A história da Chacina da Lapa
1976
Como sempre fazia, Margarida Rodrigues levantara-se por volta das seis e meia da manhã. Na casa ao lado, Rita da Glória ainda dormia sem saber que às seis e trinta e cinco seria despertada por uma cena de terror. Trabalhavam como empregadas domésticas em frente ao número 767 da Rua Pio XI, no bairro da Lapa, na cidade de São Paulo. Sebastião Dias Chaves, mestre de obras, nesse mesmo horário estava trancafiado com seis trabalhadores em um quartinho de despejo da construção no terreno que fazia fundos com a casa 767, enquanto outros, deitados no chão sob a mira de armas de grosso calibre, também eram feitos reféns.
A rua estava deserta. O silêncio foi quebrado por rajadas de metralhadoras. O picotar das balas era entremeado por um barulho seco, duro. Bombas de canhão, na definição do mestre de obras, que troaram na casa que fazia fundos com a construção, despejadas por uma poderosa carabina calibre doze milímetros. Rita da Glória acordou sobressaltada e correu até a porta que dá para a rua. Viu várias pessoas atirando, umas fardadas, outras não. Os atiradores fizeram sinais com as mãos para ela entrar; ordem de pronto obedecida diante do arsenal que vira cuspindo fogo.
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Na casa ao lado, Margarida Rodrigues teve a sensação de que latas caíam de algum lugar. Os estampidos da carabina fizeram-na correr para a janela e viu, apavorada, uma fuzilaria sem trégua. Na sua visão turvada pelo impacto da cena, divisou seis homens protegendo-se no muro e operando metralhadoras dispostas uma ao lado da outra. Alvejavam a porta da casa 767. Apesar da barulheira, Margarida Rodrigues pôde observar que não houve revide. Ela, Rita da Glória e Sebastião Dias Chaves, trêmulos, descreveram, em várias entrevistas, o que viram naquela manhã dantesca. Era o começo do dia 16 de dezembro de 1976.
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Alertado, o pessoal dos noticiários correu para o local do crime e foi recebido com hostilidade. O repórter Nelson Veiga, da TV Bandeirantes, viu, sem nada poder fazer, a destruição de filmes e o confisco de equipamentos. Um de seus técnicos levou um safanão e ambos foram encaminhados à delegacia, de onde saíram por intervenção do secretário de Segurança Pública, Erasmo Dias, que, bem relacionado com a mídia, pediu desculpas à emissora pelo ocorrido.
Um morador da vizinhança, não identificado, disse ao jornal O Estado de S. Paulo que foram vinte minutos de verdadeiro pânico no quarteirão. Outro disse que eram duas vozes de comando e se ouvia o “cantar” dos pneus das viaturas disfarçadas. Um terceiro descreveu a sonoplastia do arsenal em minúcias — os estrondos de uma poderosa carabina doze milímetros, as ininterruptas rajadas de metralhadoras, os estampidos secos das eficientes luggers nove milímetros. A orquestra macabra afastava as pessoas e assustava as crianças, detalhou. Um quarto informou que foram retirados da residência, após o fogo cerrado, papéis diversos, livros, roupas e até uma velha espingarda Winchester, toda enferrujada. Um cinegrafista disse à Folha de S. Paulo que nunca vira tanta papelada na vida. Até o começo da tarde, veículos do serviço de segurança foram carregados com livros, roupas, jornais, manuscritos e objetos diversos.
Pouco antes das onze horas, chegou ao local Harry Shibata, diretor da Divisão de Perícias Médicas. Entrou pela porta lateral da casa, transformada em peneira nas primeiras horas da manhã, e saiu pela da frente. Os fotógrafos do Instituto de Polícia Técnica registraram as adulterações da cena do crime. Uma perua Kombi com placas de São Bernardo do Campo, estacionada na lateral, evitava que curiosos lançassem olhares para o interior da casa.
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Quinze minutos depois da saída de Harry Shibata, dois corpos acondicionados em gavetões de zinco foram retirados do local. Dispostos em outra Kombi, sem placas, os mortos, conduzidos em alta velocidade, sumiram da vista dos curiosos e do mapa. Ninguém sabia para onde estavam sendo levados e que fim teriam. Eram os corpos de Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, que levaram para o túmulo uma história singular, odiada pelo regime implantado no país com o golpe de 1964. O crime foi executado com requintes de crueldade por homens ensandecidos e envenenados pela ideologia da violência.
O primeiro fogo da artilharia estilhaçou vidros das janelas, varou a madeira das portas e abriu caminho para a concentração de tiros no interior da casa a partir do jardim de entrada. Pedro Pomar foi atingido na cabeça, depois em todo o corpo, por balas dum-dum, iguais a bolas de gude. Calçava sandálias e vestia camisa de mangas curtas. Ao perceber a movimentação dos agentes, voltava da cozinha para a sala a fim de providenciar a queima de documentos. Ângelo Arroyo, saindo do banheiro em direção à cozinha, foi alvejado nas costas. A violência das balas o fez voar, batendo a cabeça no teto do corredor. Uma mancha de sangue ficou no local como testemunha da força com que fora atingido.
Oficiais do II Exército, noticiou o jornal O Globo, receberam “numerosos” telefonemas de pessoas ligadas a todas as atividades sociais do estado de São Paulo cumprimentando-os pelo êxito da operação, efetuada sem pôr em risco a integridade física dos moradores da vizinhança. Do Quartel General onde estavam, no arborizado bairro do Ibirapuera, eles divulgavam falsas informações, diligentemente reproduzidas pela mídia. As fotos da cena adulterada mostravam Pedro Pomar deitado ao lado de um revólver e os óculos caídos sobre o rosto; Ângelo Arroyo estava acompanhado de um fuzil e uma espingarda.
Nelson Veiga, o repórter da TV Bandeirantes, não vira o revólver e o fuzil quando chegou, por volta das oito horas e quinze minutos. A requisição do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) para o exame da casa foi entregue ao Instituto de Criminalística às oito horas e trinta e cinco minutos, mas os técnicos só chegaram ao local pouco antes das onze horas. Durante esse tempo, agentes vasculharam a cena do crime. Não se sabe se os tiros dados “de dentro para fora”, como consta do laudo assinado pelo perito Alceu Almeida Proença, foram inventados ou disparados pelos próprios agentes com a finalidade de incriminar as vítimas.
O documento afirma que os “ocupantes da moradia” dispararam com revólver calibre trinta e oito e carabina Winchester calibre quarenta e quatro, modelo 1892. No entanto, conforme diz a perita Eliana Menezes Sansoni no laudo específico das armas, a pesquisa de resíduos de combustão de pólvora mostrou que os tiros eram de revólveres das marcas Taurus e OH (Orbea Hermanos). Outro dado de Eliana Menezes Sansoni que contradiz a versão de Proença é o exame em um revólver INA calibre trinta e dois, em um rifle Castelo calibre vinte e dois e em três facas — todos arrolados no auto de apreensão e ignorados pelo perito. Nas sessenta e nove fotos que ilustram a descrição da cena, apenas o Taurus e a Winchester aparecem.
Outro indício flagrante da fraude é a data requerida pelo DOPS para a perícia, 21 de dezembro, quase uma semana depois do ocorrido. No laudo do perito, não constam detalhes prosaicos, como a distância entre a posição dos corpos e as armas. Os mortos não foram examinados para constatar a presença de resíduos de pólvora nas mãos e o laudo dos legistas que fizeram a autópsia tampouco comenta a existência de vestígios de explosivo.
Os comandantes da operação não desconheciam o que havia dentro da casa. Foram para o local com ordens deliberadas para a encenação. A preparação do massacre, segundo a versão da ditadura, durara três meses e os idealizadores da ação sabiam minúcias daquela casa frágil, com uma sala, dois quartos de nove metros quadrados cada, banheiro e cozinha. Nos fundos, havia uma área envidraçada; na frente, um alpendre em forma de arco descrito pelo perito como “área coberta”. O pequeno jardim e o quintal amplo fazendo divisa com o terreno onde havia a construção completavam a aparência de uma residência comum, como tantas outras que existiam na Rua Pio XI.
Erasmo Dias, o então secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo, reconheceu, em entrevista concedida a este autor em seu gabinete de vereador na Câmara Municipal de São Paulo em 2001, que as únicas armas portadas pelos dirigentes do PCdoB assassinados eram canetas. Segundo ele, a matança não teve justificativa nenhuma e a explicação para a chacina, que corria à boca pequena, era a de que a reunião fora organizada pelo PCdoB, que havia dado cinco anos de trabalho à repressão com a Guerrilha nas selvas do Araguaia.
Duas figuras centrais da trama estavam no comando da operação: o tenente-coronel Rufino Ferreira Neves e o delegado Sérgio Paranhos Fleury, que participou da fuzilaria. Eles sabiam, é claro, o que representavam os que estavam na casa. Havia uma determinação de não tolerar qualquer ação de dirigentes das organizações “subversivas” e uma reunião como aquela, nas barbas da repressão, era uma atitude inaceitável. A preparação do massacre envolveu uma engenhosa teia de comunicações e foi montada de forma a evitar qualquer falha.
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O aparelho repressivo no estado de São Paulo carregava nas costas uma galeria de crimes repugnantes e o presidente da República, o ditador Ernesto Geisel, prometeu discipliná-lo. Mas enfrentaria resistências e usaria a força para tentar rompê-las. Na rígida hierarquia militar, desobedecer a um superior constitui indisciplina gravíssima. Condutas indóceis à autoridade devem ser castigadas de modo severo, assim determina a lei da caserna.
O II Exército fora louvado nos tempos do presidente Emílio Garrastazu Médici, quando montou a Operação Bandeirantes (Oban) e serviu de exemplo para os demais Comandos na criação dos Destacamentos de Operações de Informações (DOI) e Centros de Operações de Defesa Interna (Codi). Mas estava na hora de mudar. A Oban unificou as ações de todos os órgãos da repressão e foi oficializada como modelo nacional pela “Diretriz Presidencial de Segurança Interna”, assinada por Médici em setembro de 1970. Era a certidão de nascimento do terrorismo oficial de Estado.
O comandante do II Exército, general José Canavarro Pereira, nomeou para a direção da Oban o major Carlos Alberto Brilhante Ustra, que seria personagem de atos bárbaros na prática de torturas e assassinatos. A linha dura, que ganhou plenos poderes com Médici, não aceitou as promessas de abrandamento de Geisel.
Em 1974, quando Geisel assumiu a Presidência da República, o II Exército já era comandando pelo general Ednardo D’Ávila, da chamada linha dura. Seus abusos foram relatados em carta do ministro da Justiça, Armando Falcão, ao presidente, enviada dia 19 de março de 1975. Nela Falcão disse que o ministro do Exército, Silvio Frota, havia manifestado “preocupações com as observações que recebeu do comandante do II Exército” sobre o “ambiente que se está criando em São Paulo, no meio militar, devido à sistemática campanha de jornais”. Desaparecimento de “subversivos” e “prisões de elementos ligados à subversão”, além de “supostos maus tratos (torturas) que seriam infligidos a eles”, estariam sendo explorados “tendencialmente”.
A resistência às palavras de Geisel chegaria às vias de fato quando Ustra, já radicado em Brasília como instrutor da Escola Nacional de Informações e servindo no gabinete do ministro do Exército, Silvio Frota, usou a força para tentar levar os comandantes de Exércitos ao Ministério e anunciar um golpe de Estado. Ele e os demais integrantes do grupo de Frota imaginavam que conquistariam ampla adesão, mas o general Hugo Abreu, chefe do Gabinete Militar, antecipou-se e foi para o aeroporto, conseguindo levar todos à presença de Geisel para prestar solidariedade ao presidente. Ustra, agressivo no cumprimento da determinação de Frota, apelou para a força física contra o general Dilermando Monteiro, que havia assumido o II Exército.
A troca de comando em São Paulo revelava a profundidade da fenda que se abriu no regime. Geisel tentava demonstrar um anticomunismo menos rombudo, diferenciando-se do modelo selvagem que vinha desde o combate à insurreição de 1935. Em entrevista a Maria Celina d’Aquino e Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas, ele descreveu um diálogo com Frota sobre o combate à “subversão”. O ministro do Exército disse que desde o levante na Praia Vermelha o comunismo estava cada vez mais ativo, mais forte e perigoso. Então, o método de luta adotado — de matar, esfolar, brigar — não servia, replicou o presidente. Estudasse outra maneira de enfrentar o adversário. No fundo, não era um problema militar, mas social e político, avaliou Geisel.
Suas manifestações nessa entrevista, contudo, não passaram de jogo retórico para tentar se diferenciar do seu antecessor, o general Emílio Garrastazu Médici — Geisel também era um ditador comprometido com os crimes do regime. Foi dele a orientação para matar e desaparecer com os membros do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB). As ações criminosas no Araguaia, onde ocorreu a Guerrilha dirigida pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), já no seu governo, foram firmemente apoiadas por ele. Geisel também deu aval à chacina da Lapa. O que o ditador apresentava como abrandamento da repressão era na verdade ações para pôr os porões repletos de criminosos sob as suas rédeas.
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A chamada linha dura reagiu e bateu de frente com o presidente. Frota foi demitido e tentou o golpe. No seu manifesto golpista, falou de infiltração de comunistas “nos órgãos do governo”, levantando ainda mais as labaredas da cizânia. Geisel reagiu dizendo que lutava contra os comunistas e contra os que combatiam o comunismo. Um acontecimento inaudito, porém, apanhou a contenda no meio do caminho. Quando Geisel dava por realizada a tarefa de combater a “subversão”, em outubro de 1975 o jornalista Wladimir Herzog morreu sob torturas nas dependências do DOI-Codi paulista.
Preso no dia 25 por volta das oito horas da manhã, no final da tarde estava morto. A versão oficial dizia que ele havia se enforcado com o cinto do macacão de presidiário. Herzog recebera uma intimação para que se apresentasse e esclarecesse o envolvimento com o PCB. O pretexto foi uma produção da BBC de Londres levada ao ar no telejornal do meio dia da TV Cultura, da qual ele era diretor de jornalismo, sobre a vida do líder comunista vietnamita Ho Chi Min. Fosse ao DOI-Codi explicar o caso, como fizeram outros jornalistas da emissora que também foram recepcionado com torturas. Saiu de lá morto.
Geisel atribuiu a morte de Herzog ao Estado Maior do II Exército. Ednardo D’Ávila descentralizou o comando e deixou o pessoal subordinado agir, enquanto se dedicava às relações sociais. Nos fins de semana, saía da cidade para desfrutar da vida campestre oferecida por amigos. Aí os “elementos radicais” agiam. Na tramitação do inquérito, o presidente notou resistência de Ednardo D’Ávila em apurar o caso. Mas contemporizou.
O episódio comoveu o país e representou um divisor de águas — catalisou ações vigorosas para iniciar o processo de redemocratização. A pedido da família e do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, um culto ecumênico na Catedral da Sé, co-celebrado pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns, pelo reverendo Jaime Wrigth e pelo rabino Henry Sobel, homenageou Herzog.
Mais de oito mil pessoas ouviram o rabino dizer que “Wladimir Herzog era um homem de visão, de percepção e dedicação”. O reverendo Wrigth afirmou: “Quando cai a noite, o pastor não vai para casa e jamais abandona suas ovelhas. Quando a noite vem, o perigo é maior. É durante a noite que elas precisam mais deles.” E o cardeal Arns disse que “ninguém mata um homem e fica impune”. Mas os mesmos que mataram o jornalista logo matariam outro homem. Foi no dia 17 de janeiro de 1976, um sábado.
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Manoel Fiel Filho trabalhava havia dezenove anos na fábrica Metal Arte, no bairro paulistano da Mooca. Na sexta-feira, não mostrou nenhuma preocupação quando dois homens lhe disseram que ele precisava ir ao DOPS “para fazer um reconhecimento”. No dia seguinte, sábado, um táxi parou em frente è residência número 155 da Rua Coronel Rodrigues, no bairro de Sapopemba. Um homem desceu, jogou no quintal um saco de lixo e um envelope, e berrou: O seu Manoel tentou o suicídio! No saco azul de vinte litros, com o emblema da Lixeira Ideal, estavam a calça e a camisa de brim, o cinto e um par de sapatos. No envelope, com o timbre do Exército, os documentos de Manoel. O corpo apresentava sinais evidentes de torturas, em especial hematomas generalizados, principalmente na região da testa, pulsos e pescoço.
Ao receber a notícia, Geisel tomou a decisão de demitir Ednardo D’Ávila. A demissão desagradou profundamente os generais da linha dura. O ditador relata ter falado grosso com Frota, determinando que demitisse também o chefe do Centro de Informações do Exército (CIE), general-de-brigada Confúcio Danton de Paula Avelino. Deveria saber o que estava acontecendo em São Paulo. Informasse o ministro do Exército, que informasse Geisel. Como não fez, fosse substituído. Ednardo D’Ávila estava fora irremediavelmente — sua atração pelo society, seduzido pelos magnatas para doces week-end nas fazendas, sítios e chácaras, deixava o Exército, segundo o ditador, “à matroca” (ao acaso, à toa) nos finais de semana e a linha dura de mãos livres. Sobrou até para o ministro Frota, também demitido.
Geisel passou a caminhar na corda bamba. De um lado, a oposição ganhava impulso e exigia velocidade na abertura. De outro, a linha dura lutava para sobreviver — o gesto tresloucado de Frota, no episódio da tentativa de golpe, foi um típico ato de sobrevivência. Hábil, o ditador recompôs o seu poder e saiu fortalecido. Quando a operação da chacina da Lapa começou a ser montada, ele demonstrou que a abertura estava rigorosamente limitada aos seus ditames.
Geisel apoiou o plano do general Dilermando Gomes Monteiro, que assumira o II Exército no lugar de Ednardo D’Ávila, em conluio com o I Exército, do Rio de Janeiro. A “grande reunião dos chefes comunistas”, disse o presidente, não representava mais a força de antes mas poderia ser o inaceitável “recrudescimento do comunismo”. No comando do trabalho do II Exército, estava o chefe do DOI-Codi paulista, o tenente-coronel Rufino Ferreira Neves.
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O outro braço da repressão em São Paulo era liderado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, diretor da Divisão de Ordem Social do DOPS, famoso por suas ações bandoleiras. Conhecido como Esquadrão da Morte, o grupo desse delegado apresentava uma extensa folha corrida. Não foram poucas as vezes em que Fleury se viu na condição de réu, mesmo sendo fiel serviçal do regime e submetido às leis frouxas para quem era do mundo da repressão. A partir de 1974, ganhou mais um protetor, vindo das hostes militares — o coronel Erasmo Dias, que assumiu o comando da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo.
A indicação decorria de um acordo do governo federal com o governador do estado, Laudo Natel. A operação envolveu autoridades militares e até o então ministro do Exército, general Dale Coutinho, que antecedeu Silvio Frota. Havia choques entre as esferas militar e civil; a presença de Erasmo Dias na Secretaria de Segurança seria uma tentativa de encontrar um ponto de equilíbrio. Foi bem na função. Tanto que se manteve no cargo quando Paulo Egydio Martins substituiu Laudo Natel.
Comprometido com o regime até a medula, quando comentava assuntos daquele período Erasmo Dias se exaltava, fazia caretas, gritava, exasperava e oscilava bruscamente o tom de voz. Discordava da linha dura, apesar de ter participado de ações terroristas em nome do Estado, mas nutria admiração confessa pelas atrocidades cometidas pelo bando de Fleury. As farsas montadas para divulgar as mortes no DOI-Codi também precisavam de autorizadas mãos civis — como demonstraria o desdobramento do massacre da Lapa. Os inquéritos derivados da Lei de Segurança Nacional eram atribuição do DOPS.
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A operação que resultaria no fuzilamento de Pedro Pomar e Ângelo Arroyo foi montada com a técnica desse arranjo repressivo de São Paulo. Quando os caminhos da ação já estavam traçados, com todos os detalhes mapeados, o chefe do Estado Maior do II Exército, general-de-brigada Carlos Xavier de Miranda, enviou um ofício para Erasmo Dias informando “que o comandante do II Exército tomou conhecimento de que estaria havendo reuniões clandestinas na área com o comparecimento de elementos ligados à subversão”. A operação de informação “em curso das investigações” levantou “atividades subversivas de elementos sobejamente conhecidos por suas ações junto ao PCdoB”, entre eles citou Pedro Pomar.
No mesmo dia, o delegado Fleury baixou uma portaria instaurando “autos de investigação policial, de caráter confidencial, para o devido acompanhamento das diligências que estão em andamento, uma vez que o ofício foi despachado para esta Divisão”. Carlos Xavier de Miranda, o general-de-brigada que chefiava o Estado Maior do II Exército, voltou a falar com Erasmo Dias, quatro dias depois. Dilermando Monteiro pediu-lhe que comunicasse detalhes da operação que seria realizada em 16 de dezembro na casa 767. Faltavam dois dias.
O ofício pedia ao secretário da Segurança Pública que a partir das seis horas da manhã fosse montado um esquema, “com a finalidade de tranquilizar os moradores vizinhos da citada residência e os transeuntes, bem como seja o trânsito desviado das proximidades do local onde será realizada a operação”. Erasmo Dias despachou o ofício ao DOPS, “para as providências”, e Fleury providenciou, no mesmo dia, sua incorporação à portaria por ele instaurada quatro dias antes.
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Enquanto os papéis transitavam de mão em mão, Dilermando Monteiro discursava para oficiais que chefiavam as principais unidades do II Exército em uma confraternização de Natal. Ele se preparava para as férias, que começariam dia 27. O Jornal do Brasil reproduziu, em 15 de dezembro, trechos do discurso. “Qualquer um de nós, que praticamos a doutrina cristã, também saberá vibrar o chicote contra aqueles que são os vendilhões da pátria e expulsá-los do templo cívico de nossa nação”, ameaçou.
O general estava com o espírito bélico aflorado. “Não se deve confundir, portanto, amizade, camaradagem e boa vontade com fraqueza ou medo de agir. É preciso não confundir, como muitos fazem, a serenidade com medo, o bom humor com falta de agressividade, a alegria com tibieza, porque o próprio Jesus nos deu um exemplo quando expulsou dos templos aqueles que perturbavam o ambiente com ideias malsãs, de fundo materialista (…). Ainda permanece válido o se vis pacem para bellum (se queres a paz, prepara a guerra)”, disse.
O tom profético era entremeado por recados que denotavam advertência aos vacilantes e cumplicidade dos altos escalões do governo com a chacina que se avizinhava. “Ainda temos de estar preparados para enfrentar os ambiciosos, os desejosos de poder que querem infiltração para dominar e subjugar. Enquanto isso permanecer, temos de estar prontos para a luta, para empunhar o chicote. Por isso, estamos unidos em torno de nossos chefes, porque eles sabem o terreno em que estão pisando, conhecem o modo de enfrentar os obstáculos e de vencê-los. Sabem nos levar ao melhor destino”, discursou.
Aos sessenta e três anos, a hora de Pedro Pomar estava chegando. Sua voz seria silenciada para sempre e sua história impedida de começar a ser contada até que os primeiros raios de luz fulminassem as trevas da noite de terror que se abateu sobre o país entre os dias 31 de março e 1º de abril de 1964. Caiu, literalmente, quando fazia sua última defesa do Partido Comunista do Brasil, caminhando em direção aos papéis que registravam opiniões de dirigentes comunistas em debates intensos sobre rumos para conduzir o Brasil à democracia e à justiça social. A pátria perdia um de seus filhos que jamais fugira à luta. Faltavam nove dias para o Natal.
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Prólogo da biografia “Pedro Pomar — a história de um revolucionário do Partido Comunista do Brasil”