Os documentos do Instituto Hoover, a batalha de ideias e a avalanche neoliberal – Recentemente, a partir de entrevistas e reportagens veiculadas em seu canal no YouTube, o jornalista Bob Fernandes trouxe a público a existência de documentos que dariam prova do envolvimento de institutos liberais dos EUA na construção de narrativas que, ao longo dos últimos anos, ajudaram a deslegitimar o papel do Estado e fortalecer a perspectiva neoliberal em nosso país (1). No momento em que o trumpismo parte para o ataque contra a democracia e as instituições brasileiras, as revelações tiveram, por parte da grande mídia, menos atenção do que mereciam.
Segundo Fernandes, os documentos se encontram acondicionados na sede do Instituto Hoover, um centro de pesquisas de orientação liberal-conservadora localizado na Universidade Stanford, na Califórnia (EUA) (2). O material daria conta de uma rede de articulações envolvendo entidades privadas e públicas como Atlas Network (antiga Atlas Economic Research Foundation), National Endowment for Democracy e, ainda, a Usaid, agência do governo estadunidense voltada ao “desenvolvimento internacional”.
Trata-se de entidades com forte atuação global. Algumas delas têm reconhecida presença na órbita pós-soviética, onde influenciaram uma série de contrarrevoluções liberais e pró-ocidentais – comumente denominadas revoluções coloridas – no período que se seguiu à queda dos regimes do Leste Europeu. Os documentos mostram que essas agências e institutos teriam sedimentado relações com uma série de entidades do Brasil e de países vizinhos. A Atlas, em particular, coordenaria uma rede formada por cerca de 500 institutos, 121 deles só na América Latina.
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Ainda segundo Fernandes, a primeira parceria da rede Atlas no Brasil teria sido com o Instituto Liberal do Rio de Janeiro, coordenado por Og Francisco Leme (colega do ex-ministro Paulo Guedes na Universidade de Chicago). São mencionados também, como parte dessas conexões, os institutos Mises e Millenium. A atuação dessas entidades na batalha de ideias teria tido repercussões nos eventos de junho de 2013, na ascensão da operação Lava Jato e, enfim, nas contrarreformas que se seguiram ao impeachment de Dilma Rousseff, com a ascensão de Michel Temer ao governo central da República.
A meu ver, os documentos do Instituto Hoover agregam fontes documentais e novas informações sobre um fenômeno que, no entanto, já era bem conhecido e documentado: a atuação de ONGs e think tanks dos EUA nas tormentas da luta de ideias.
No meu livro Sob o céu de junho: as manifestações de 2013 à luz do materialismo cultural (3) exponho, com base em fontes primárias e secundárias, a influência dessas organizações públicas e privadas no espaço pós-soviético, na dita “Primavera Árabe” e na América Latina.
Entre as fontes secundárias que menciono encontram-se estudos de acadêmicos norte-americanos que analisam, a partir de pesquisas empírico-comparativas, a ação dos EUA através de ONGs, fundações e institutos, em particular nos países da ex-União Soviética. O interessante é que esses autores, de inspiração funcionalista e ênfase liberal-normativa, enxergam os fatos sob uma ótica pretensamente “neutra” – na verdade, simpática à ação americana –, o que faz deles uma fonte de grande autenticidade (4). Seus trabalhos, orientados para a pesquisa aplicada, são pródigos na exposição de um grande volume de dados.
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Menciono no livro a influência de organizações como Freedom House, National Endowment for Democracy (NED), International Republican Institute (IRI), National Democratic Institute for International Affairs (NDI) e Open Society – além, é claro, da célebre Usaid.
Falo também das articulações prévias que resultaram na fundação do Movimento Brasil Livre (MBL), um dos protagonistas do movimento “Fora Dilma!”. Alguns de seus fundadores tiveram atuação na ONG Estudantes pela Liberdade, filial brasileira da Students for Liberty. Essa entidade recebia financiamento dos irmãos Koch, donos de um dos maiores conglomerados empresariais dos EUA, com atuação principal nos setores de petróleo e gás (5). Nos documentos coligidos no Instituto Hoover, os Koch aparecem como um dos financiadores da Atlas Network (6).
Outro nome presente nos arquivos Hoover é o de Fábio Ostermann, ex-deputado estadual (Novo-RS) e figura-chave na fundação do MBL. Em entrevista concedida ao projeto de pesquisa que resultou no livro Sob o céu de junho (7), Renan Santos, atual dirigente do MBL, afirma: “O nome Movimento Brasil Livre foi criado pelo Fábio Ostermann, originalmente em 2013, e eu acho que ele pensou numa brincadeira ali com o MPL [Movimento Passe Livre], né?”.
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No verbete da Wikipedia dedicado a Ostermann, lê-se que foi “fellow na Atlas Economic Research Foundation” (8). Um dos documentos revelados por Bob Fernandes traz uma espécie de check-list de tarefas em que se lê: “Follow up with Fabio about Students for Liberty” (“Dar seguimento às conversas com Fábio sobre a Estudantes pela Liberdade”, em tradução livre).
Não cabe repetir, neste artigo breve, outros detalhes que já constam do livro. Limito-me a reforçar a ideia de que a atividade dessas organizações tem grande eficácia na modelagem da atmosfera cultural, interferindo na formação de percepções e preferências. Seu papel é fomentar um imaginário capaz de favorecer as soluções de interesse das plutocracias que governam o sistema. Um autor como Bob Jessop, argumentando desde a perspectiva do materialismo cultural, sustenta que “imaginários econômicos relativamente bem-sucedidos dispõem de sua própria força performativa e constitutiva no mundo material” (9). É aí que entra o papel da ação civil transnacional.
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As novas revelações agregam evidência à concepção de que as ideias não brotam espontaneamente (como, aliás, já insistiam Antonio Gramsci e Raymond Williams, entre outros). Ao contrário, são fruto de dinâmicas materiais e iniciativas deliberadas que incluem esforços de distintas naturezas: não apenas pressões militares e diplomáticas, não apenas financiamento direto e indireto, mas também intrincadas colaborações transnacionais, experiências de difusão cultural e ideológica, formação de quadros e mobilização da opinião pública interna e internacional.
Essas formas de atuação e colaboração – que, em sua complexidade própria, se entrelaçam e reforçam mutuamente – confirmam o impacto das relações internacionais sobre o jogo interno das forças políticas em dado país. Mesmo em um tempo de menor exuberância na ecologia de organizações com atuação global, essa tendência já era notada por um autor como Gramsci. Em seus Cadernos do Cárcere, o marxista italiano afirma:
“É necessário […] levar em conta que a essas relações internas de um Estado-nação se entrelaçam as relações internacionais, criando novas combinações originais e historicamente concretas. Uma ideologia nascida em um país mais desenvolvido se difunde em países menos desenvolvidos, incidindo no jogo local das combinações. (A religião, por exemplo, sempre foi uma fonte de tais combinações ideológico-políticas nacionais e internacionais, e, com as religiões, as outras formações internacionais, a maçonaria, o Rotary Club, os judeus, a diplomacia de carreira, que sugerem expedientes políticos de origem histórica e as fazem triunfar em determinados países, funcionando como partido político internacional que opera em cada nação com todas as suas forças internacionais concentradas […]) (10).
Por fim, creio ser necessário separar o que é material do Instituto Hoover do que são interpretações do jornalista Bob Fernandes. Não creio, por exemplo, que os documentos em si mesmos autorizem a ver os acontecimentos de 2013 como simples resultado de uma “agenda imposta de fora”. Interpreto de outra forma: as manifestações foram a resultante de uma complexa interação entre a “agenda imposta de fora” e a dinâmica própria da vida associativa brasileira, perpassada por estruturas de mobilização ligadas também às forças contra-hegemônicas.
A meu ver, se não se parte dessa orientação teórica – que extraio, em última instância, da obra gramsciana –, não se consegue entender toda a primeira fase do junho de 2013, comandada pelo Movimento Passe Livre. Pensando bem, não se consegue entender o caráter volátil e movediço do movimento como um todo.
Fábio Palácio é jornalista e professor do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão. É também membro do Conselho Diretor da Fundação Maurício Grabois e editor da revista Princípios (Qualis A3).
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.
Notas
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Cf. FERNANDES, Bob. Exclusivo, documentos: como instituições dos EUA articularam/financiaram avanço neoliberal no Brasil. Canal Bob Fernandes. YouTube, 14 jul. 2025. 1 vídeo (1h04m).
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Ao contrário do que se poderia pensar, o nome do Instituto não faz referência a Edgar Hoover, diretor do FBI de 1924 a 1972 (não há erro na data: ele realmente foi diretor por quase 50 anos!), nome ligado ao macarthismo e conhecido por sua atuação contra comunistas, democratas e ativistas de movimentos civis. O Instituto deve seu nome, na verdade, ao empresário e ex-presidente dos Estados Unidos, o republicano Herbert Hoover (1874-1964), que fundou a entidade com o objetivo inicial de coletar documentos sobre a Primeira Guerra Mundial.
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PALÁCIO, Fábio. Sob o céu de Junho: as manifestações de 2013 à luz do materialismo cultural. São Paulo: Autonomia Literária, 2023.
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Cf. BEISSINGER, Mark R. Structure and example in modular political phenomena: the diffusion of Bulldozer/Rose/Orange/Tulip Revolutions. Perspectives on Politics, Cambridge, v. 5, n. 2, June 2007.
BUNCE, Valerie J.; WOLCHIK, Sharon L. Favorable conditions and electoral revolutions. Journal of Democracy, Washington, DC, v. 17, n. 4, p. 5-18, October 2006.
BUNCE, Valerie J.; WOLCHIK, Sharon L. International diffusion and postcommunist electoral revolutions. Communist and Post-Communist Studies, California, v. 39, n. 3, p. 283-304, October 2006.
FAIRBANKS, Charles H. Georgia’s Rose Revolution. Journal of Democracy, Washington, DC, v. 15, n. 2, April 2004. -
A corporação, interessada no pré-sal brasileiro, é famosa nos EUA por escândalos diversos, incluindo compra de votos e extração ilegal de petróleo em terras indígenas. A fim de assegurar seus interesses, os irmãos Koch “gastaram centenas de milhões em financiamentos de campanhas de candidatos extremistas hostis aos impostos, aos direitos sindicais e a qualquer tipo de controle de emissões de gases de efeito estufa”. Cf. MOLINA, Antonio Muñoz. Irmãos Koch, os donos do mundo. El País, 23 set. 2019.
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Segundo Bob Fernandes, Alejandro Chafuen, ex-presidente da Atlas, era também acionista da Exxon Mobil.
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Refiro-me ao projeto “Nas redes e nas ruas: o ciberativismo à luz do materialismo cultural”, desenvolvido sob nossa coordenação na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema).
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FÁBIO OSTERMANN. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2024.
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JESSOP, Bob. Análise semiótica crítica e economia política cultural. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, set. 2010. p. 201.
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GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere: edizione critica dell’Istituto Gramsci a cura di Valentino Gerratana. 2. ed. Torino: Giulio Einaudi Editore, 1977. Volume terzo (quaderni 12-29), p. 1585. Tradução nossa.