Racismo estrutural, juiz Dredd e o marceneiro assassinado em São Paulo – Na última sexta-feira (4), o jovem marceneiro Guilherme Dias Santos Ferreira, de apenas 26 anos, foi assassinado de forma brutal e covarde por um policial militar na Zona Sul de São Paulo.
Eram cerca de 22h quando Guilherme, que era negro, saiu da fábrica em que trabalhava ao lado de amigos e correu para pegar o último ônibus da noite. Naquele mesmo momento, o policial militar Fabio Anderson Pereira de Almeida — que havia acabado de sofrer uma tentativa de assalto — achou suspeito ver um homem negro correndo e considerou admissível atirar nele pelas costas. Para o PM, era óbvio que aquele corpo negro correndo só poderia ser o de um criminoso. Como em toda sociedade capitalista a propriedade privada vale mais do que uma vida, o PM não teve dúvida em atirar na cabeça daquele jovem pelas costas. Tudo isso legitimado pelo senso comum que todo dia reafirma que “bandido bom é bandido morto”. Mas Guilherme nem mesmo era um “bandido”.
Tão estarrecedora quanto o assassinato de Guilherme foi a declaração do coronel Emerson Massera, chefe de comunicação da Polícia Militar do Estado de São Paulo. De acordo com o porta-voz da PM de São Paulo, o policial apenas cometeu um “erro de avaliação”. O que o coronel quer dizer de forma subliminar é que, se Guilherme fosse realmente um dos assaltantes, o policial teria agido corretamente em assassiná-lo pelas costas. Afinal, “bandido bom é bandido morto”. O “erro de avaliação” foi o de ter atirado pelas costas da pessoa errada.
Em 1977, o roteirista John Wagner e o desenhista Carlos Ezquerra criaram no Reino Unido um conhecido personagem de história de quadrinhos, o Juiz Dredd. Num futuro distópico, Dredd é um vigilante que acumula os cargos de polícia, juiz, júri e executor, quando é o caso da pena de morte. Exatamente no mesmo instante, Dredd encontra o bandido, prende e determina a sua pena, que pode ser a morte. A ideia daquele personagem ultraviolento era ser uma crítica ao autoritarismo e ao fascismo.
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No Brasil do presente, no entanto, a polícia parece ter assumido para si a máscara do juiz Dredd. O que era para ser uma sátira, no Brasil é a realidade. Se não tivesse cometido o “erro de avaliação”, o PM Fabio Anderson estaria sendo aplaudido por seus colegas e pela sociedade por ter cumprido o papel de policial, juiz, júri e executor. Coincidentemente, desde que o governador Tarcísio Freitas assumiu o governo de São Paulo, o número de mortes por intervenção de agentes do estado aumentou 61,31% . Segundo o Mapa da Segurança Pública de 2025, em 2023 houve 504 casos de morte por intervenção policial em São Paulo, enquanto em 2024 foram 813. Mas não se trata de um problema apenas de São Paulo ou do fato de ser um estado governado pela direita do espectro político. A Bahia, que é governada pelo PT há 18 anos, é justamente o estado com o maior número de assassinatos pela polícia em 2024, com 1.557 casos.
Quadro indica quandade de mortes por intervenção de agente do Estado no Brasil, por UF, em 2024:

Quantidade de mortes por intervenção de agente do Estado no Brasil, por UF, em 2024. Fonte: Mapa da Segurança Pública 2025 ANO-BASE 2024 / Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública
Trata-se, evidentemente, de mais um caso do racismo estrutural da sociedade brasileira. Como bem sabemos, a formação social brasileira é estruturada pelo racismo. O racismo aqui não é um resquício do passado, mas uma lógica de funcionamento do próprio modo de produção capitalista reafirmado pela colonialidade do ser. Orientada por uma necropolítica, nos dizeres de Achille Mbembe, a polícia é formada para acreditar que os corpos negros são dispensáveis, descartáveis.
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De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o estado do Rio de Janeiro tem oito entre as dez cidades com as maiores taxas de pessoas negras mortas pela polícia no país. Sob esse registro, é bem-vindo o projeto de lei 4850/2025 de autoria da deputada estadual Dani Balbi (PCdoB) que cria Programa Estadual de Capacitação em Letramento Racial e Cidadania, destinado aos profissionais que atuem no sistema de segurança pública e de ordem pública no âmbito do Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro.
Não há dúvidas de que formar a polícia brasileira para uma outra lógica é um imperativo. Mas também não há dúvidas de que a mudança real exige a própria transformação de nossa formação social, de nosso modo de produção.
Theófilo Rodrigues é professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UCAM. É coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Cultura & Sociedade da Fundação Maurício Grabois.
Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.