Junho, 2013: como uma luta justa se transformou no início de uma virada à direita?
O historiador Altair Freitas apresenta sua interpretação de junho de 2013
O historiador Altair Freitas apresenta sua interpretação de junho de 2013
Por Altair Freitas
Lutas políticas são muito complexas e quando movimentos sociais desencadeiam protestos, a gente sempre sabe como começam, mas não como podem acabar, quando elas estão em curso. Porque toda luta pode agregar inúmeros fatores à luta em si e ganhar contornos inesperados e indesejados por quem as começou. Lutas justas podem ser apropriadas por forças políticas interessadas em desestabilizar governos mais alinhados com os interesses populares. Junho de 2103 seguiu esse roteiro.
Uma luta justa deflagrada em São Paulo pelo Movimento Passe Livre, uma frente de movimentos essencialmente juvenis, reivindicando que o transporte público em São Paulo fosse gratuito, iniciou protestos contra o aumento de R$ 0,20 na passagem de ônibus e metrô, autorizados pelos então prefeito Haddad e governador Alckmin. O petista e o tucano, imensamente pressionados pela elevação dos custos dos transportes à época, demoraram a perceber os rumos do movimento. E ninguém me contou, já que acompanhei ao vivo e a cores o que estava se desenrolando.
É preciso levar em conta que os grandes centros urbanos do país, São Paulo em especial, vivenciavam e seguem vivenciando, inúmeros problemas sociais resultantes do desenvolvimento distorcido do capitalismo brasileiro. Inchaço populacional, déficit habitacional, insuficiências com a mobilidade urbana, transporte, educação, saneamento básico, tudo isso em uma forte contradição com crescimento econômico verificado nos anos anteriores desde o início do ciclo político de Lula e Dilma (2003-2012) com o início de uma retração econômica muito forte.
A título de ilustração, em 2010, ano em que Dilma foi eleita, o PIB brasileiro foi de 7,5%; em 2011 caiu para 2,7% e 2012 baixou para 0,0%. Isso teve efeitos sociais múltiplos e o humor de parte significativa da população, que havia dado quatro vitórias eleitorais presidenciais consecutivas ao campo político progressista começou a mudar muito rapidamente.
Juntando o histórico “sufoco urbano” com retração econômica – resultante da crise do capitalismo global à época, que afetou fortemente a economia brasileira, com medidas do governo Dilma muito discutíveis nesse campo –, crescia uma espécie de onda de insatisfação. Levem em conta que desde 2005, ainda nos primeiros anos do governo Lula, estourou a “Crise do Mensalão”, que deflagrou a primeira tentativa de desestabilizar o novo governo e colocou a hipócrita pauta contra a corrupção no centro da disputa política comandada à época pelo PSDB e seus aliados. Estava em curso uma tempestade perfeita. E precisava haver uma faísca na pradaria seca para o fogo se espalhar. E ela veio em 2013.
Inicialmente eram protestos pequenos que foram amplificados por dois fatores conjuntos: a repressão aparentemente inexplicável que a PM paulista desencadeou contra as passeatas do MPL e a infiltração nítida de agitadores “Black Blocks” com o objetivo de transformar os atos em badernas generalizadas, retroalimentando a repressão da polícia, especialmente da tropa de choque. Muito se disse à época que os Black Blocks eram policiais infiltrados para gerar tumulto e estimular a repressão. Aliás, essa tática é bem antiga, utilizada pelos serviços de inteligência das forças de “inteligência”.
Eu participei de algumas daquelas manifestações e vi como ao menos parte dos Black Blocks utilizavam táticas típicas de formação militar infiltrada. A repressão brutal da PM desencadeou uma onda de indignações e serviu como fermento de bolo ao mesmo tempo em que a onda de vandalismo programado ampliou-se a cada passeata.
Foi nesse momento que aconteceu uma viragem política dantesca. A repulsa à repressão iniciou uma nova fase, de luta contra “o governo”, algo difuso inicialmente – mas que agregou a participação de grupos não mais da esquerda difusa que haviam iniciado os protestos. A direita brasileira, que até então estava nos porões, percebeu que havia ali uma oportunidade para desestabilizar o governo da presidenta Dilma Rousseff e começaram a pipocar protestos em várias cidades, principalmente capitais, agora uma multiplicidade de pautas que iam do suposto combate à corrupção à defesa dos animais.
A grande mídia, capitaneada pela Rede Globo passou a dar um enfoque diferente: da criminalização do movimento, passou a cobri-lo como um novo momento de luta contra a política tradicional e “a corrupção no governo petista” praticamente convocando novos atos, agora com esse novo perfil. E passou também a dar destaques a manifestações ínfimas, empregando minutos e mais minutos para coberturas totalmente parciais, estimulando a participação popular nelas. Aqui também tinha uma contradição, posto que as manifestações também tinham no seu início um forte repúdio aos oligopólios da comunicação. Em especial a Rede Globo soube driblar esse enfoque inicialmente negativo, à medida em que passou a olhar as movimentações de rua como um potencial desestabilizador intenso.
E as manifestações se agigantaram. Com atos sucessivos, todas as semanas, cálculos da época indicam que mais de um milhão de pessoas participaram dos atos no dia 20 daquele mês, realizados em quase 400 cidades pelo país. Atos internacionais foram também organizados em solidariedade, principalmente na Europa. Estava claro que o Brasil se encontrava diante de uma rebelião social sem controle.
Como tentativa de resposta, a presidenta Dilma passou a fazer pronunciamentos em tom conciliador, afirmando que estava aberta às reivindicações, que elas eram justas e que encaminharia ao congresso nacional um conjunto de medidas visando atender às principais bandeiras levantadas nos protestos, incluindo reforma política, combate à corrupção, novos investimentos em saúde e educação públicas e, inclusive, cogitou-se fazer uma reforma constitucional que seria aprovada via plebiscito, o que não avançou. Foram enviadas pelo governo ao Congresso 17 medidas, mas a maioria acabou não sendo sequer apreciadas pela Câmara e Senado. A sensibilidade da presidenta não foi acompanhada pela maioria do parlamento, sempre dominado por uma maioria conservadora e, àquele período, já francamente esfregando as mãos para o que poderia vir a partir daquele tsunami inicial.
Junho acabou, os protestos se prolongaram um pouco durante julho, mas foram perdendo impulso. Mas, na história, sempre que ondas de protestos atingem um determinado governo, os desdobramentos políticos são incontornáveis. Junho pariu novos movimentos à direita alimentados pela intensificação da crise econômica, por uma bem urdida campanha de desinformação da grande mídia e pela entrada em cena de uma dos maiores movimentos de desestabilização política da nossa história envolvendo serviços de inteligência do imperialismo que buscavam frear o crescimento da presença brasileira em setores importantes da economia internacional tomando parcelas de importantes mercados como energia, produção de proteína animal e engenharia civil, setores do empresariado interessados em devastar a legislação trabalhista e ampliar a privatização de patrimônio, empresas e serviços públicos, financiando novos movimentos como MBL e Vem Pra Rua, com incrível capacidade de manipulação das redes sociais.
Tudo isso desaguou na abertura da Operação Lava-jato em 2014, que se tornou o principal instrumento da desestabilização via manipulação criminosa das investigações contra o governo e contra Lula; numa campanha eleitoral duríssima, vencida por Dilma contra Aécio por margem estreita; na eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara no início de 2015, resultando na completa paralisia dos projetos enviados por Dilma ao Congresso visando contornar os problemas econômicos; e na campanha pelo impeachment, agora claramente liderada pela direita-extrema direita, que resultou no afastamento de Dilma em Abril de 2016 e sua remoção da presidência em agosto daquele ano, a prisão de Lula em 2018 e a impossibilidade dele disputar a eleição presidencial naquele ano, que acabou opondo Haddad x Bolsonaro.
Todo o ódio vivido pelo país de lá e até aqui foram consequências quase “naturais” daquele processo. E o Brasil regrediu décadas em quase todos os sentidos. Junho 2013 encerrou em si contradições profundas e deve seguir como objeto de análises profundas pela historiografia e ciência política. É um movimento que de fato deixou marcas profundas na nossa história e merece ser melhor compreendido, em especial agora, que temos um novo governo de feição popular, comandado pelo presidente Lula, uma das maiores vítimas de tudo aquilo. A história é dinâmica!
Altair Freitas é historiador, membro do Comitê Central do PCdoB, diretor da Escola Nacional João Amazonas , secretário de organização do PCdoB da cidade de São Paulo