É perversa a interligação orgânica entre a degeneração do imperialismo, o narcotráfico, o crime organizado, o “narco-capitalismo” e a crise de segurança pública nos países periféricos.
A hegemonia financeira do cartel dos bancos e a concentração violenta da riqueza é excludente, gera miséria e exclusão social massiva, cria o terreno fértil para a expansão do tráfico de drogas e a associação financeira com o cartel das drogas e armas.
Paralelamente, a elite financeira, através de um sistema de expropriação do orçamento público e da poupança nacional através dos juros abusivos e da concentração de renda, não apenas empurra populações inteiras para a marginalidade geográfica e social, mas também se beneficiam de um sistema financeiro criminoso que lava os lucros do crime.
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O combate à violência é indissociável do desenvolvimento nacional e social, da redistribuição de riqueza e do desmonte dos mecanismos de lavagem de dinheiro e da venda de armas para o crime organizado.
Enquanto a riqueza atinge níveis recordes de concentração, a miséria e a insegurança se alastram de forma epidêmica, particularmente nas periferias do sistema mundial.
A degeneração da hegemonia imperialista – agora centrada na financeirização e na espoliação – com a expansão do fenômeno do “narco-capitalismo”, onde o tráfico de drogas deixa de ser uma ilha de ilegalidade para se tornar um componente sistêmico de uma economia global predatória.
A violência urbana e a consolidação do poder do crime organizado não são anomalias, mas sim consequências diretas de um modelo socioeconômico que exclui, expropria e, por fim, se aproveita da própria desgraça que gera.
Expropriação, juros e a fabricação dos guetos — imperialismo excludente
O imperialismo contemporâneo não se manifesta prioritariamente pela ocupação territorial clássica, mas por uma hegemonia financeira que opera através do endividamento, dos juros elevados e da fuga de capitais. Este mecanismo constitui uma poderosa ferramenta de expropriação da sociedade.
As políticas de austeridade, os cortes em políticas sociais e a precarização do trabalho são consequências diretas da dominação do capital financeiro.
Esse processo gera um duplo movimento: de um lado, uma concentração obscena de riqueza nas mãos de uma elite transnacional; de outro, a explosão da miséria e da exclusão social. Grandes contingentes populacionais são literalmente empurrados para as bordas do sistema – as periferias, os guetos e as favelas das grandes cidades.
Nesses territórios, o Estado se faz presente não pela garantia de direitos (saúde, educação, moradia, segurança), mas pela sua face repressiva e, muitas vezes, negligente.
É nesse vácuo de soberania e cidadania que o tráfico de drogas encontra seu habitat ideal.
- Debate: Segurança pública, crime organizado e milícias — com Luiz Eduardo Soares, autor de Tropa de Elite, Marcelo Godoy e Thiago Rodrigues. Veja o vídeo:
 
Narco-capitalismo: crime organizado como força auxiliar do sistema
O termo “narco-capitalismo” não é uma metáfora. Ele descreve uma realidade na qual a lógica do capital – a acumulação a qualquer custo, a maximização do lucro e a mercantilização de tudo – permeia totalmente o negócio das drogas ilícitas.
O tráfico de drogas, armas, contrabando e falsificados opera como uma empresa capitalista hipereficiente, com cadeias de produção, logística complexa, gestão de riscos e, o mais importante, um imperativo de reinvestimento e lavagem de seus lucros astronômicos.
Aqui se estabelece a conexão mais perversa: o sistema financeiro e sua indústria de armas e guerras, pilar da hegemonia imperialista, usa o narco-capitalismo. Através de paraísos fiscais, offshores, transações bancárias opacas e conluio de instituições financeiras, o dinheiro sujo do tráfico é “lavado” e reintegrado ao circuito legal da economia. Dessa forma, as elites financeiras que lucram com os juros da dívida pública e com a especulação são, indiretamente, financiadas pelos mesmos mecanismos que lavam os recursos do crime. É a “lavagem da hegemonia”, onde o capital não tem pátria, nem moral.
A espiral da violência e a falsa solução militar
A exclusão social gera o exército ilegal para o crime. A miséria extrema, a falta de perspectivas e a ruptura do laço social tornam o trabalho no tráfico uma das poucas “oportunidades” de ascensão e reconhecimento em territórios abandonados. A violência, portanto, não é a causa, mas a sintomatologia final de uma doença social profunda.
A resposta estatal a essa crise, no entanto, tem sido majoritariamente militarizada e focada no combate direto. Esta abordagem é fadada ao fracasso porque ataca o sintoma (a violência armada) e ignora a doença (a exclusão socioeconômica e a integração sistêmica do narco-capitalismo). Pior ainda, ela frequentemente se entrelaça com o surgimento de milícias, que reproduzem a lógica do crime sob o pretexto da segurança, e é alimentada pela distribuição indiscriminada de armas – um negócio lucrativo para um complexo industrial-militar que pouco se importa com o destino final de seu produto.
Juros e regime de austeridade fiscal desarmam as Forças Armadas, a Polícia Federal e as Polícias Militares e alimentam a violência e a insegurança pública
A opção política pela chamada “austeridade fiscal” – priorizando o superávit primário e o pagamento de juros à banca financeira – não é economicamente neutra.
Ela representa um projeto ativo de desmonte da capacidade estatal, e um dos setores mais brutalmente impactados é o da Segurança Pública. O congelamento e os cortes orçamentários empurram policiais mal remunerados e mal equipados para uma guerra assimétrica nas periferias, com resultados previsivelmente trágicos.
A sangria orçamentária dos juros — cortes que custam vidas
O principal instrumento desse desmonte foi a Emenda Constitucional 95/2016 (Teto de Gastos), que congelou os investimentos públicos por 20 anos. Seu impacto na segurança foi devastador. Vamos aos números:
● Corte na pasta federal: de 2018 a 2022, o orçamento do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) sofreu sucessivos contingenciamentos. Em 2021, por exemplo, 62% do orçamento discricionário (investimentos e custeio) do MJSP foi congelado. Isso significou bloquear R$ 2,7 bilhões de um total de R$ 4,4 bilhões, inviabilizando a reposição de viaturas, equipamentos e até o pagamento de horas extras.
● A Polícia Federal, essencial no combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro, foi estrangulada. Em 2022, sua dotação orçamentária foi a menor em 12 anos, corrigida pela inflação. O resultado foi uma redução drástica em operações de grande porte. Dados da própria PF mostram que o número de operações caiu mais de 50% entre 2018 e 2021.
● Polícias militares estaduais asfixiadas: o desmonte federal tem um efeito cascata. Com a União cortando repasses para os estados (como o Fundo Nacional de Segurança Pública), os governos estaduais ficam sem capacidade de investir em suas polícias. Um estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostrou que, em 2020, 20 das 27 polícias militares do país tiveram seus orçamentos reduzidos em relação ao ano anterior, mesmo com a violência aumentando.
Opção pelos juros: o que se deixa de investir em segurança para pagar a banca
Enquanto a segurança pública era esquartejada, o governo federal mantinha o fluxo de recursos para o sistema financeiro em níveis estratosféricos. A comparação é chocante:
● Em 2022, o governo federal gastou R$ 542,7 bilhões com juros da dívida pública.
● No mesmo ano, o orçamento total do Ministério da Justiça e Segurança Pública foi de R$ 11,5 bilhões.
Isso significa que, em apenas uma semana, o governo gastou com juros para bancos e fundos de investimento o equivalente a TODO o orçamento anual da pasta responsável pela PF, PRF, políticas de segurança e sistema penitenciário federal.
Custo humano do desmonte: policiais jovens e mal formados na linha de fogo
A falta crônica de recursos tem consequências diretas e letais para os agentes de segurança e para a população:
● Baixos salários e rotatividade: com a asfixia orçamentária, os estados não conseguem reajustar adequadamente os salários das polícias. Isso leva a uma fuga de cérebros (policiais experientes se aposentam precocemente ou migram para a segurança privada) e a uma rotatividade alta, com policiais novatos sendo lançados em situações de extremo risco sem a devida experiência.
● Formação precária: cursos de formação são encurtados e têm seus recursos cortados. O policial deixa de receber treinamento adequado em mediação de conflitos, direitos humanos e uso progressivo da força, sendo preparado apenas para o confronto armado.
● Falta de equipamento e inteligência: a falta de viaturas, coletes balísticos, armas modernas e sistemas de comunicação inviabiliza o trabalho policial. Operações de inteligência, fundamentais para desarticular facções, são prejudicadas pela falta de verba para investigação e tecnologia.
Não se trata apenas de “falta de verba”. Trata-se de uma escolha política clara: privilegiar o capital financeiro em detrimento da vida da população, especialmente daquela que vive nas periferias.
O Estado, que deveria ser o garantidor da ordem e do bem-estar social, é deliberadamente enfraquecido em sua capacidade de atuação.
Ao negar recursos à Polícia Federal, desmonta-se a capacidade de investigar o crime organizado e a lavagem de dinheiro. Ao asfixiar as Polícias Militares, joga-se um contingente de jovens policiais, mal preparados e desmotivados, em um conflito sem fim contra uma máquina de guerra financiada pelo narco-capitalismo.
Este é o retrato de um Estado que, para pagar juros aos bancos, abriu mão de seu monopólio legítimo da força em vastos territórios, entregando-os ao crime, às milícias, à lei das armas e do crime.
O desmonte da segurança pública não é um efeito colateral da austeridade; é sua consequência lógica e um dos elos que fortalece a síntese perversa entre o imperialismo financeiro excludente e a violência do narco-capitalismo.
O bolsonarismo, seu armamentismo e o desmonte do Estado são os maiores responsáveis pelo aumento da insegurança

Nas redes sociais, o deputado TH Jóias — hoje preso por envolvimento com o tráfico de armas — aparecia ao lado do governador bolsonarista Cláudio Castro defendendo pautas de “segurança pública”. A imagem expõe a contradição entre o discurso bolsonarista e a realidade da violência no Rio de Janeiro. Foto: Reprodução/Instagram @deputadothiegosantos
A gestão da segurança pública durante o governo Bolsonaro (2019-2022) representou um paradoxo fatal e, em muitos aspectos, uma política deliberada de intensificação da crise.
Sob o lema da “lei e ordem”, implementou-se um projeto que, na prática, minou a capacidade do Estado de garantir a segurança pública, incentivou a violência e privilegiou interesses econômicos específicos, agravando profundamente a insegurança pública.
Este projeto se assentou em três pilares interligados:
1. O armamentismo populista como cortina de fumaça
O governo Bolsonaro adotou uma agenda agressiva de flexibilização do acesso a armas e munições como sua principal “política” de segurança. Sob a retórica de “armar o cidadão de bem para se defender”, foi implementado um amplo desmonte do Estatuto do Desarmamento:
● Explosão de registros: o número de CACs (Colecionadores, Atiradores e Caçadores) disparou de cerca de 200 mil para mais de 1 milhão.
● Facilitação de compra: aumento do limite de armas por pessoa, flexibilização de calibres, redução de requisitos e a permissão para o porte de armas por esta categoria.
Esta política atuou como uma cortina de fumaça para ocultar a ausência de uma política de segurança pública estruturante. Enquanto se vendia a ideia do “cidadão armado” como solução, o Estado abria mão de seu dever constitucional de garantir a segurança. O resultado foi:
● Hecatombe de vidas: o aumento da circulação de armas não reduziu os homicídios. Pelo contrário, fortaleceu as milícias e facilitou o desvio de armas para o crime organizado. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do Instituto Sou da Paz consistentemente apontam que as armas de fogo são a principal causa de mortes violentas, e a flexibilização só amplificou esse quadro.
● Benefício à indústria bélica: a agenda foi um claro favorecimento à indústria de armas, um setor que financiou campanhas e teve acesso privilegiado ao governo. A segurança pública foi transformada em um nicho de mercado.
2. O desmonte orçamentário e o enfraquecimento do Estado
Enquanto promovia o armamentismo privado, o governo Bolsonaro promoveu um desmonte histórico dos órgãos de segurança pública federal, seguindo a lógica da austeridade fiscal e do Estado Mínimo em áreas sociais.
● Asfixia da Polícia Federal: conforme detalhado anteriormente, a PF atingiu seu menor orçamento em mais de uma década. Isso resultou em uma queda drástica no número de operações contra o crime organizado, a lavagem de dinheiro e a corrupção, que são a espinha dorsal da segurança pública.
● Estrangulamento do Ministério da Justiça e Segurança Pública: Os sucessivos contingenciamentos (em 2021, 62% do orçamento discricionário foi congelado) inviabilizaram a política nacional de segurança, a modernização de sistemas e o apoio aos estados.
● Desvalorização dos servidores: a política de congelamento de salários do funcionalismo público, incluindo policiais federais e peritos, levou a uma desmotivação generalizada, êxodo de profissionais experientes e greves, enfraquecendo ainda mais a máquina estatal.
O governo que se elegeu prometendo “enfrentar a bandidagem” foi justamente o que desarmou o Estado para cumprir essa função. A mensagem clara era: “a segurança é um problema seu, compre uma arma”. O Estado foi intencionalmente enfraquecido na sua capacidade de investigação inteligente e ação estratégica, que são os únicos meios eficazes de combater o crime organizado.
3. O discurso que incita a violência e a deslegitimação das instituições
Para além das políticas concretas, o bolsonarismo cultivou um discurso que inflamou a violência e corroeu a autoridade das instituições democráticas.
● Apoio à violência policial letal: declarações públicas elogiando “bandido bom é bandido morto” e a oposição a mecanismos de controle externo (como as Ouvidorias) incentivaram uma prática policial mais violenta e menos pautada pela legalidade. Isso gerou um aumento de letalidade policial, aprofundando o ciclo de violência e a desconfiança entre população e Estado.
● Ataques às instituições democráticas: a constante guerra contra o STF, o TSE e o Congresso Nacional criou um ambiente de instabilidade e enfraqueceu o arcabouço legal que sustenta a segurança pública. O ataque à Polícia Federal, acusada de ser “aliada da esquerda”, é um exemplo claro de como se desmonta uma instituição a partir de dentro.
A Síntese da Tragédia
Longe de ser a solução, o bolsonarismo representou a culminação e aceleração da crise de segurança pública.
Seu projeto sintetizou os piores elementos: a lógica do narco-capitalismo e das milícias (beneficiando a indústria de armas e enfraquecendo o combate ao crime financeiro), a hegemonia excludente (com cortes orçamentários que penalizam os mais pobres) e um discurso de ódio que naturaliza a violência.
A política de privilégios à indústria de armas e os cortes orçamentários não são contraditórios; são faces da mesma moeda: um projeto de poder que desmonta o Estado social e regulador, transformando a segurança – que é um direito – em um produto no mercado e a violência – que é um problema social complexo – em uma ferramenta de marketing político. O resultado não poderia ser outro: o aumento exponencial da insegurança pública e da violência urbana, com o Estado não apenas ausente, mas muitas vezes atuando como um agente ativo do caos.
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A associação entre a degeneração do imperialismo, o narco-capitalismo e a violência é, portanto, direta e sistêmica.
Não se pode esperar resolver a questão da segurança pública com políticas paliativas que deixam intocadas as estruturas que produzem a miséria e financiam o crime.
O combate eficaz exige uma mudança de paradigma:
1. Cortar os juros abusivos e retomar a capacidade do Estado de aparelhar e treinar as forças armadas, a Polícia Federal e as polícias militares dos estados.
2. Do combate às drogas para o combate à lavagem de dinheiro: é necessário um ataque frontal aos mecanismos financeiros que legitimam os lucros do tráfico. Sem a capacidade de lavar dinheiro, o negócio do crime perde sua razão de ser.
3. Da guerra às drogas para o desenvolvimento social: a verdadeira segurança se constrói com justiça social, redistribuição de riqueza, investimento massivo em educação, saúde, cultura e geração de emprego e renda. É preciso reintegrar os territórios periféricos à cidadania plena.
4. Do controle militar ao controle de armas: é imperativo coibir com rigor o fluxo indiscriminado de armas para o crime e milícias, atacando as rotas de contrabando e a corrupção que o permite.
Em última análise, desmontar a síntese perversa entre o imperialismo excludente, o narco-capitalismo e o bolsonarismo é mais do que uma política de segurança; é um imperativo de sobrevivência civilizatória. Significa escolher entre um projeto de sociedade que inclui e desenvolve, ou a barbárie de um sistema que exclui, explora e, no fim, devora a si mesmo.
Miguel Manso é pesquisador do Grupo de Pesquisa sobre Desenvolvimento Nacional e Socialismo da Fundação Maurício Grabois. Engenheiro eletrônico formado pela USP, com especialização em Telecomunicações pela Unicamp e em Inteligência Artificial pela UFV, é diretor de Políticas Públicas da EngD – Engenharia pela Democracia.
*Este é um artigo de opinião. As ideias expressas pelo autor não necessariamente refletem a linha editorial da Fundação Maurício Grabois.