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Carolina Maria Ruy: Cinema, política e memória

4 de outubro de 2024

A coordenadora do Centro de Memória Sindical, Carolina Maria Ruy, escreve sobre a relação entre cinema e política.

O cinema é tão presente em minha vida que algumas das minhas memórias e sentimentos pessoais tem origem em filmes que me marcaram. Por exemplo, parece até engraçado, mas, depois que assisti Carrie a Estranha (de Brian de Palma), fiquei tão impactada com a cena final que andar sobre raízes de árvores me causou arrepios por muitos anos. Se não entendeu, sugiro que assista.

Muito da minha relação com a sétima arte é herança do meu pai, José Carlos Ruy, que foi um cinéfilo apaixonado e fez questão de transmitir isso para suas filhas.

Foi motivo de orgulho para nós o fato dele, um intelectual sério e influente no campo progressista, ter publicado, nos idos dos anos de 1980, um artigo falando sobre a degradação da sociedade neoliberal através da cinebiografia de Sid Vicious e Nancy Spunger. Lançado em 1986, Sid & Nancy, de Alex Cox, também teve influência em nossa adolescência, quando brincávamos de ser punks, e o artigo era mais uma prova de que ele era um cara “pra frente”.

Com um texto sobre cinema e com esta lembrança do meu pai, que além de cinéfilo, era parte desta Fundação, inauguro minha participação como colunista do Portal da Fundação Maurício Grabois.

Cinema e esquerda

Participei, no dia 1º de agosto, junto com os jornalistas Gustavo Rego (Cine Olho), Pedro Amaro e Marcela Magalhães, de um PodCast, do Canal Claquete com o tema: O cinema é esquerdista?

Embora a premissa soasse irreal, ela rendeu um debate interessante. Vale resgatar as ideias que foram abordadas. E acrescentar outras.

Não há consenso sobre alguma relação estreita entre o cinema e o espectro político de esquerda. Ao ser provocada a refletir sobre o assunto, conclui que a questão colocada, possivelmente, surgiu a partir de impressões baseadas no comportamento histriônico da extrema direita.

Nos últimos anos um pensamento extremista e radical cresceu em todo o mundo, impulsionado, em linhas gerais, pela crise de 2008, pela crise migratória na Europa (que despertou grande xenofobia) e pela disseminação das redes sociais, do negacionismo, das notícias falsas e dos discursos de ódio. Esse pensamento reacionário, que se impôs de maneira agressiva, considera as expressões culturais (salvo obras em linha com as teorias que defende) subversivas e destruidoras de valores.

É um pensamento intolerante, que condena as artes, a intelectualidade e até a ciência. E isso não é novo.

No nazismo alemão dos anos de 1930, o governo de Adolf Hitler repudiava a arte moderna, classificando-a como degenerada.

Nos Estados Unidos, durante o macartismo, na década de 1950, artistas foram perseguidos, censurados e constavam em listas de pessoas consideradas inimigas da nação por terem qualquer relação, real ou fruto de paranoia, com o comunismo[1]. O senador Joseph McCarthy instituiu um clima de medo e terror com base em mentiras sobre a URSS, que repercutiram pelas gerações seguintes. E isso afetou a produção cultural daquela época[2].

São exemplos que mostram a negação da extrema-direita com relação à cultura ao longo da história.

Cinema e política

Mas o cinema pode assumir diferentes discursos e expressões.

O cineasta soviético, Serguei Eisenstein, registrou aspectos da Rússia pré-revolucionária, exaltou a Revolução de 1917 e falou sobre o papel dos operários na sociedade. 

Entre as décadas de 1920 e 1950, Charles Chaplin assumiu um discurso politizado e social ao tratar do trabalhador, como em Tempos Modernos (1936), e se opor ao nazismo em O Grande Ditador (1942). Assim como Eisenstein, Chaplin influenciou gerações.

São muitas as obras engajadas, que denunciam injustiças sociais e valorizam o povo trabalhador. Entre eles estão, Ladrões de Bicicleta (de Vitorio de Sica, 1948), que denuncia a pobreza na Itália Pós Segunda Guerra, A Classe Operária Vai ao Paraíso (de Elio Petri, 1971), que fala sobre a vida do operário fabril, Norma Rae (de Martin Ritt ,1979), que traz a questão sindical e da mulher operária. Mais recente, o cineasta britânico, Ken Loach aborda esse debate ao tratar da classe operária e suas dificuldades no mundo capitalista.

Há os brasileiros, com um espectro que vai desde Leon Hirszman, com seu obrigatório Eles Não Usam Black Tie (1981), que trata da greve dos metalúrgicos de São Paulo de 1979, e Tizuka Yamasaki, de quem cito Gaijin, Caminhos da Liberdade, que aborda a imigração japonesa e a tênue substituição do trabalho escravo para o assalariado, até produções da Globo Filmes, como Zuzu Angel (de Sérgio Rezende, 2006) e Olga (de Jayme Monjardim, 2004).

A propaganda de valores conservadores também foi e é usada. Uma referência neste campo é O Nascimento de uma Nação, (de D. W. Griffith, 1915) que, de forma abertamente racista, atribuiu heroísmo à Ku Kux Klan, apoiou a escravidão e o ódio aos negros.

O caráter de imperialismo cultural durante a Guerra Fria ficou evidente em produções como a série 007, em especial Moscou contra 007 (de Terence Young, 1963), Rambo (de Sylvester Stallone e outros, 1982) e Rocky, o Lutador (de John G. Avildsen, 1977).

Neste quesito, Rocky 4, da série Rocky, o Lutador, é uma amostra contundente de propaganda antissoviética. O enredo apresenta os personagens Rocky e Drago representando EUA e URSS. O primeiro é um homem simples e honesto, que vence pelo seu próprio esforço. Enquanto Drago é um homem frio, implacável, que usa equipamentos ostensivos e joga sujo para ganhar.

Importante apontar que Rocky 4 fez grande sucesso e mexeu com o imaginário popular. Muitos se identificaram com o personagem de Rocky Balboa e, com isso, acabaram comprando toda a fantasia embutida no enredo.

O mesmo vale para a sequência “Rambo”, também com Sylvester Stallone, que vende uma imagem heroica do militar americano na Guerra do Vietnã e mostra os vietcongues, comunistas, como o exército do mal. Um enredo baseado em mentiras e na ocultação dos fatos.

A relação com a política sob diferentes e às vezes contrários matizes ideológicos, é longa.

Todo filme pode ser analisado

A crítica sobre a padronização da indústria cultural é válida e deve ser feita. Mas não é possível determinar se um filme é totalmente arte ou totalmente produto já que ele sintetiza trabalhos técnicos e artísticos como fotografia, música, teatro, literatura, moda, além do trabalho de marketing e das eventuais exigências dos estúdios. Profissionais qualificados e comprometidos com a arte, entram nesta indústria e acabam submetidos a esse esquema. Mas o trabalho deles está ali.

Isso é uma coisa. Esse caráter de síntese.

Outra coisa é a ideia de que qualquer obra cinematográfica pode ser “lida” já que transmite uma mensagem e o contexto de sua criação.

Neste sentido, histórias de romances, catástrofes, terror, comédias, de maneira explícita ou não, trazem uma mensagem, um ideal de sociedade e revelam os costumes de sua época. Chamar a atenção para isso e instigar a curiosidade sobre qualquer obra é uma rica contribuição ao debate social.

O Massacre da Serra Elétrica (de Tobe Hooper, 1974), por exemplo, à primeira vista pode parecer desprezível em uma conversa séria. Mas o jornalista Henrique Artuni, no artigo “Como ‘O Massacre da Serra Elétrica’ sobreviveu à máfia do pornô e ao sol do Texas”[3], conseguiu ver, através da matança sanguinária, a crise americana com relação à Guerra do Vietnã.

Artuni foi ainda mais fundo ao relacionar a violência de Leatherface, ao desespero gerado pela crise do petróleo de 1973, que colocou fim na Era de Ouro pós-Segunda Guerra Mundial, abalando o capitalismo tão profundamente que o sistema jamais se restabeleceu por completo.

O filme foi expressão de uma época em que, segundo o texto: “A euforia dos anos 1960 tinha se corrompido”, “A Guerra do Vietnã era uma corda no nosso pescoço. Os Estados Unidos enfrentavam pela primeira vez a falta de petróleo e combustíveis”.

Assim como José Carlos Ruy, meu pai, interpretou a decadência neoliberal dos anos de 1980 através da história de Sid Vicious e Nancy Spunger, mostrada em Sid & Nancy, o jornalista Artuni conseguiu fazer uma leitura dos problemas que os EUA enfrentavam a partir do terror insano criado pelo diretor Tobe Hooper.

A conversa sobre cinema vai longe e é fascinante. Ela traz questões, reflexões e memórias fomentando um olhar apurado, curioso e atento aos sinais. Sobre o PodCast do Canal Claquete a conclusão não poderia ser outra: seja de esquerda, de direita ou puro marketing, o importante é desenvolver interesse e senso crítico para tirar de um filme tudo o que ele pode oferecer.

Carolina Maria Ruy é jornalista, pesquisadora e coordenadora do Centro de Memória Sindical.


[1] Essa perseguição é mostrada em filmes como Testa de Ferro por acaso (1976), de Martin Ritt e Nosso Amor de Ontem (1973), de Sydney Pollack.

[2] Foi um contexto de ampla perseguição nos EUA, não apenas aos artistas, mas em toda a sociedade.

[3] Publicado na Folha de São Paulo em de 19/02/2023.