Economia: O regime de política monetária do Brasil reflete e reforça o poder da finança
Economista Diogo Santos trata da polêmica sobre a independência do Banco Central. Foto: Agência Brasil.
Um debate necessário se abriu a partir do posicionamento do presidente Lula acerca da necessidade de revisão da meta de inflação e dos efeitos negativos da decisão da diretoria do Banco Central (BC) de manter a taxa básica de juros da economia (taxa Selic) em 13,75% ao ano e ainda afirmar que esse patamar deverá ser mantido por mais tempo, podendo as reduções da taxa Selic começarem somente em meados de 2024. O presidente Lula nada mais fez do que relembrar ao mercado financeiro, à imprensa ele associada e à diretoria do BC de que o governo eleito tem outra agenda para o país e está determinado a persegui-la. Não há nada de natural e óbvio no regime de política monetária vigente no Brasil, como se discutirá a seguir.
As linhas gerais das regras que governam a política a monetária no Brasil são as seguintes. O conselho monetário nacional (CMN), atualmente composto pelo presidente do BC, ministro da Fazenda e ministra da Planejamento, define qual é o valor do índice de preços ao consumidor amplo (IPCA) e o intervalo em torno deste valor que o banco central deverá mirar como meta de inflação. A função do BC é manejar a política monetária para que a taxa de inflação encerre cada ano no interior deste intervalo e o mais próximo do centro da meta. O regime de metas estipula também que a taxa Selic é o principal instrumento do BC para lidar com a inflação. Atualmente, a meta para o IPCA é 3,25% em 2023, 3,0% em 2024. O atual intervalo de variação definido pelo CMN é de 1,5% para cima ou para baixo.
O debate recente girou especialmente sobre essas metas de inflação. Este formato de metas de inflação gradativamente menores foi uma decisão do CMN em 2017 no governo Temer. Naquele ano a meta de inflação para 2019 foi reduzida de 4,5% para 4,25% a.a. Desde 2005 a meta de inflação estipulada pelo CMN era fixa 4,5% a.a. e o intervalo de variação era 2,5% para cima ou para baixo, tendo sido reduzido para 2% em 2006 e assim se mantido até as mudanças de 2017. Uma primeira conclusão inequívoca é que esta atual estratégia do regime de metas de inflação resultou de um contexto político do país em que a fração financeira dos capitalistas detinha enorme poder diante da necessidade de um governo fruto de um golpe de Estado em se sustentar e, portanto, buscando apoio desta poderosa fração da burguesia brasileira e internacional, por meio da rápida e radical aplicação de sua agenda econômica.
Em termos estritamente econômicos, esta estratégia de reduzir a meta de inflação ano após ano tornou-se absolutamente irrealista no atual contexto da economia mundial. Em um relatório de janeiro deste ano, o FMI projetou uma inflação nos países “em desenvolvimento” de 8,1% e 5,5%, em 2023 e 2024, respectivamente. Para os países desenvolvidos estes valores, para os mesmos anos, são 4,6% e 2,6%. Ou seja, a atual meta de inflação para o Brasil em 2024 (3,0%) é apenas 0,4 ponto percentual abaixo da projeção dos países desenvolvidos. Isso simplesmente não é plausível sob qualquer perspectiva teórica. A existência de taxas de inflação mais altas nos países fora do núcleo do sistema capitalista decorre das diferenças econômicas estruturais entre os dois grupos. O único caminho é rever a atual estratégia.
Entretanto, o questionamento ao atual regime da política monetária no Brasil não deve se bastar em apontar a inexequibilidade da atual meta de inflação. Um ponto de partida teórico crucial é que o nível da taxa de juros não é uma variável materialmente definida pelas leis de funcionamento do sistema capitalista. Dito de outro modo, diferentemente do preço de uma mercadoria que deriva, grosso modo, de seu custo de produção, o nível da taxa de juros (o custo do dinheiro) não possui uma referência inequivocamente objetiva para sua determinação. Tanto a teoria keynesiana quanto a marxista possuem esta conclusão. Porém, a teoria keynesiana propõe que o patamar da taxa de juros decorre de um conjunto de crenças e expectativas compartilhadas entre os agentes econômicos; já a teoria marxista possui uma explicação mais precisa para o patamar da taxa de juros a partir da concorrência entre empresas financeiras e não financeiras no mercado de crédito e da institucionalidade decorrente desta concorrência. Essa descoberta teórica permite, por exemplo, confrontar a posição liberal de naturalização do fato de o Brasil estar sempre os países com as maiores taxas de juros reais (taxa de juros menos taxa de inflação) do mundo a tanto tempo.
Um contra-argumento em defesa do regime de metas de inflação poderia ser que, ainda que não haja um patamar natural para a taxa de juros, sabe-se que a melhor maneira de se combater o crescimento da inflação é elevar a taxa de juros. Porém, neste terreno também há muitas fragilidades teóricas e de evidências empíricas a respeito dos canais que levam um aumento da taxa de juros a controlar a taxa de inflação. Em primeiro lugar, o que é mais discutido no debate público, o efeito esperado pelos modelos teóricos dominantes é que a elevação da taxa de juros gere uma contração da demanda agregada e essa contração interrompa a elevação dos preços, ao reequilibrar demanda e oferta. Se as causas do crescimento da inflação, contudo, não forem resultantes de pressão demanda, a capacidade da elevação da taxa de juros afetar a inflação é muito mais limitada.
Em segundo lugar, mesmo em situação de demanda elevada, o efeito da elevação da taxa de juros sobre a inflação é incerto, pois a esperada redução do investimento das empresas em decorrência do encarecimento do crédito pode ocorrer muito marginalmente. Isso ocorre porque o fator principal para as empresas decidirem investir é a expectativa de sustentação da demanda pelos seus produtos. Em uma situação de taxa de investimento já baixa como atualmente no Brasil, a taxa de juros neste patamar atual tem como efeito principal inviabilizar que o investimento cresça no curto prazo.
Em terceiro lugar, a taxa de juros é um elemento de custos das empresas, assim como os salários. Portanto, as empresas com poder de mercado podem repassar para os preços de suas mercadorias e para os contratos com fornecedores e clientes, a elevação dos custos financeiros decorrentes de maiores taxas de juros. Neste caso, a elevação da taxa de juros gera uma pressão pra cima sobre a inflação. Contudo, sintomaticamente, os bancos centrais se preocupam somente com as pressões inflacionárias dos salários. As atas do Copom mostram isso claramente. A menção nas atas ao “fomento do pleno emprego” é meramente protocolar, enquanto a preocupação com as “pressões no mercado de trabalho sobre os reajustes salariais” é destacada repetidamente.
Mesmo reconhecendo-se a inexistência de um patamar natural para a taxa de juros e as fragilidades dos canais que conectam a elevação da taxa de juros à redução da inflação, seria possível defender o regime de metas de inflação sob o argumento de que ele funciona na prática. Também aqui não é bem assim. Em um estudo empírico divulgado pelo FMI em janeiro deste ano, os autores apresentam evidência contundentes daquilo que os economistas não alinhados com a ideologia liberal já debatem há alguns anos: o regime de metas de inflação não traz benefícios inequívocos para os países que o adotam em comparação aos que não adotam.
Nesse estudo, os autores concluem que “não há diferença entre países que adotaram o regime de metas de inflação e outros países no nível médio e na volatilidade da inflação; da mesma forma não há diferença na inflação esperada e nenhuma diferença na ancoragem das expectativas de inflação entre os dois grupos”. E também que “comparando os resultados de inflação e crescimento econômico em países que adotaram o regime com um contrafactual encontra-se poucas evidências de que a adoção melhora o desempenho macroeconômico” (Bhalla, Bhasin e Loungani, 2023. Tradução nossa). No caso brasileiro, a média do IPCA anual entre o ano de adoção do regime de metas de inflação em 1999 e 2022, foi de 6,43% a.a. Neste momento o IPCA acumulado em 12 meses está em 5,77% a.a.
Conclui-se então que a sustentação teórica e empírica do regime de metas de inflação é muito frágil. Focando-se no caso do Brasil, como então explicar, rejeitando-se a ideologia liberal, a adoção rigorosa ao regime de metas de inflação e as elevadas taxas de juros?
Quanto às elevadas taxas de juros, há uma interpretação de economistas pós-keynesianos de que se formou no Brasil uma coalização de interesses rentistas que atua para manter a taxa Selic elevada de modo a garantir o fluxo de renda seu favor, uma vez que grande parte da riqueza financeira do país está alocada em títulos da dívida pública. Esta coalização seria formada pelos agentes privados do mercado financeiro, detentores da dívida pública, pela imprensa a eles alinhada e mesmo o Banco Central seria um de seus elementos (ver por exemplo, De Paula (2022, cap. 6)). Realmente não há de se negar que esta coalização de interesses exista e condiciona a política econômica a seu favor, sobretudo a monetária. Contudo, é necessário identificar qual é a razão estrutural de tamanho poder e sua relação com o regime de política monetária vigente no país.
O Brasil viveu a partir dos anos 1990 trajetórias díspares do setor financeiro e do setor não financeiro (Indústria e Serviços). Na Indústria de transformação ocorreu uma regressão com perda de elos da cadeia produtiva, aumento da dependência em relação a insumos importados, concentração em setores de menor conteúdo tecnológico e forte entrada de empresas de capital estrangeiro, o que ocorreu também no setor de Serviços. O setor bancário, por outro lado, viveu uma consolidação de um oligopólio privado – isto é, grandes bancos privados (nacionais e estrangeiros) controlando grandes parcelas do mercado de crédito – e diminuição da presença do Estado no setor bancário com privatização e liquidação de bancos públicos. Além disso, ocorreu um fomento ao desenvolvimento do mercado de capitais (bolsa de valores e mercado de títulos financeiros privados) com facilitação da participação do capital estrangeiro e menor controle público sobre as interações financeiras do país com o resto do mundo, o chamado controle de capitais.
Essas duas trajetórias radicalmente distintas geraram um setor industrial mais frágil em termos econômicos, mais dependente do setor financeiro privado nacional e internacional, portanto mais subordinado a seus interesses, e com menos poder nas esferas política e ideológica. O setor financeiro tornou-se mais poderoso economicamente, mais associado internacionalmente, com reflexos no seu poder de coação sobre o Estado, sem que isso significasse qualquer melhora relevante nas condições de financiamento do desenvolvimento nacional.
Essa disparidade de poder econômico, político e ideológico se reflete na institucionalidade, isto é, nas regras, que governa a política monetária no Brasil, o regime de política monetária. Primeiramente na adoção do regime de metas de inflação em 1999 que mantém o banco central e o poder executivo sob permanente vigília para impedir a desvalorização da riqueza financeira garantindo sempre que necessário o aumento da taxa Selic ao patamar desejado pelo mercado financeiro. Além disso foi adotado o instrumento do Boletim Focus (relatório semanal divulgado pelo BC contendo as expectativas de cerca de 140 instituições, principalmente empresas do setor financeiro, sobre diversas variáveis econômicas entre elas a taxa Selic e o IPCA). Este relatório é o principal guia do BC para buscar a chamada ancoragem de expectativas, o que significa que o BC adota como referência para a política monetária as projeções dos agentes financeiros que receberão diretamente o fluxo de renda resultante da elevação da taxa Selic.
Em seguida, ocorreu em 2017 a reconfiguração do regime de metas tornando a política monetária ainda mais potencialmente contracionista e, portanto, com maior poder de constrangimento sobre a elevação do gasto público. Por fim, em 2021, entrou em vigor a autonomia do banco central, cuja marca principal, mas não única, é o fim da coincidência temporal entre o mandato do presidente da República e do presidente do Banco Central. Neste caso, o objetivo de redução do controle do poder democraticamente eleito sobre a política monetária é explícito.
Portanto, o regime monetário no Brasil é a cristalização institucional da correlação de forças econômica, política e ideológica entre o setor financeiro e não financeiro. Essa institucionalidade reflete e reforça esta correlação de forças. Em termos de estratégia nacional de desenvolvimento isto significa que é preciso realizar uma luta em duas frentes: direcionar os instrumentos públicos ainda existentes, sobretudo os bancos públicos, para contribuir para reverter a regressão da estrutura produtiva nacional em conexão com os desafios contemporâneos do Brasil; e arregimentar forças para alterar gradativamente esta institucionalidade da política monetária a favor do desenvolvimento nacional.
Referências:
BHALLA, Surjit; BHASIN, Karan; LOUNGANI, Prakash. Macro Effects of Formal Adoption of Inflation Targeting. International Monetary Fund, 2023.
DE PAULA, Luiz Fernando. Economia brasileira na encruzilhada: ensaios sobre macroeconomia, desenvolvimento econômico e economia bancária. Editora Appris, 2022.
******************
Diogo Santos é economista e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Desenvolvimento nacional e Socialismo da Fundação Maurício Grabois.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.