He Ganqiang: diferenças entre a economia chinesa e a soviética (Parte 2)
Segunda parte do artigo do economista chinês, He Ganqiang, publicado originalmente na Research on Political Economy, 2024, edição nº 3. A tradução é de Gabriel Martinez.
O Portal da Fundação Maurício Grabois reproduz abaixo a segunda parte do artigo “O que nos impediu de cair na tragédia histórica das reformas soviéticas?”, do economista chinês He Ganqiang.
Na Parte 1, Ganqiang tratou da Economia de Mercado Socialista e da Construção do Sistema Econômico Básico.
Nesta Parte 2, o autor trata da Abertura Econômica e da Regulação Macroeconômica.
Confira abaixo:
IV. Adesão à Economia Marxista para Guiar a Abertura Econômica
A Decisão declara que “a abertura é uma característica distintiva da modernização ao estilo chinês” e propõe “avançar com uma abertura de alto nível e construir um sistema econômico moderno.” Desde o início da reforma e abertura, alguns acadêmicos têm interpretado a abertura econômica sob uma ótica neoliberal, igualando-a à liberalização do investimento estrangeiro transnacional. Para eles, o objetivo final de expandir a abertura econômica seria a completa liberalização da conta de capital do RMB nos pagamentos internacionais. Esses defensores sugerem permitir que o capital estrangeiro crie instituições financeiras ou tenha controle majoritário em instituições financeiras locais, argumentando que, quanto mais investimentos estrangeiros a China atrair, melhor. No entanto, essas abordagens de “abertura irrestrita” já trouxeram prejuízos à economia nacional da China na prática.
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Assim, é essencial aplicar o espírito da Decisão, destacando a orientação da economia marxista na prática de abertura econômica, com o verdadeiro objetivo de promover uma “abertura de alto nível”.
Primeiro, devemos aderir ao princípio básico de distinguir entre a circulação de mercadorias e a circulação de capital. Nas relações econômicas internacionais, deve-se fazer uma distinção clara entre a circulação internacional de mercadorias, que envolve o comércio internacional e a produção geral de bens, e a circulação internacional de capital. O primeiro está relacionado à divisão internacional do trabalho e à concorrência nos mercados globais, onde é essencial focar em garantir vantagens comparativas no comércio internacional e na produção, seguindo a lei do valor internacional. O segundo, no entanto, diz respeito à relação entre o capital doméstico e estrangeiro, refletindo fundamentalmente a contradição antagônica entre a propriedade da economia socialista e nacional da China e a propriedade do capital monopolista industrial e financeiro internacional. Portanto, a natureza desses dois tipos de relações econômicas não deve ser confundida. O economista neoliberal americano Ronald I. McKinnon afirmou que “a conversibilidade livre das contas de capital em moeda estrangeira é geralmente a fase final da ordem ótima da mercantilização econômica” [1]. Essa teoria confunde a distinção entre a circulação internacional de mercadorias e a circulação de capital internacional e, essencialmente, visa permitir a livre circulação de capital forte dos países capitalistas desenvolvidos para as nações em desenvolvimento, promovendo, assim, o neocolonialismo sob o disfarce da liberalização econômica. Não devemos cair nessa armadilha!
Segundo, devemos aderir ao princípio básico de que inevitavelmente existe competição e luta entre capitais. A economia marxista revela a lei inerente do capitalismo de busca pelo crescimento ilimitado do valor excedente, que “atua como a lei coercitiva da concorrência” [2]. “O resultado da concorrência é sempre o colapso de muitos capitalistas menores, com seu capital sendo absorvido pelos vencedores ou extinto” [3]. Portanto, a natureza do capital estrangeiro e a lei da concorrência de capital determinam que as corporações transnacionais e o capital monopolista que investem na China inevitavelmente usarão suas vantagens tecnológicas e de capital para competir com o capital nacional chinês, visando dominar o mercado chinês. Eles nunca trarão o “efeito de transbordamento” que alguns têm propagandeado.
Terceiro, devemos nos lembrar da continuidade e desenvolvimento da economia marxista feita por Lenin em sua teoria do imperialismo. É crucial reconhecer que o capitalismo global contemporâneo ainda está na fase imperialista, e as relações econômicas internacionais continuam marcadas pela oposição entre o sistema econômico socialista e o sistema econômico capitalista moderno. Embora o declínio da economia dos EUA, que lidera o sistema econômico imperialista, tenha se tornado cada vez mais evidente, “um camelo magro ainda é maior do que um cavalo”, e os EUA continuam a desempenhar um papel de liderança na economia capitalista global. Nos tempos atuais, o nível médio de produtividade do trabalho dos países capitalistas desenvolvidos ainda é maior do que o da China. Sem manter a independência econômica nacional e aderir à política básica do Partido de autossuficiência e trabalho árduo, abrir a economia levará apenas à transformação do país em uma colônia ou em um estado vassalo das potências imperialistas. Portanto, é essencial enfatizar que a expansão da abertura econômica deve servir e apoiar a independência econômica nacional. No trabalho econômico externo, devemos adotar a perspectiva da luta de classes internacional, combinando a abertura econômica com a eventual vitória do movimento socialista global e a eliminação do capitalismo.
Quarto, devemos aderir ao princípio básico de que o capital é a encarnação do valor excedente. Marx revelou que “mesmo que a propriedade usada como capital no processo de produção tenha sido originalmente adquirida pelo próprio capitalista, ela mais cedo ou mais tarde se tornará valor adquirido sem troca equivalente e tomará a forma de trabalho não remunerado de outros, representado seja como dinheiro ou em outra forma” [4]. Em outras palavras, do ponto de vista da reprodução, o capital privado é essencialmente todo valor excedente. Portanto, o capital estrangeiro que entra na China eventualmente será transformado em valor excedente criado pelos trabalhadores chineses e apropriado unilateralmente pelos capitalistas estrangeiros. A longo prazo, quanto mais capital estrangeiro fluir para a China, mais valor excedente os trabalhadores chineses fornecerão aos capitalistas estrangeiros. Assim, uma abordagem científica deve ser “utilizar racionalmente o capital estrangeiro”, em vez de aumentar indiscriminadamente o investimento estrangeiro. Além disso, com base nos princípios fundamentais de Marx sobre a reprodução social, a quantidade de investimento estrangeiro deve ser considerada em conjunto com o volume de capital doméstico e incorporada à regulação macroeconômica do país de maneira abrangente.
V. Adesão à Economia Marxista para Guiar a Regulação Macroeconômica
Promover a modernização ao estilo chinês não pode ser algo separado da regulação macroeconômica científica do Estado. A Decisão apresenta a necessidade de “aperfeiçoar o sistema de governança macroeconômica”, enfatizando o “aperfeiçoamento do sistema de regulação macroeconômica” e a “melhoria do sistema de planejamento estratégico nacional e dos mecanismos de coordenação política”.
Essas declarações são tanto direcionadas quanto teoricamente inovadoras. Para implementar esses requisitos da Decisão, é essencial aplicar criativamente a orientação científica da teoria macroeconômica de Marx e traçar uma clara distinção da teoria macroeconômica ocidental moderna baseada na economia keynesiana.
Desde a implementação da economia de mercado socialista, a macroeconomia da China tem experimentado, por um bom tempo, “grandes desequilíbrios estruturais” [5], um problema que merece atenção séria. Está claro que essa questão é inseparável da influência da teoria macroeconômica burguesa ocidental na gestão macroeconômica da China. Devemos reconhecer profundamente que todas as escolas de macroeconomia ocidental moderna, ao se definirem, reconhecem sua conexão com a teoria keynesiana [6]. A teoria keynesiana, baseada em sua obra seminal A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, adota um método não científico de análise macroeconômica. A prática tem demonstrado que ela não conseguiu livrar os países capitalistas modernos de crises econômicas severas e, quando aplicada à China, também não resolveu o problema dos desequilíbrios estruturais macroeconômicos no país.
Quando comparamos a teoria macroeconômica da economia marxista com a macroeconomia ocidental moderna baseada em Keynes, fica claro que, na prática da gestão macroeconômica, especialmente na formulação de políticas, não devemos adotar cegamente as teorias macroeconômicas burguesas, que têm falhas fundamentais.
Primeiro, a economia marxista, baseada na visão materialista da história, revela que o pré-requisito para alcançar o equilíbrio na reprodução social é o estabelecimento de um sistema de propriedade pública socialista em toda a sociedade. Isso garante que a renda social seja distribuída de acordo com o trabalho fornecido pelos trabalhadores, após as deduções sociais necessárias. Essa estrutura pode eliminar a polarização da renda social, alcançar a produção proporcional em todos os setores da sociedade e, assim, equilibrar a produção e o consumo social, evitando as crises econômicas capitalistas. Em contraste, a economia keynesiana não reconhece a necessidade de estabelecer a propriedade pública dos meios de produção e, em vez disso, defende a propriedade privada. Como resultado, ela não consegue resolver a contradição entre produção e consumo, nem pode alcançar o equilíbrio entre oferta e demanda totais em termos macroeconômicos.
Segundo, a economia marxista revela profundamente que a dualidade do trabalho é a chave para compreender as leis que regem as economias de mercado. Isso permite uma compreensão plena da relação interna entre compensação física e compensação de valor em diferentes setores da reprodução social. Em contraste, a economia keynesiana falha em compreender a dualidade do trabalho e, assim, não consegue apreender as conexões essenciais necessárias para alcançar o equilíbrio entre oferta e demanda macroeconômica, resultando em uma abordagem severamente unilateral.
Terceiro, a economia marxista reconhece claramente que, na reprodução social, devemos começar pelo valor do produto social total ∑(c+v+m) para abordar a “questão mais importante” da compensação do capital constante (incluindo capital fixo e circulante) na reprodução social [7]. No entanto, a economia keynesiana segue o dogma de Adam Smith, considerando apenas a renda nacional composta por salários, lucros ou juros, e aluguéis — ou seja, começando apenas a partir do produto de valor total ∑(v+m) — enquanto negligencia a questão da compensação do capital constante ∑c (os meios de produção na sociedade). Essa omissão significa que a macroeconomia moderna não pode resolver cientificamente o problema da reprodução social.
Quarto, a economia marxista estuda a reprodução social em conjunto com a circulação monetária, investigando a relação interna entre a reprodução social e a lei da circulação monetária. Ela revela que o equilíbrio da reprodução social é expresso através da lei do refluxo monetário [8]. A economia marxista também revela a relação entre o movimento do capital monetário e o movimento do capital real (capital industrial e comercial), fornecendo orientação científica para a gestão do trabalho financeiro. A economia keynesiana, por outro lado, não compreende a conexão interna entre a reprodução social e a circulação monetária, nem diferencia a circulação do capital monetário da circulação do dinheiro. Como resultado, separa as políticas macroeconômicas — como a política industrial e monetária — do vínculo intrínseco entre a reprodução social e a circulação monetária, o que leva a políticas que tratam os sintomas em vez de abordar a causa raiz dos problemas econômicos.
Quinto, a economia marxista revela a lei da compensação do capital fixo na reprodução social, bem como a inter-relação entre a acumulação monetária e a acumulação real na reprodução social ampliada. Ela utiliza análises matemáticas científicas para guiar os movimentos macroeconômicos. Em contrapartida, a economia keynesiana apresenta a identidade matemática “poupança = investimento”, que na verdade não é uma identidade de forma alguma, mas sim um conceito equivocado [9].
Deve-se notar que, sob a orientação da economia marxista, a Nova China explorou ativamente a gestão macroeconômica. O camarada Chen Yun propôs o importante conceito de alcançar um “equilíbrio abrangente” entre os recursos materiais, crédito, receita, despesa fiscal e pagamentos internacionais [10], e aplicou-o à gestão macroeconômica com bons resultados. Devemos resumir essas experiências históricas e integrá-las com a aplicação e inovação da teoria macroeconômica marxista nas práticas futuras. Ao fazer isso, certamente seremos capazes de implementar efetivamente o espírito da Decisão.
[1] Ronald I. McKinnon, The Order of Economic Liberalization: Financial Control in the Transition to a Market Economy, traduzido por Zhou Tingyu et al., Xangai: Shanghai Sanlian Bookstore, Shanghai People’s Publishing House, 1997, p. 14.
[2] O Capital, Volume 1, Pequim: People’s Publishing House, 2004, p. 368.
[3] O Capital, Volume 1, Pequim: People’s Publishing House, 2004, p. 722.
[4] O Capital, Volume 1, Pequim: People’s Publishing House, 2004, p. 658.
[5] Conferência de Trabalho Econômico Central realizada em Pequim, Guangming Daily, 17 de dezembro de 2016, p. 1.
[6] Brian Snowdon e Howard R. Vane, Modern Macroeconomics: Its Origins, Development, and Current State, traduzido por She Jiangtao, Wei Wei, Zhang Fenglei, Nanjing: Phoenix Publishing & Media Group, Jiangsu People’s Publishing House, 2009, p. 13.
[7] O Capital, Volume 2, Pequim: People’s Publishing House, 2004, p. 447.
[8] He Ganqiang, A Lei do Refluxo Monetário e a Realização da Reprodução Social – Um Novo Estudo da Teoria de Marx sobre a Reprodução e Circulação do Capital Social, China Social Sciences, 2017, nº 11.
[9] He Ganqiang, Sobre o Erro da Identidade “Poupança = Investimento” de Keynes, Contemporary Economic Research, 2018, nº 5.
[10] Obras Escolhidas de Chen Yun, Volume 3, Pequim: People’s Publishing House, 1995, 2ª edição, pp. 13, 52–53, 211–212, 244–245.
He Ganqiang – Professor na Escola de Economia da Universidade de Finanças e Economia de Nanjing e consultor da Sociedade Chinesa de Economia Política.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG