Logo Grabois Logo Grabois

Leia a última edição Logo Grabois

Inscreva-se para receber nossa Newsletter

    Política e Estado

    STF coloca em foco a livre associação e o futuro do cooperativismo

    Decisão sobre registro compulsório na OCB expõe disputa entre modelo empresarial centralizado e cooperativismo popular autogestionário.

    POR: Nilton Vasconcelos

    7 min de leitura

    Graviola cultivada por agricultores familiares integra a linha de polpas da Cooperacre (Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre). Crédito: Cooperacre/Divulgação.
    Graviola cultivada por agricultores familiares integra a linha de polpas da Cooperacre (Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre). Crédito: Cooperacre/Divulgação.

    Cooperativismo e o direito à livre associação – Uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) causou preocupação em um segmento do cooperativismo brasileiro, em particular o das cooperativas da agricultura familiar e da economia solidária. Aquela Corte reconheceu a constitucionalidade da exigência de registro das cooperativas na Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB). A decisão foi tomada no âmbito de um caso específico relacionado a uma cooperativa do setor de transportes, ficando assim obrigada a cooperativa a ter registro na OCB, mesmo já registrada na Junta Comercial e na Receita Federal.

    Apesar da decisão não ser vinculante para todas as organizações cooperativas, retoma a discussão sobre o direito da livre associação, previsto na Constituição Brasileira. Para compreender melhor a questão, faço uma breve referência à trajetória da organização das entidades nacionais de representação das cooperativas.

    Origem da OCB e a intervenção do Estado no cooperativismo

    A ideia de uma entidade nacional que reunisse as cooperativas do Brasil surgiu no primeiro Congresso Brasileiro de Cooperativismo, em dezembro de 1944, com a decisão de criar um Centro Nacional de Estudos, o que se concretizou cinco anos depois. Este Centro, filiado à Aliança Cooperativa Internacional (ACI), foi sucedido pela Aliança Brasileira de Cooperativas (Abcoop). No mesmo período, foi criada outra representação, a União Nacional das Associações de Cooperativas (Unasco). A fusão dessas duas entidades – Abcoop e Unasco – resultou na fundação da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), em 1970.

    Esse processo de fusão foi decidido no gabinete do ministro da Agricultura do governo Médici – em uma das fases mais duras do regime militar –, com o objetivo de dar às cooperativas um papel relevante na estratégia do modelo de desenvolvimento agroexportador.

    Após a criação da OCB, em 1971, foi promulgada a lei que definiu a Política Nacional de Cooperativismo, instituindo o regime jurídico das sociedades cooperativas. Esta lei, ainda vigente, determina que, para funcionarem, as cooperativas sejam obrigadas a registrar-se na OCB. Este dispositivo foi considerado por setores críticos ao processo como uma agressão ao princípio da autonomia do cooperativismo, e mais uma intervenção do Estado na organização cooperativa.

    Livre associação e surgimento das cooperativas populares

    A partir dos anos 1990, o assim denominado cooperativismo popular, essencialmente vinculado ao movimento da Economia Solidária e da Agricultura Familiar, cresceu e ganhou força, contrapondo-se ao sistema cooperativista tradicional, hegemonizado pelo setor produtor de commodities para exportação.

    Leia também: Como a era digital está mudando a agricultura familiar brasileira

    Baseando-se nos direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal, em especial no direito à livre associação – que inclui o direito de não ser obrigado a se associar ou a permanecer associado e a proibição de interferência estatal na criação e no funcionamento das associações –, as cooperativas vinculadas aos setores populares reforçaram seu entendimento quanto à necessidade e à possibilidade de romper com a obrigatoriedade de vincular-se à OCB.

    Assim, foram surgindo representações de caráter nacional, a exemplo da União Nacional das Cooperativas de Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes), da União Nacional das Cooperativas da Reforma Agrária (Unicrab), da União Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis do Brasil (Unicatadores), da Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários (Unisol), hoje reunidas todas elas na União Nacional das Organizações Cooperativistas Solidárias (Unicopas).

    STF, unicidade de representação e os modelos em disputa

    A decisão do STF considera que a exigência de registro de cooperativas junto à OCB é compatível com a Constituição e não viola a liberdade de associação, ao se referir especificamente à exigência de registro de cooperativas de transporte como condição para a obtenção de registro na Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Contudo, a possibilidade de que se dê repercussão geral à decisão, determinando que todas as cooperativas tenham vínculo compulsório à OCB. A medida é efetivamente preocupante, tanto pelas implicações políticas quanto pela restrição que impõe ao direito à livre associação, ainda que o STF considere não haver violação desse direito.

    Leia também: Como o socialismo incorporou o mercado ao longo da história

    Além da obrigatoriedade do registro, já mencionada, outra regra em questão é a da unicidade de representação, ambas com repercussão sobre a autonomia das cooperativas e, também, com implicações financeiras. O fundamento jurídico que sustenta a decisão sobre a constitucionalidade da filiação à OCB é o mesmo utilizado na decisão que validou a contribuição sindical assistencial.

    Assim, a discussão é importante também pela relação que estabelece entre cooperativas e sindicatos. Desde 2005, a OCB instituiu um sistema sindical cooperativista composto de sindicatos, federações e a Confederação Nacional das Cooperativas, entidade sindical de grau máximo, representando a categoria em negociações coletivas e defendendo seus interesses trabalhistas e administrativos.

    A OCB defende a obrigatoriedade do registro, bem como a unicidade de representação, enquanto as representações que se opõem ao registro compulsório, a exemplo da Unicopas, também se insurgem contra a unicidade de representação, ainda que defendam o princípio da unicidade para os sindicatos.

    Mundo do Trabalho: O que é preciso para a sobrevivência sindical?

    O Sistema OCB inclui, ainda, o Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop), o braço do Sistema S com atribuição relacionada à formação profissional e à promoção social dos trabalhadores e dos associados das cooperativas no país, financiado por tributos federais recolhidos junto ao setor.

    Estes fatores revelam as implicações da hegemonização de uma única representação política do cooperativismo, especialmente no caso do predomínio de uma perspectiva empresarial que enfatiza a dinâmica econômica em detrimento dos aspectos sociais, prática que torna as cooperativas cada vez mais assemelhadas às empresas tradicionais.

    Em síntese, a decisão do STF, ainda que pontual, reacende um debate histórico entre dois modelos de cooperativismo: um de matriz mais centralizada e de perfil empresarial convencional, e outro, popular e autogestionário, alicerçado nos princípios constitucionais de autonomia e livre associação.

    O risco de se estender a obrigatoriedade do registro na OCB a todas as cooperativas por meio de repercussão geral representa não apenas a possibilidade de violação de um direito fundamental, mas também uma ameaça à diversidade e à autonomia do movimento cooperativista.

    A necessária regulação do setor com a garantia da liberdade associativa permanece, portanto, sendo um desafio crucial para que o cooperativismo brasileiro possa se desenvolver em toda a sua pluralidade, sem submissão a estruturas únicas e compulsórias de representação.

    Sobre o assunto, ver “Trajetória e desafios da representação do cooperativismo no Brasil: uma análise entre 1944 e 1969”, em

    Nilton Vasconcelos é doutor em Administração Pública e membro do Grupo de Pesquisa sobre Estado e conflitos institucionas no Brasil. Foi secretário do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Governo do Estado da Bahia.

    *A coluna de Nilton Vasconcelos tem periodicidade mensal e é publicada no dia 3 de cada mês. Em agosto, publicada excepcionalmente no dia 12 e com artigo extra dia 27. 

    **Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial da FMG.