Quinhentas e tantas aldeias

O rio da minha aldeia é o maior do mundo
já dizia o poeta Pessoa
ressoa em minha memória o curso poderoso do rei Amazonas
maré balançando a canoa no igarapé ao fundo do quintal
que nem no porto do sol
a floresta era uma festa a porta de casa
o rio a minha rua janelas abertas para o vasto mundo
eu habito o tempo num lugar distante dito o Fim do Mundo
minha aldeia natal onde tudo começa e acaba ao mesmo instante
fluxo e refluxo de histórias extraordinárias
espiral evolutiva do ócio no negócio das viagens filosóficas
segredo profundo o fundo do rio: este um chamado Marajó-Açu
a mim quis matar afogado e levar para o sítio encantado
terceira margem da paisagem infantil
hoje a fazenda desta lenda mora comigo num apartamento de aluguel
pertencente à aldeia global na ribanceira da Amazônia Legal.

Tal qual esta uma do Fim do Mundo 500 e tantas aldeias da maré
e eu tecendo rimas que nem minha avó fazia paneiros
pra gente apanhar açaí parau na varja e levar à feira
a bordo de igarité freteira ao preço de costume antes do sol nascer
juro pela fé da mucura: ninguém comprava à prestação nem pagava juros
aquilo tudo paresque era mercadoria mais segura
que papel moeda no bolso e barriga vazia
meio dia macaco torrado da beira da baia
dona Maria a gente não tinha um tostão em caixa
mas porém com peixe frito no prato e açaí na cuia
arrotava-se que nem barão das cucuias.

Nos sete mil rios da Amazônia acima e abaixo há tantas quantas ilhas
filhas da cobra grande Boiúna, 1700 paresque
tai tia Raimunda que não me deixa mentir
só na ilha grande existem mais de 500 aldeias ilhadas
que são as tais comunidades ribeirinhas
ilhas e furos dos Macacos, Acuti Pirera, Vieira grande, Tajapuru
das Araras, Limão, Baquiá, Tijucaquara, Crairu, Boiuçu,
das Pombas, dos Periquitos, Papagaios, Jupati, Miritizal,
meia dúzia de ilhas Santana, Jurupari, Camaleão, Machadinho,
Caviana, Mexiana, Viçosa, Aramá, Serraria, dos Porcos,
Ilha Queimada… Uma quantidade!
Meu Zeus! Uma certa “ilha” grande que transvaza gente sobre o continente
se adona da boca e do coração pulsante do rio-mar
fazendo economia real mais interessante que o tesouro de Portugal.

Naquele tempo mítico a ilinha do Fim do Mundo à meia-noite
virava navio-vapor encantado: era cobra grande Norato
Raul Bopp na casa de máquinas dava avante a toda força
Içava bandeira de corsário pra ir fundear na ilha do Governador,
Rio de Janeiro era carnaval
desvairada a semana de arte moderna ficava na avenida paulista
com Macunaíma e tudo
agora carece estabelecer a academia do peixe frito
às margens plácidas do Ipiranga e levantar aldeia no Tietê
pra despoluir o rio da nossa estória e a imaginação soberana do País.

Um milhão de aldeias contemplam o tal de “Occupy Wall Street”
dizendo elas em coro: “cá te espero, meu pirata louro!”
e eu com um tesouro descoberto em Porto Seguro
que nem um velho pataxó brandindo o maracá vingador
a batucar teclado na internet:
alô, alô mundo, aqui é o Fim do dito cujo.
Adeus, Raimundo, digo caríssimo Drummond!
Claudiquei na rima, mas aos males da cidade grande achei solução.

 

 

 José Varella, Belém-PA (1937), autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica”, “Amazônia Latina e a terra sem mal” e “Breve história da amazônia marajoara”.

autor dos ensaios “Novíssima Viagem Filosófica” e “Amazônia latina e a terra sem mal”, blog http://gentemarajoara.blogspot.com