Diálogo com Pablo Neruda
A vida é exatamente assim,
meu primeiro poeta: viver
a vida dos outros.
Tua vida, como bem dissestes,
fora feita de todas as vidas:
as vidas do poeta.
Meu coração partido te encontra
quando há mais de trinta anos
um golpe militar
orquestrado por um certo
general Pinochet (que será
sempre lembrado pelo povo de teu país
e pelos povos de latinoamérica
como um sanguinário),
retiraram-te a vontade de viver
e debruçado à janela marinha
em tua casa em Isla Negra,
labirinto de madeira e pedras
com esculturas
e restos de naufrágios,
gritavas com teus fantásticos olhos
quando o mar começava a se avolumar
e as águas oceânicas arrojavam-se
em penhascos fustigados:
"estão matando todos, estão
matando todos".
Meu coração partido te encontra.
Vivo a tua solidão de pequeno menino poeta
e a chuva sobre os dias ainda exerce
certo inverno nos amantes do aroma
da palavra.
Ensinastes que a poesia é um território
de conflitos
com perspectivas imensas, cheias
de fascínios
como metais subterrâneos.
Pelas tuas doces mãos fui
estendendo meu espírito
e amei meus primeiros amores
e de próprio punho desencadeei um lamento
como quem chora na noite clara
e penetrante.
Ouço tua respiração perto de minha cabeça.
Desperto bruscamente
e procuro-te entre as fronteiras
de minhas causas esquecidas
e o céu esconde as estrelas
molhadas
e tomo meu corpo
e tomo minha consciência
para libertá-las em seguida.
Pelas tuas doces mãos olhei para longe,
para além das manchas de sangue
de minhas poucas roupas de cancioneiro
e derrotado em diversas batalhas
baseei-me na consciência, na ternura,
e açoitei os lobos que vieram buscar-me
enlouquecidos.
E pouco a pouco tú partias.
Partistes para que sempre
tua voz cante a esperança dos povos.
É verdade que a poesia é sempre um ato de paz.
É verdade que o poeta nasce da paz
como o pão nasce da farinha.
Mas, como afirmara Rafael Alberti,
a poesia têm utlidade pública
e é preciso, como bem asseveravas,
reinventar a guerrilha poética,
a guerra poética contra a guerra.
É preciso, mais do que nunca,
inventar canções que possam criar asas
sob o estampido da artilharia,
canções que depois vão voando
sobre toda a terra
iluminando a civilização
humana.
Em ti a poesia chegou silanciosa
e só soubestes muito tempo depois
que o rigor do coração
têm a altivez de um campesino.
Ensinastes que o valor da poesia
foi sair às ruas e tomar parte
no combate.
A poesia é a rebelião para os povos de latinoamerica
e seus milhões de analfabetos.
Ensinastes que a falta de cultura
é preservada como circunstância hereditária
e privilégio do feudalismo.
Detestavas as definições.
Detestavas os rótulos.
O que dizer, então, das convalescentes
discussões estéticas?
O que dizer, então, dos anacrônicos escribas
reacionários,
que pedem a toda hora honras para Goethe
e negam aos poetas contemporâneos
o direito a vida.
Decerto não te ofendestes
porque te chamaram
de subversivo.
Decerto a vida ultrapassa as estruturas
e há novos códigos para a alma.
Esperavas a cada dia mudanças imensas,
vivestes com entusiasmo a mutação da ordem humana:
a primavera, poeta chileno,
é insurrecional.
Embandeirado na pura criação
que têm como substância o cotidiano,
a luminosidade dos dias, os passáros das grandes altitudes,
a confusão de amores,
os heróis vencidos em campos de batalhas,
davas às costas a parafernália da literatura.
Com os teus olhos olho longamente as águas martirizadas:
minha pátria também têm ondas atormentadas,
navios retirantes, diminutos peixes voadores,
traidores
e mulheres nuas que entregam-se
em noites devoradoras.
Com teus olhos olho longamente as águas martirizadas:
minha pátria também têm solidões sem margens,
destinos desconhecidos, natureza deslumbrante
e um povo altivo.
A tua pátria é a minha pátria: e ela é feminina
como a selvagem insígnia
da liberdade.
A pátria dos poetas (e ensinastes que tal condição
corresponde a maioria essencial,
como mais uma folha da grande árvore humana)
é a multidão,
e aprendestes muito mais na grande maré
das vidas,
e aprendestes com a ternura daqueles que,
silenciosos,
olhavam-te num mar de operários
e fostes guardando
em teu coração de revolucionário
a esperança
multitudinária.
A pátria dos poetas também é a solidão.
Os pequenos movimentos da aspiral
de um cigarro aceso.
Os sentimentos das marés comovidas
na breve cerimônia da hora crepúscular.
O poeta é o tempo presente.
Ensinastes que a poesia também têm
em sua argamassa
as coisas mais desprezadas, mesmo
que queiram obrigar os criadores
a tratar, somente,
de temas sublimes.
Ensinastes que a burguesia exige
uma poesia cada vez mais isolada
da realidade.
Teus poemas dançarinos têm água de rios,
têm seres, caminhos estremecidos,
denúncias de prisões, acontecimentos amargos,
elegias a tua voluptuosa mulher vasta,
o coração da própria primavera.
Absorto parti em certas manhãs:
um punhal rondava o meu sono.
E fui saindo com a roupa do trabalho,
com os poucos papéis escritos,
com o rosto úmido e desolado,
com os sapatos de um retirante.
E fui saindo pelo dia inteiro
para nunca mais,
como fizestes na Birmânia.
Na carne dos poetas o sangue de Lorca
se agita furioso ante o pelotão de fuzilamento.
Gritamos: "fascistas filhos-da-puta
a Espanha republicana
vencerá!".
Os povos de todas as nações vencerão,
querido poeta chileno!
Tua vida centenária
fora feita de todas as vidas:
as vidas do poeta.