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Gramsci: A Obra de Lenine

5 de janeiro de 2024

Texto do marxista italiano Antonio Gramsci publicado em Il Grido del Popolo, em 14 de Setembro de 1918.

A imprensa burguesa de todos os países e especialmente a francesa (esta distinção especial explica-se por motivos intuitivos) não tem escondido a sua imensa alegria polo atentado contra Lenine(2). Os sinistros corvos do anti-socialismo têm arrojado cobiçosamente sobre o presumível cadáver ensangüentado (ó cruel destino, quantos piedosos desejos, quantos tenros ideais tens despedaçado!), têm exaltado a gloriosa homicida, têm renovado a táctica, refinadamente burguesa, do terrorismo e do crime político.

Mas os corvos ficaram defraudados. Lenine vive e desejamos, para o bem e feliz sucesso do proletariado, que readquira depressa o vigor físico e retome o seu lugar de militante do socialismo internacional.

A bacanal jornalística terá tido mesmo toda a sua eficácia histórica. Os proletários compreenderam o seu significado social. Lenine é o homem mais odiado do mundo, tal como foi no seu tempo Karl Marx (doze linhas censuradas).

Lenine consagrou toda a sua vida à causa do proletariado. A contribuição que deu para o desenvolvimento da organização e para a difusão das idéias socialistas na Rússia é imensa. Homem de pensamento e acção encontra a sua força ao carácter moral; a popularidade de que goza entre as massas obreiras é a homenagem espontânea à sua rígida intransigência para com o regime capitalista. Nunca se deixou cegar pola aparência superficial da sociedade moderna, essa aparência que outros confundiram com a realidade mesma, precipitando-se de erro para erro.

Lenine, ao aplicar o método utilizado por Marx, achou que o real é o profundo e incolmatável abismo que o capitalismo cavou entre o proletariado e a burguesia e o sempre crescente antagonismo das duas classes. Ao explicar os fenômenos sociais e políticos e ao fixar ao partido a via a seguir em todos os momentos da sua vida, não perdeu nunca de vista a mola de toda a actividade económica e política: a luita de classes.

Ele pertence à legião dos mais fervorosos e mais convencidos campeões do internacionalismo do movimento operário. Qualquer acção proletária deve estar subordinada e coordenada ao internacionalismo, deve poder ter carácter internacionalista. Qualquer iniciativa, em qualquer momento, mesmo que transitoriamente, que entre em conflito com este ideal supremo, deve ser combatida inexoravelmente: porque qualquer desvio, por pequeno que seja, do caminho que conduz directamente ao triunfo do socialismo internacional é contrário aos interesses do proletariado, interesses longínquos ou imediatos, e serve apenas para dificultar a luita e prolongar o domínio da classe burguesa.

Ele, o fanático, o utopista, consubstancia o seu pensamento, a sua acção, e a do partido, somente nesta profunda e incoercível realidade da vida moderna, não em fenômenos superficialmente vistosos, que conduzem os socialistas que se deixam deslumbrar por eles, a ilusões e erros que põem sempre em perigo o conjunto do movimento.

Por isso Lenine viu sempre triunfar as suas teses, enquanto aqueles que o criticavam polo seu “utopismo” e exaltavam o realismo próprio eram miseravelmente esmagados polos grandes acontecimentos históricos.

Logo após a eclosão da revolução e antes de partir para a Rússia, Lenine enviou a seguinte advertência aos camaradas: “Desconfiem de Kerenski(3), os acontecimentos posteriores deram-lhe toda a razão. No entusiasmo da primeira hora pola queda do czarismo a maior parte da classe obreira e muitos dos seus dirigentes deixaram-se convencer pola fraseologia de Kerenski, o qual, com a sua mentalidade pequeno-burguesa, sem qualquer programa e sem uma visão socialista da sociedade, podia conduzir a revolução à sua derrota e arrastar o proletariado russo por um caminho perigoso para o futuro do nosso movimento (três linhas censuradas).

*   *   *

Chegado â Rússia, Lenine pôs-se imediatamente a desenvolver a sua acção essencialmente socialista e que se poderia sintetizar na epígrafe de Lassalle: “Dizer aquilo que é”: uma crítica cerrada e implacável ao imperialismo dos cadetes (partido constitucional-democrático; o maior partido liberal da Rússia), à fraseologia de Kerenski e ao colaboracionismo dos mencheviques.

Baseando-se sobre o estudo crítico aprofundado das condições económicas e políticas da Rússia, do carácter da burguesia russa e da missão histórica do proletariado russo, Lenine, desde 1905, chegara à conclusão que, devido ao alto grau de consciência de classe do proletariado e dado o desenvolvimento da luita de classes, qualquer luita política transformar-se-ia na Rússia, necessariamente, em luita social contra a ordem burguesa. Prova suplementar da situação especial em que se encontrava a sociedade russa era a incapacidade da classe capitalista para conduzir uma luita séria contra o czarismo e substituí-lo no domínio político. Depois da revolução de 1905, em que experimentalmente ficou demonstrada a enorme força do proletariado, a burguesia teve medo de qualquer movimento político em que o proletariado participasse e, por necessidade histórica de conservação, tornou-se essencialmente contra-revolucionária. A fiel expressão deste estado de espírito foi dada polo próprio Miliukov num dos seus discursos na Duma, onde afirmou que preferia a derrota militar à revolução.

A queda da autocracia não mudou em nada os sentimentos e as directrizes da burguesia russa, polo contrário, o seu fundo reaccionário foi aumentando à medida que a força e a consciência do proletariado se concretizavam. A tese histórica de Lenine confirmou-se: o proletariado tornou-se o gigantesco protagonista da história, mas era um gigante ingénuo, entusiasta, cheio de fé em si e nos outros. A luita de classes, praticada num ambiente de despotismo feudal, dera-lhe a consciência da sua unidade social, da sua força histórica, mas não o educara no método frio e realista, não lhe formara uma vontade concreta. A burguesia encolheu-se manhosamente, disfarçou as suas características essenciais com frases retumbantes; para o seu número de ilusionista serviu-se de Kerenski, o homem mais popular entre as massas no princípio da revolução; os mencheviques e os socialistas-revolucionários (não marxistas, herdeiros do partido terrorista, intelectuais pequeno-burgueses) ajudaram-na inconscientemente com o seu colaboracionismo a esconder as suas intenções reaccionárias e imperialistas.

Contra esta armadilha levantou-se vigorosamente o partido bolchevique, com Lenine à cabeça, desmascarando implacavelmente as verdadeiras intenções da burguesia russa, combatendo a táctica nefasta dos mencheviques que entregava o proletariado atado de pés e mãos à burguesia. Os bolcheviques reivindicavam todo o poder para os sovietes, porque só isso podia constituir uma garantia contra todas as manobras reaccionárias das classes abastadas.

De início, os próprios sovietes, por influência dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários, se opugeram a esta solução e preferiram dividir o poder com os diversos elementos da burguesia liberal; também as massas, exceptuando uma minoria mais avançada, deixavam andar, não vendo claro na realidade, mistificada por Kerenski e os mencheviques que estavam no Governo (dezassete linhas censuradas).

Os acontecimentos desenrolavam-se de maneira a dar completa razão à crítica rigorosa e aguda de Lenine e dos bolcheviques, que tinham afirmado não ter a burguesia nem o desejo nem a capacidade para dar uma solução democrática aos objectivos da revolução, mas que ela, ajudada inconscientemente polos socialistas colaboracionistas, conduziria o país à ditadura militar, instrumento político necessário para o êxito dos objectivos imperialistas e reaccionários. As massas obreiras e lavradoras, através da propaganda dos bolcheviques, começaram a dar-se conta do que estava a acontecer, adquiriram uma capacidade e uma sensibilidade política cada vez maiores; a sua exasperação irrompeu pola primeira vez em Julho com a sublevação de Petrogrado, facilmente reprimida por Kerenski. Esta sublevação, embora justificada pola funesta política de Kerenski, não teve, porém, a adesão dos bolcheviques nem de Lenine, porque o soviete continuava a recusar-se a assumir todo o poder nas suas mãos e, por conseguinte, qualquer sublevação dirigia-se contra o soviete que, bem ou mal, representavam a classe.

*   *   *

Era preciso, portanto, continuar a propaganda de classe e persuadir os obreiros a colocar nos sovietes delegados que estivessem convencidos da necessidade de os sovietes assumirem todo o poder do país. Vê-se aqui com toda a evidência o carácter essencialmente democrático da acção bolchevique, orientada para dar capacidade e consciência política às massas, para que a ditadura do proletariado se instaurasse de modo orgânico e fosse uma foma amadurecida de regime social econômico-político.

Para apressar o desenrolar dos acontecimentos contribuiu, além da atitude cada vez mais provocatória da burguesia, a tentativa militar de Kornilov de marchar sobre Petrogrado para se apoderar do poder, e, depois, Kerenski, com os seus gestos napoleônicos, com a formação dum gabinete composto por conhecidos reaccionários com o seu parlamento não eleito por sufrágio universal e, finalmente, com a proibição do Congresso Pan-Russo dos Sovietes, verdadeiro golpe de Estado contra o povo, início da traição burguesa à revolução.

As teses de Lenine e dos bolcheviques, sustentadas, repetidas, propagadas com perseverança e tenacidade desde o princípio da revolução, tinham uma confirmação absoluta na realidade: o proletariado, todo o proletariado da cidade e dos campos, alinhou resolutamente em volta dos bolcheviques, atirou abaixo a ditadura pessoal de Kerenski e deu o poder ao Congresso dos Sovietes de toda a Rússia.

Como era natural, o Congresso Pan-Russo dos Sovietes, que fora convocado apesar da proibição de Kerenski, confiou, no meio do entusiasmo geral, o cargo de presidente do Conselho de Comissários do Povo a Lenine, que tanta abnegação demonstrara pola causa do povo e tanta clarividência em julgar os factos e em traçar o programa de acção da classe obreira (trinta e cinco linhas censuradas).

A imprensa burguesa de todos os países tem apresentado sempre Lenine como um “ditador” que se impôs pola violência a um povo imenso, a quem oprime ferozmente. Os burgueses não conseguem conceber a sociedade senão enquadrada nos seus esquemas doutrinários. A ditadura para eles é Napoleão, ou então Clemenceau, e o despotismo centralizador de todo o poder político nas mãos dum só e exercido através duma hierarquia de servos armados de fuziles ou de anotadores de práticas burocráticas. Por isso a burguesia rejubilou com a notícia do atentado contra o nosso camarada e decretou a sua morte. Desaparecido o “ditador” insubstituível, todo o novo regime tinha de ruir miseravelmente, segundo a sua concepção. (sessenta e três linhas censuradas).

Lenine foi agredido quando saía duma fábrica onde fora fazer uma conferência aos operários. O “feroz ditador” continuava, portanto, a sua missão de propagandista, está sempre em contacto com os proletários, aos quais leva a palavra de fé socialista, o incitamento à acção teimosa de resistência revolucionária, para construir, para melhorar, para progredir através do trabalho, do desinteresse, do sacrifício. Foi atingido polo disparo do revólver duma mulher, duma socialista-revolucionária, velha militante da subversão terrorista. No episódio está todo o drama da Revolução russa. Lenine é o frio estudioso da realidade histórica, que tende organicamente para construir uma sociedade nova sobre bases sólidas e permanentes, segundo os ditames da concepção marxista: é o revolucionário que constrói sem se deixar arrastar por ilusões frenéticas, obedecendo à razão, à prudência. Dora Kaplan era uma humanitarista, uma utopista, filha espiritual do jacobinismo francês, que não consegue compreender a função histórica da organização e da luta de classes, que crê que o socialismo significa uma paz imediata entre os homens, um paraíso idílico de alegria e amor; que não compreende quão complexa é a sociedade e como é difícil a tarefa dos revolucionários quando se tornam gestores da responsabilidade social. Agiu de boa fé e acreditava poder levar a humanidade russa à felicidade libertando-a do “monstro”. Quem não está de boa fé com certeza são os seus glorificadores burgueses, os corvos nojentos da imprensa capitalista. Eles exaltaram o socialista-revolucionário Chiakovski que, em Arcângelo, aceitou pôr-se à cabeça do movimento antibolchevique e derrubou o poder dos Sovietes; agora, que cumpriu a sua missão anti-socialista e foi exilado polos burgueses russos capitaneados polo coronel Schiaplin, escarnecem do velho louco, do sonhador.

A justiça revolucionária castigou Dora Kaplan. O velho Chiakovski paga numa ilha gelada o delito de se ter transformado em instrumento da burguesia, e foram os burgueses que o puniram e se riem dele.