levou Graciliano a deixar a cidade.
Longe de Palmeira, o escritor não deixaria de demonstrar sua admiração por administradores públicos que tentavam civilizar aquele canto do Brasil. Artigos inéditos, recentemente publicados por Thiago Mio Salla, mostram que o escritor não se considerava desgarrado de um covil de ladrões.
Naquela última semana de fevereiro, uma mensagem do humorista paulista Luciano Manfredini bombou no Facebook: “Tinha que tacar uma bomba no Senado e em Alagoas, assim essas crias do inferno não proliferariam mais. Alagoas é um ninho dessas pestes, uma ratoeira. Taca uma bomba naquele Estado que só manda vagabundos, bandidos, calhordas do naipe de Renan Calheiros e Fernando Collor infectarem nosso país”.
Ameaçado por um processo, o humorista acabou se desculpando, mas houve quem fizesse alusão à entrevista dada por Graciliano a Joel Silveira. Nela, Graciliano diz que se Alagoas sumisse do mapa poderia dar ao país o golfo que lhe falta. O escritor remoeria até o fim da vida a delação de seus conterrâneos que lhe renderia a prisão no Estado Novo contada em “Memórias do Cárcere”.
As fotos em exposição no museu trazem à lembrança outra passagem da relação de Graciliano com sua terra. Em Paris, escala de uma viagem à Rússia, a convite do governo soviético, passeava às margens do Sena, quando a mulher, Heloísa, lhe perguntou onde nasceria de novo. O diálogo é reproduzido por Dênis de Moraes.
– No Brasil, em Alagoas
– Mas em Alagoas, onde? Você nasceu em Quebrangulo, morou em Viçosa, Palmeira dos Índios e Maceió.
– Em qualquer desses lugares, não importa, desde que seja em Alagoas. Tudo isso aqui é muito grande, muito bonito, muito desenvolvido, mas é deles. Eles levaram séculos para construir. Nós ainda estamos engatinhando, mas um dia chegaremos lá.
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Fonte: Valor