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Clube de Leitura: resenha de Domínio das Mentes, novo livro de Aldo Arantes

19 de dezembro de 2024

Apresentação feita por Priscila Arantes na noite de lançamento do novo livro de Aldo Arantes, “Domínio das Mentes: do golpe militar à guerra cultural”

Inicialmente gostaria de dizer que é uma alegria e uma honra poder participar desta mesa para discutir o livro Domínio das Mentes: do golpe militar à guerra cultural, de Aldo Arantes.

Não é todo dia que podemos participar de um evento como este, especialmente quando se trata do lançamento do livro de um grande militante, deputado constituinte; um homem que tem dedicado sua vida em defesa da democracia e que é, ao mesmo tempo, o meu pai.

Neste sentido, quero já sinalizar que o meu lugar de fala se encontra justamente nesse espaço intermediário — entre o coração e a razão —, tanto como profissional da cultura e das artes, quanto como filha.

Na dedicatória que ele fez, quando me deu seu livro, ele escreveu: “à querida filha Priscila, uma contribuição para entender o papel da guerra cultural de extrema direita e caminhar para combatê-la. A convergência entre política e cultura, nossa convergência. Beijos do Pai”.

Início esta fala para esclarecer esta convergência – entre a área política e a cultural – não porque eu queira fazer uma apologia de nossa relação – pai e filha – mas porque ela de fato se torna ponto crucial nesta publicação.

Em 2023, fui convidada por Rita Sipahi e José Lira, atual diretor do MAC USP, a realizar uma curadoria no Centro Maria Antonia de um acervo documental que, atualmente, compõe a coleção da Pinacoteca de São Paulo. Tratava-se do acervo do  saudoso militante Alípio Freire, que reuniu, ao longo de anos, imagens como desenhos, xilogravuras, pirogravuras e colagens realizadas por presos políticos no espaço carcerário durante a ditadura militar no Brasil. A mostra foi composta por obras de Alípio Freire, Carlos Takaoka, Sérgio Ferro, Sérgio Sister, Manoel Cyrillo, José Wilson, Artur Scavone, Régis Andrade, Ângela Maria Rocha, Rita Sipahi e uma pirogravura realizada por meu pai e doada à minha mãe, Dodora, enquanto ele estava preso no Presídio Barro Branco.

Leia mais: Exposição traz a arte produzida nos cárceres da ditadura militar

O título escolhido para a mostra, Imagem-Testemunho, fazia referência ao registro produzido em um contexto de violência extrema e a resistência expressa dentro do espaço prisional. Mais do que rememorar um período nefasto de nossa história, em que atitudes negacionistas sobre o golpe militar de 1964 ainda emergem com força, a exposição reafirmava a resistência e a luta de muitos, como a do meu pai, contra a ditadura.

Essas insurreições – imagens-testemunho- produzidas em diversos presídios do Estado de São Paulo, como Tiradentes, Carandiru, Hipódromo e o Presídio Militar Romão Gomes, e, em algumas ocasiões, até no próprio (DOPS), revelavam ainda a conexão entre os presos políticos e as redes de apoio fora do espaço carcerário. Desenhos feitos para presentear amigos, familiares e companheiros de cela, assim como imagens criadas para angariar recursos financeiros destinados às famílias, eram expressões de um espaço de solidariedade que transcendia os muros da prisão. Além disso, esses testemunhos, ao saírem das prisões, funcionavam como dispositivos de denúncia. Eles revelavam a existência de presos e presas políticos no país, registravam abusos de autoridade e expunham as torturas praticadas nos presídios, configurando-se como importantes instrumentos de resistência e memória.

Uma destas imagens-testemunhos serviu de ilustração para a capa do livro Alma em fogo: memórias de um militante político, lançado por Aldo Arantes em 2013. Nesta imagem podemos ver o rosto de um homem gritando, possivelmente um grito de dor frente às atrocidades da tortura, como aquelas sofridas pelo meu pai. Neste livro Aldo narra a sua trajetória, passando inclusive pelo CPC da UNE (Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes); uma importante iniciativa, como ele coloca em seu livro, que contribuiu para uma produção artística comprometida com a realidade do país. Neste livro Aldo destaca ainda que o pleno desenvolvimento e consolidação do CPC ocorreu justamente na sua gestão, como presidente da UNE durante os anos 1961 e 1962.

Leia mais: “Alma em Fogo, memórias de um militante político”, por Aldo Arantes

Se a relação entre cultura e política em Alma em fogo ainda se apresentava de forma lateral à luta política, neste novo livro Aldo, tecendo uma leitura profunda das mutações do capitalismo e das estratégias contemporâneas de poder, torna evidente a importância da guerra cultural no enfretamento da extrema direita: “Nos dias atuais, o golpe militar foi substituído pela guerra híbrida ou golpe brando e pela guerra cultural.”, sinaliza Aldo.

De uma densidade histórica e conceitual impressionante, sua obra articula de forma precisa temas como Big Data, inteligência artificial, as relações entre neoliberalismo e o capitalismo de plataforma, bem como as origens da extrema direita não somente do ponto de vista internacional, mas nacionalmente, destacando o papel nefasto de Olavo de Carvalho na divulgação das ideias negacionistas e da direita neofascista no Brasil.

 Aldo não apenas nos proporciona uma análise detalhada dos fatos históricos e políticos do país, mas também nos permite compreender as mutações sofridas pelo capitalismo e suas novas formas de domínio no contexto atual. Ao abordar questões como a mineração de dados e as transformações do capitalismo de plataforma, sua escrita alia uma perspectiva teórico-conceitual rigorosa à análise de eventos históricos nacionais e internacionais. Ao final do livro, especialmente na parte 2, Aldo propõe ações políticas práticas que possam fortalecer as forças democráticas frente ao avanço da extrema direita neofascista.

Sem pretender me alongar muito é importante destacar o ponto de partida conceitual que costura a narrativa da publicação.

Aldo toma como ponto de partida o teórico e ativista marxista Antonio Gramsci, especialmente destacando sua ênfase na importância de combinar a luta econômica e política com a luta ideológica e cultural. Neste ponto Aldo Arantes destaca um problema central da esquerda: a subestimação da relevância dessa dimensão na luta pela democracia. Ele também recorre ao conceito de “marxismo cultural” de Raymond Williams, escritor cujas análises em política, cultura, mídia e literatura enriqueceram a crítica marxista das artes e da cultura.

Leia mais: Dossiê especial Antônio Gramsci

Em um contexto histórico cada vez mais interconectado pela internet, as relações entre cultura, política, economia e ideologia tornam-se mais imbricadas e é nesta teia complexa que o livro Domínio das Mentes propõe navegar.

É nesse momento que o livro de Aldo Arantes dá um salto significativo, dialogando com os debates mais contemporâneos sobre tecnologia digital, capitalismo de plataforma, Big Data e inteligência artificial. Aldo revela que, em diálogo com outros autores, a principal matéria-prima – ou melhor, mercadoria- no capitalismo de plataforma são os dados que nós mesmos geramos. Sua análise vai além da crítica à mineração de dados e ao lucro das big techs, expondo como esses dados – que abrangem desde nossos hábitos cotidianos até nossas preferências políticas – são transformados em dispositivos de predição altamente lucrativos e personalizados e que podem ser usados para a manipulação ideológica e política.

De fato, na era digital, ou pós-digital- como querem alguns autores-, as atividades humanas são cada vez mais mediadas, registradas, analisadas e reestruturadas por sistemas computacionais, em um processo contínuo de extração e mineração de dados. A presença de câmeras de vigilância nas ruas, por exemplo, é frequentemente justificada pela segurança, enquanto redes sociais como Facebook e Instagram incentivam o compartilhamento de informações pessoais. Entretanto, essas ferramentas vão além de suas funções aparentes; alimentando enormes bancos de dados que orientam estratégias comerciais, políticas e sistemas de controle e vigilância.

Aldo também discute outro aspecto crucial desse processo: o “excedente comportamental” – ou como alguns autores vão nomear o superavit comportamental:  ou seja, a capacidade que as grandes big techs têm não somente de capturar nossas ações diárias, mas também nossos comportamentos, sentimentos e emoções. Como Aldo demonstra, no capitalismo de plataforma, até os aspectos mais íntimos de nossas vidas se tornam matéria-prima disponível para exploração. O resultado é um sistema no qual a análise e a comercialização de nossos dados não apenas servem ao lucro das corporações, mas também possibilitam formas de controle social e político sem precedentes.

Em “Vigiar e Punir”, publicado em 1975, Foucault analisa a evolução das formas de poder e controle social, destacando como a disciplina se consolidou como um mecanismo fundamental para organizar e regular corpos dóceis  e comportamentos nas sociedades modernas. Foucault destaca o conceito de panoptismo como paradigma desse sistema, no qual a vigilância constante (real ou potencial) induz os sujeitos a internalizarem as normas e a se autocorrigir. A disciplina, assim, não reprime apenas; ela fabrica corpos úteis e dóceis, moldando indivíduos aptos a cumprir funções sociais específicas.

Em 1990 Gilles Deleuze, leitor de Foucault, escreve o ensaio “Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle” e que pode ser visto como uma continuação ou comentário às ideias de Foucault. Nesse texto, o filósofo propõe que as sociedades disciplinares, descritas por Foucault, estavam sendo substituídas por “sociedades de controle”, caracterizadas pela flexibilidade, contínua modulação do poder, e pela centralidade de tecnologias  de informática e computadores e pelos sistemas de vigilância eletrônica.

Neste ponto, arriscaria a dizer que Arantes, mesmo sem utilizar explicitamente o termo, aponta para o conceito de uma “sociedade de domínio” – como o definirei aqui – que expande e aprofunda os conceitos de sociedade disciplinar, de Michel Foucault, e de sociedade de controle, de Gilles Deleuze. Não se trata apenas de controlar, mas de dominar as mentes, utilizando estratégias altamente sofisticadas baseadas em algoritmos e inteligência artificial. Nesse cenário, o objetivo não é simplesmente controlar o outro, mas dominar o próprio “eu”, por meio de uma manipulação estratégica de nossas emoções; em uma espécie de política dos afetos. Dentro desse contexto, os algoritmos desempenham um papel central e, longe de serem neutros, revelam-se não somente como poderosos instrumentos de poder, mas explicitam muitas vezes vieses racistas e classistas inerentes à sociedade.

Neste sentido vale a pena lembrar do documentário Coded Bias, da cientista e pesquisadora negra Joy Buolamwini que começou a questionar os métodos empregados pela IA enquanto estudava os sistemas de reconhecimento facial em suas pesquisas no MIT. Isso por que ao testar o reconhecimento de seu rosto no sistema, a pesquisadora percebia que o sistema não conseguia identificá-lo. Contudo ao utilizar uma máscara branca, o algoritmo passou a reconhecê-lo. A pesquisadora concluiu, portanto, que o algoritmo utilizado na IA estava fundamentado em dados impregnados por ideias racistas.

Não por acaso, já no início de sua reflexão sobre guerra cultural, Arantes sublinha que o controle das grandes massas se dá através de técnicas ideológicas, combinando estudos sobre a psicologia das massas com as dinâmicas das plataformas digitais.

É importante também ressaltar a menção de Arantes ao texto de Gene Sharp, Quando a CIA Recorre à Não-Violência, no qual são descritos os passos para a derrubada de governos de esquerda pela extrema direita. Arantes destaca: “A diferença entre a chamada revolução colorida e a guerra cultural é que a primeira é utilizada pelos órgãos de segurança dos Estados Unidos, enquanto a segunda é aplicada por grupos de extrema direita para conquistar hegemonia cultural, vencer eleições e alcançar o poder.”

Para Arantes, a guerra cultural se apresenta como o principal método da extrema direita para dominar as mentes e construir hegemonias políticas e culturais.

Arantes também expõe como a guerra cultural está profundamente intricada com a cultura do ódio e do medo e com as fake news, funcionando como uma ferramenta de destruição de massa contra aqueles que são vistos como inimigos. Comunistas, homossexuais, mulheres, indígenas, afrodescendentes, educadores, artistas, e qualquer forma de resistência crítica às pautas hegemônicas da extrema direita neofacista são alvos dessa guerra que, como diz João Cezar de Castro Rocha, citado no livro de Arantes “é um entendimento fundamentalista do mundo cujo corolário é a eliminação pura e simples do que é diverso”.

Saindo do livro tomo a liberdade de trazer aqui dois trabalhos artísticos que dialogam de forma potente com algumas destas questões.

O primeiro é o trabalho Odiolândia desenvolvido pela artista Giselle Beiguelman, e apresentado no Memorial da Resistência em São Paulo em 2017. O vídeo reunia comentários publicados em redes sociais sobre as ações da Prefeitura de São Paulo e do Governo do Estado na Cracolândia entre maio e junho de 2017. Esses comentários, apresentados sem edições ou correções, revelavam um apoio massivo ao uso da força policial e de armas de fogo contra usuários de drogas, expressando também desejos de estender essa violência a outros grupos, como nordestinos, sem-terra e pessoas LGBT+. A crueza do material enfatizava a brutalidade de um discurso que transforma ódio em política, e violência, em estratégia de controle social.

Dentro desta perspectiva gostaria de destacar o projeto apresentado pelo grupo Frente Três de Fevereiro na última Bienal de São Paulo.  O grupo trabalha com uma diversidade de linguagens e busca levantar o debate sobre o racismo do Brasil, em especial o racismo policial.

Na Bienal o grupo apresentou o projeto Inteligencia Ancestral, uma videoinstação composta por registro, vídeos e ações do grupo sobretudo a partir do projeto Zumbi somos nós, uma intervenção que faz alusão a  história da própria Frente  que surgiu como uma forma de fazer vingar a  morte de Flávio Ferreira Sant’Ana, jovem dentista negro assassinado cruelmente por policiais militares de São Paulo em 2004 (e que, aliás, infelizmente faz parte da realidade atual). Além destes vídeos e registros o projeto continha uma animação realizada com IA. Nesta animação o grupo utilizou tecnologias de voice cloning y deep fake contra seus próprios fins, criando um complexo ambiente sônico-imagético, e reanimando os movimentos, gestos y sons de Dona Marinete Lima (1942-2018), integrante do coletivo e matriarca ancestral, que convidava o público, através de suas palavras ao debate relacionado ao racismo estrutural presente no país.

Neste ponto vale ressaltar a dimensão visual-imagética relacionada à guerra cultural; ou seja a uma cultura visual indissociável das redes que condiciona e molda nossos afetos, promovendo uma monocultura do sensível. Não se trata apenas de um bombardeamento constante de imagens de guerra, mas de uma guerra de imagens pautada em vieses racistas, misóginos e tudo aquilo que se relaciona com a eliminação “pura e simples do que é diverso”;

É fundamental destacar que a intenção de Arantes não é demonizar as tecnologias. Nesse ponto é importante lembrar que Aldo, como um bom leitor de Marx , recorre ao método dialético, apontando não apenas para os desafios e perigos associados às tecnologias, mas também reconhecendo seus aspectos positivos e contribuições. Aldo neste sentido constrói um diálogo potente entre razão e emoção, teoria e prática, denunciando as ameaças à democracia, ao mesmo tempo, que cria ações programáticas para seu fortalecimento.

Não por acaso ao final de sua análise Arantes nos convoca para uma “contra-guerra cultural’, uma ofensiva pautada na integração ampla das forças democráticas baseada em um plano estratégico composto por 14 pontos. Entre as medidas sugeridas estão desde a regulamentação das big techs, à defesa dos direitos humanos e a luta contra o discurso de ódio. Ele também destaca a necessidade de criar plataformas unificadas e democráticas no campo popular e de esquerda, que funcionem como frentes de resistência cultural e ideológica.

Segundo Arantes, sem uma ação coordenada que também ocupe o espaço das redes sociais, as forças democráticas estarão em risco, como  exemplificado pela tentativa de golpe de extrema direita no dia 8 de janeiro.

Arantes demonstra que a guerra cultural é uma batalha não apenas política, mas ideológica e tecnológica. Ele antecipa a importância de usar as redes sociais como ferramentas para construir solidariedade, combater o ódio e defender a democracia, mostrando-se em diálogo com o nosso tempo ao propor um enfrentamento articulado e consciente nesse novo campo de disputa.

Por fim, retorno ao meu ponto de partida para assumir meu lugar como filha, mulher e cidadã, e destacar a profunda admiração não somente pela sua trajetória pai, mas por sua contínua e persistente luta pela defesa da democracia. Esta publicação não é apenas uma análise brilhante da conjuntura política do país, do capitalismo contemporâneo e seus jogos de poder; mas também um farol que traça caminhos de resistência em defesa de uma sociedade livre e democrática, nos revigorando e dando forças para a batalha que está a seguir.

Gostaria de terminar esta fala fazendo alusão ao slogan político “Proletários de todos os países, uni-vos!”, publicado no Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels em 1848. De alguma forma, ao longo de seu livro e especialmente na parte 2 Aldo reatualiza este chamado. Talvez possamos reescrevê-lo: “Democratas de todas as frentes, unamo-nos!”. É necessário agir em espírito coletivo, para fazer com que a solidariedade vença o ódio, antes que seja tarde e nos tornemos meros zumbis digitais.

Obrigada pelo seu convite Pai!

Priscila Arantes é crítica de arte, curadora, pesquisadora e professora universitária. 

Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial dFMG.