O regime militar tentou, de diversas maneiras, estabelecer um sistema de cidades sem cidadania. Mas a reação às contradições criadas vai extravasando por todos os poros da vida brasileira, prenunciando a possibilidade real de transformações de maior envergadura.

As massas trabalhadoras, a maioria esmagadora da população das cidades, exigem seus direitos e que sua vida urbana se coloque em padrões mais elevados. É nesse contexto que uma redefinição do quadro urbano sai do campo da aspiração, quase sonho, para o campo da necessidade e da possibilidade de realizar-se.

Torna-se urgente discutir os objetivos, os meios e os agentes de uma verdadeira REFORMA URBANA.
A vida empurra esse debate para fora dos quadros acadêmicos em que muitas vezes se encerra.
Com o objetivo de contribuir nesse debate, a revista Princípios convidou alguns profissionais para registrar seus pontos de vista sobre o tema. Realizamos em nossa redação uma mesa-redonda, que contou com a participação dos arquitetos José Cláudio Gomes, Manoel Cação Pereira, Rosana Miranda, Vânia Moura Ribeiro, José Fábio Calazans e Yara Marques.

A discussão girou, principalmente, em torno dos seguintes temas: caracterização do urbano no Brasil, posse e uso do solo, relação campo-cidade, relação entre Reforma Urbana, Reforma Agrária e Reforma Tributária, o problema da moradia e o papel do Movimento Popular e do Estado na solução da questão urbana.

Por problemas de espaço publicamos resumidamente as opiniões expendidas no debate. CLAUDIO: O fato de a população brasileira estar distribuída numa proporção de cerca de 70% nas cidades e 30% no campo é um dado inicial fundamental, na medida em que nos proporciona uma dimensão preliminar do que esse fato significa. É claro que a constatação de que 70% da população brasileira é urbana não quer dizer mais nada além do que isto: de cada 100 pessoas 70 moram nas cidades. Agora, a qualidade desse morar, dessa vida encontra-se evidentemente mascarada atrás dos números.
Considero como fundamental no Brasil o problema da relação entre cidade e campo. Acho importante começar a discutir o problema urbano por aí, tomando inclusive como referência o problema do bóia-fria que, ao ser expulso do campo para a periferia das cidades, constitui enorme contingente dos 70% que mencionei.

Os planejadores urbanos estão numa tremenda crise de identidade, que é parte de uma crise mais ampla. Eles estão se debatendo em torno dos limites e possibilidades que podem ter no trato da cidade hoje, em torno do que podem fazer no Estado e na iniciativa privada.

Mas, é impossível se ter planejamento urbano numa economia de mercado. É uma contradição no nascedouro da coisa, na medida em que se entender como planejamento algo que significa dirigir para toda a sociedade a gestão da condição urbana e do espaço urbano. De saída, isso já é contraditório com o modo de produção econômico vigente. Isso me dá o limite do planejador urbano.

YARA: Uma característica fundamental nesse processo de urbanização é o espaço de tempo em que ele se deu. Na década de 1950, a distribuição da população era o inverso: 70% no campo e apenas 30% nas cidades. Ou seja, a urbanização foi muito rápida.

Em termos políticos essa população que vem para as cidades passa a viver mais intensamente as contradições sociais e, conseqüentemente, a ter maior consciência de seu significado. Daí, hoje, o governo só encontrar apoio nos rincões interioranos mais longínquos, enquanto nas cidades cresce o movimento oposicionista.

A cidade aparece, pois, como um local em que se tem a possibilidade de. travar um grande debate e grandes embates. Sentindo isso, o poder político central tenta esvaziar essa instância. Depois das reformas tributárias que se iniciam em 1966, o município perde todo o poder de decisão.
Com a industrialização, ocorre uma desestruturação cultural. Só hoje é que começa a surgir uma cultura urbana nova, porque• o efeito das migrações é a destruição da cultura de origem do migrante. Com a consolidação dessa população nas cidades, vão nascendo algumas formas culturais novas dessa organização espacial, embora ainda incipientes.

Quanto à apropriação do solo urbano, há a grande distorção da retenção da terra e do uso da terra. O que tem acontecido é que as legislações urbanas, principalmente a legislação sobre loteamentos – a lei 6766 – faz exigências muito grandes. São legislações elitistas para o espaço urbano, que tendem a inviabilizar a aquisição de terras pelas camadas populares.

VÂNIA: É preciso garantir o uso do solo de maneira diferente, de maneira que os aspectos sociais prevaleçam sobre os privados. Tenho aqui o Projeto de Lei sobre o uso do solo que foi engavetado, que deveria ir à votação no Congresso Nacional no ano passado. Ele já tem alguns indícios de alteração na legislação sobre o uso do solo. É interessante notar que tais modificações foram introduzidas depois das invasões organizadas de grandes glebas ocorridas nos grandes centros urbanos. Vê-se que o governo está tentando segurar esse movimento social.

CALAZANS: A meu ver, o eixo central desse processo de urbanização é a internacionalização da economia brasileira que, para gerar uma elevada acumulação, tem de gerar um fortíssimo arrocho salarial. A inversão da distribuição da população urbana e rural significou a criação da cidade brasileira como um grande depósito de força de trabalho. Provavelmente, na hora em que rompermos com o capital internacional vão se colocar tarefas como a recuperação das cidades, a regulação das taxas de crescimento, a redução das migrações etc.

Isso me leva à questão do urbanismo da "reconstrução", uma postura estética de se aproveitar o que existe, considerando tudo como patrimônio para um trabalho social.
A urbanização deu uma qualidade nova aos movimentos populares. Hoje a sociedade civil é diferente. Entendo esse avanço da sociedade civil como uma espécie de antítese do processo de acumulação de capital que se verificou no Brasil. De certa forma há uma proletarização brutal da sociedade brasileira, com a vinculação maior da classe média às classes trabalhadoras, com o seu assalariamento. E tenho a impressão de que hoje a sociedade é diferente de antes de 1964. Há uma inserção da sociedade brasileira na estrutura capitalista e o dado novo é o peso maior do movimento popular na vida social do país. Aí voltamos à questão de que o papel da cidade é fundamental, não só como fenômeno social, mas também considerando a cidade como o espaço onde as contradições se manifestam, e onde a consciência se cria. Não existe consciência sem espaço.

Não quero analisar essa questão com a ótica de quem está com a ilusão de que vamos transformar a sociedade pela intervenção do urbano. Isso seria ingenuidade. Quero propor a ótica de quem imagina que sem dúvida serão importantes as experiências populares, as vitórias, as experiências enriquecedoras do processo de transformação capazes de animar e incentivar a luta de classes do povo brasileiro.

Entendo a reforma urbana como a conquista de alguns instrumentos, de alguns espaços em nível local, capazes de incentivar as grandes lutas nacionais que vamos travar nos próximos anos.
A reforma agrária traria uma dimensão interessante e poderia costurar essas duas coisas. Existe uma dimensão urbana da reforma agrária. A reforma urbana é tarefa vinculada com a reforma agrária. Inclusive, isso abre uma fronteira para nós, arquitetos, que é a fronteira da paisagem, saindo do "jardinzinho", do paisagismo feito por nós ao longo desses 20 anos, para passar a fazer sistemas de irrigação de rios, auxiliando no sistema de produção no campo, na relação efetiva do campo com a cidade. A simples reforma urbana em si. A meu ver, seria uma postura reformista, pois daria o sentido de vincular o processo revolucionário a uma reestruturação do conjunto da cidade brasileira sem dar a dimensão política que essa tarefa na cidade pode ter.

ROSANA: No planejamento em nível do Estado dá-se muita importância ao espaço físico e não se coloca a dimensão social desse espaço físico. Então, a resposta do poder público é sempre relacionada a um espaço físico, ou um equipamento, a uma questão quantitativa, sem colocar a relação com a qualidade do que se oferece. Esta é outra questão a ser colocada para o questionamento do papel do Estado.

MANOEL: É interessante observar que esse processo de urbanização ao invés de enfraquecer uma das grandes reformas a ser feita no país, a reforma agrária, pelo contrário, fortaleceu-a. Hoje verificamos uma influência nítida dos processos urbanos sobre o campo, dos processos dos trabalhadores assalariados nas cidades, particularmente da classe operária. E há uma interação maior entre esse movimento característico da economia do setor primário, da agricultura, e o da indústria. Passamos de uma economia de setor primário, predominantemente agrícola, para um Brasil industrial. Esse foi um marco que determinou o surgimento de um novo urbano. Não só em nível de uma nova conformação no espaço urbano das cidades de grandes concentrações populacionais, mas também essa ocupação do espaço do país. Brasília é um marco desse novo Brasil, dessa nova situação com características importantíssimas. Com suas deficiências e defeitos, mas surge um novo urbano. Surge também como um projeto de interiorização, de ocupação dos espaços. Um projeto que não era o da oligarquia rural, mas o da burguesia, que avançava.

CALAZANS: Que estava abrindo as portas do país para o capital estrangeiro…

MANOEL: Já é, no plano político, a transferência do poder da oligarquia rural para a burguesia industrial, que se associou, em sua grande maioria à burguesia financeira internacional. Trata-se de fenômeno importante, do ponto de vista não só econômico e político, mas inclusive cultural, com dois traços muito claros: a concentração do capital e a desnacionalização. Isso se desenha no urbano. Porque é impossível cumprir um processo desse sem uma violentíssima aculturação.

Devemos deixar claro também que há questões referentes ao urbano de caráter estrutural, como a posse e o uso do solo, que sofreu transformação em zoneamentos a serviço de interesses minoritários.

CALAZANS: Parece-me um pouco ingênuo continuar aquela discussão da década de 1970 – se interessa ou não fazer planejamento urbano. Acho que o planejamento não rompe a barreira, mas se trata de dar um outro papel político para essa experiência que se faz ao nível urbano. Aí vejo que isso ganha um plano mais importante do que o acadêmico de restaurar todo um território como se tivéssemos poder sobre a estrutura. Mas, muito mais viáveis são aquelas intervenções em setores da cidade, aonde podemos entrar como um cidadão que interferiu naquele local onde se inseriu em determinado momento. Uma pessoa faz um monumento, faz uma escola, pode até fazer uma outra cidade.

MANOEL: Parece-me que aí você está pensando como um arquiteto isolado. Acho que temos de combinar as duas coisas: uma, o trabalho ao nosso alcance; e outra, as possibilidades ao alcance da intervenção do movimento popular.

ROSANA: Não vejo a reforma urbana como um projeto acabado. Num determinado momento se define, de acordo com seu compromisso político, um projeto de como se vai dar a organização daqui para frente, ou como se vai controlar o crescimento das cidades etc. Num primeiro momento, teríamos uma etapa dentro das cidades, na qual em casos como São Paulo e outras grandes cidades, vão ser atendidas democraticamente determinadas necessidades básicas da população. Esse atendimento das necessidades básicas da população em serviços públicos é um passo no rumo da democratização, num sentido construtivo.

Uma outra etapa seria uma reordenação do espaço urbano com um controle maior da forma de ocupação do município, da área urbana. Esse é um processo mais complicado, na medida em que passa pelo controle da terra urbana, o controle direto do Estado, ou a posse da terra.
Então, para mexer nessa questão terá de haver linhas mais radicais de transformação do modo de urbanização.

Outra coisa a ser ressaltada: o urbano no Brasil apresenta realidades diferenciadas. Há o urbano da interiorização e o das grandes cidades, cada qual com características peculiares, resultado do mesmo momento de desenvolvimento do país, e de uma participação cada vez maior das multinacionais dominando a economia do país. A urbanização que está ocorrendo no interior não é no sentido de levar as características urbanas para o campo, mas de levar processos e avanços tecnológicos ou processos de dominação. Vejam o caso de Ji-Paraná, em Rondônia. É uma grande frente de ocupação, de importância significativa para a população local. Essa população que foi para Rondônia já vivia na zona rural em São Paulo, no Espírito Santo, no Paraná. O que acaba ocorrendo é uma ocupação de cidades, das pequenas cidades. Porque o INCRA faz um projeto de colonização na região que contempla apenas a cessão de um pequeno pedaço de terra e a montagem de uma infra-estrutura de estradas e serviços muito precária. O dinheiro que o pequeno agricultor possuía da venda de sua propriedade no sul não chega para suportar o período de carência, porque o acesso é difícil para escoar a produção e os alimentos são muito caros lá. Então, o pequeno agricultor vai se tornar o motorista de táxi na cidade, o relojoeiro, enfim, vai viver da economia mais periférica da vida urbana, pois lá não há indústria.

Portanto, não vejo solução para a interiorização nos moldes em que está colocada. Se não se alteram as relações no nível central, e no do país como um todo, aquela situação local vai se agravando, porque até o asfaltamento da BR-364 que liga Cuiabá a Porto Velho continua aumentando a migração para Rondônia.

CALAZANS: Achei interessante a distinção feita por você para caracterizar melhor a relação estrutural entre o processo de metropolização e da interiorização.

CLAUDIO: Considero muito interessante a experiência relatada pela Rosana. Também vivi uma experiência de como se caracteriza o urbano no contexto da frente pioneira. Mas como se caracteriza o urbano num contexto completamente diferente? E como se caracterizam as cidades do nordeste e do norte? Então, vemos que são contextos diferentes. Ao tentar caracterizar o urbano no Brasil, essa coisa tão ampla, tão genérica, temos de avançar, e avançar significa mais exatamente especificar até se chegar ao nível do concreto, por exemplo, da população local.
O modo de produção do urbano de Rondônia é diferente do modo de produção da periferia de São Paulo.

YARA: A cidade brasileira vive num momento de redefinição de forças. A reforma urbana passa inclusive pela capacidade de os movimentos populares urbanos interferirem. Nós temos, por exemplo, a Lei da Reforma Urbana do CNDU (Comissão Nacional do Desenvolvimento Urbano), já citada. É a mesma apresentada por João Goulart em 1961, contendo pequenas alterações, mas no seu arcabouço é a mesma. Por que e por quem foi colocada agora? Precisamente por empresários da construção civil. Trata-se de uma tentativa desses empresários de retomar a discussão sobre a reativação da construção civil, aparecendo aí um interesse de promover um determinado tipo de reforma urbana. Então, paralelamente à manifestação do anseio da população de mudar as regras do jogo, evidencia-se também o interesse dos empresários.

CALAZANS: A meu ver, é importante a identificação do espaço onde se dão as relações sociais com a realidade política. Por exemplo, quem coordenará ou decidirá sobre o uso do solo nas cidades?

CLAUDIO: Uma coisa é falarmos isso para São Paulo, com 13 milhões de habitantes, uma cidade monstruosa! Eu diria até que esse processo seria mais em nível local. Os bairros são muito grandes e têm seus movimentos localizados. E é por aí que devemos ir. É aí que está a brecha. Agora, o contexto de Rondônia, por exemplo, é outro. A identificação das brechas tem de ser feita levando em conta os conceitos específicos da região.

CALAZANS: No nível da produção eu priorizaria a transferência de certos papéis, hoje nas mãos dos empreiteiros, dos empresários, dos intermediários, diretamente para a população, através de organismos da sociedade civil. Seria preciso também estabelecer outros tipos de acordo, nos quais o Estado resolveria, por exemplo, o problema da terra, da produção de certos materiais pré-fabricados, em cooperativas, ou diretamente pelo Estado. Agora, isso não se dá sem um espaço político definido. E tudo isso terá como premissa a inserção da população no processo decisório, na definição até do próprio espaço urbano.

Esse me parece um caminho político novo: reintegrar o técnico com o político. Pode-se ou não usar uma área pública para fazer habitação? Depende do projeto. E nesse processo a população tem de participar. Mas para participar, a unidade geopolítica tem que estar definida.

Por isso, me parece que o eixo fundamental é, de um lado, a politização do processo de produção da cidade e, de outro, a alteração de certas relações, tirar os intermediários e quebrar qualquer vínculo com o capital financeiro em nível de recursos para produzir a cidade, no nível das taxas de juros do sistema financeiro. Gerar recursos no nível da própria localidade, o que significa tirar esse dinheiro de outra forma, produzir uma outra moradia, um outro equipamento. A questão da técnica tem de ser articulada no processo social.

CLAUDIO: Eu gostaria de propor uma questão, ainda sobre a relação campo-cidade: A população que nos últimos anos acampou nas áreas periféricas das cidades, tendo oportunidade, voltaria para o campo?

YARA: No sistema capitalista de produção, a tendência das grandes cidades é de crescer. O que se pode fazer é diminuir esse ritmo de crescimento. Mas, reverter essa tendência exigiria uma mudança nos esquemas de produção muito maior do que os que se tem em vista para o futuro próximo que o Brasil viverá.

VANIA: Para mim, uma tarefa de certa etapa do desenvolvimento brasileiro é fazer uma reforma agrária e uma reforma urbana. No meu entendimento, elas devem ser concomitantes. Não adianta fazer um chamamento para a população voltar para o campo agora. Estão sendo distribuídos títulos de posse da terra, mas o que adianta distribuir terra e mandar as pessoas para a fronteira agrícola do país, se não se é dada a mínima assistência técnica, de saúde, enfim, se não é criada uma infra-estrutura para o indivíduo construir sua vida e manter sua família?

CALAZANS: Do ponto de vista estratégico, me parece que a reforma urbana tem a perspectiva de permitir valorizar certas experiências populares nas diversas cidades e até nas diversas regiões do país. A proposta que eu faria de reforma urbana do ponto de vista estratégico seria pensá-la como uma contribuição ao enriquecimento da vida cultural e política, pois não existe vida política e sua expressão sem espaço, sem o exercício da cidadania. No plano mais imediato, vejo a possibilidade de a Constituinte, por exemplo, atacar problemas como o da propriedade do solo urbano.

YARA: Gostaria de dar um pouco de ênfase à questão da posse da terra, porque considero que ela se coloca de maneira muito forte. É preciso que a reforma urbana enfrente essa questão, de como o valor social da propriedade urbana vai se sobrepor a esses outros valores que ela tem hoje. Necessariamente, passa pelas reformas tributárias, por reformas de investimentos em que se canaliza o capital que hoje está na especulação imobiliária financeira, de forma a alocá-lo produtivamente. Outra questão: verificar como os investimentos públicos são apropriados na valorização que têm acrescido à cidade.

CALAZANS: A meu ver, devemos tentar organizar o pensamento sobre a produção da cidade, em torno de alguns pontos: a terra, o capital, a força de trabalho, os insumos e a gestão, a administração pública. Ademais, devemos abordar a dimensão cultural disso tudo, pois acho que a cidade tem uma profunda dimensão cultural.

Em relação à terra, não acredito que qualquer constituição ou legislação tenha poder de interferir na estrutura produtiva. Então, já de saída não acredito numa regulamentação do uso do solo urbano que seja empecilho para o exercício do capital financeiro e do lucro na cidade. Desse modo, toda uma visão muito comum, inclusive entre os arquitetos, de querer transferir para a Constituinte alguns instrumentos legais de controle da especulação, é uma profunda ingenuidade política, filosófica e ideológica. Acredito que a Constituição poderá avançar no sentido de caracterizar a propriedade como coisa pública, de modo que o movimento popular e a luta de classes possa se respaldar num novo princípio toda vez que for necessário.

Não acredito também em combater a especulação regulando o mercado. Ora, um dos instrumentos para enfrentar essa questão é a desapropriação. A questão da terra deverá contar com um conjunto de instrumentos eficazes que permitam ao Estado assumir junto com a população a solução do problema habitacional.
A Constituição deverá dar condições para as cidades brasileiras, onde se soma grande parcela da oposição, exercerem sua cidadania. É aí que se ligam três reformas: a urbana, a tributária e a agrária.

MANOEL: Gostaria de ampliar mais a discussão sobre o que significa dar condições ao Estado de ser um dos agentes importantes, de centralizar a intervenção na reforma urbana. Porque, inclusive, conforme se confira poder ao Estado ele pode ser o centralizador antidemocrático e não conduzir uma reforma urbana que atenda às necessidades sociais. Poderíamos abordar a questão em três níveis. Existe um nível de reforma urbana sob um regime democrático-liberal, ou liberal-conservador; estamos às vésperas de algo assim. Existe um outro que se dá num regime em que a correlação de forças de classe é outra, um regime em que predominam as forças populares e democráticas. E há um nível superior que seria a reforma urbana sob um regime revolucionário. São três níveis de correlação de forças do poder político que podem intervir e modificar as referências para se fazer a reforma urbana.

CLAUDIO: Manoel esboçou três cenários muito interessantes. Mas, tentando interpretar esses contextos em que se poderia dar um tipo ou outro de reforma urbana, tenho a dizer que no momento histórico que atravessamos, está se configurando uma democracia liberal-conservadora e que, necessariamente, terá de dialogar, não sei exatamente em que condições de força, com todo o movimento popular.

CALAZANS: Provavelmente, se a composição é conservadora ou liberal, em 1986 vão triplicar ou quadruplicar as cidades onde os prefeitos serão mais progressistas, onde a presença do povo será maior. E é essa capacidade de costurar as experiências, de garantir a unidade sindical, a unidade do movimento de massas, que nos capacitará ou não a chegarmos ao segundo estágio colocado pelo Manoel, com a unidade popular.

ROSANA: Nessa composição liberal-conservadora que se está configurando, creio que a garantia da introdução de algumas modificações, passará por uma negociação em relação a alguns programas mínimos, a serem discutidos em nível local e do movimento popular. Não é tão tranqüilo essa composição que se está delineando assumir uma série de concessões. Quer dizer, eu acho que essas concessões podem se alargar mais à medida que houver participação do movimento popular nessa discussão.

CALAZANS: Precisamos, ao mesmo tempo em que reforçamos o debate mais geral, politizar as experiências particulares de cada localidade do país. Veja bem a beleza que foi a mobilização do Centreville e o absurdo, a frustração de se terem estancado as negociações ali. Isto porque, no momento em que uma experiência como aquela se consolida, consolida-se um novo princípio.
Agora, enfrentando a questão de qual modelo poderemos utilizar para articular a reforma urbana: por exemplo, se achamos o Estado fundamental para que se possa resolver o problema da terra, e que as prefeituras aumentem seus recursos para os investimentos em nível de cidade, de habitação etc., ainda assim a demanda e o déficit de equipamentos e habitações é tão grande que não resolveremos o problema da reforma urbana concretamente sem a incorporação dos recursos da própria população. É evidente que a reforma tributária dará maior fôlego. Mas eu não encararia o Estado como construtor de milhões e milhões de casas, mas como um administrador do esforço coletivo, no sentido de poder incorporar os recursos hoje gastos pelo trabalhador sozinho para coletivizar esses dispêndios, organizar cooperativas. E esses recursos são imensos, parcelas consideráveis do salário do trabalhador.

VÂNIA: A Prefeitura Municipal é proprietária, através da COHAB (Companhia de Habitação de São Paulo) de inúmeros terrenos, de glebas enormes. Poderia perfeitamente construir e alugar com uma taxa de uso, interferindo diretamente no mercado imobiliário.

YARA: Não existe disponibilidade para o Estado bancar a solução desse problema, em função do volume de investimentos necessários. Este volume é de tal monta que o Estado não teria condições de cumprir suas outras tarefas. Não vejo nenhum mal em que a iniciativa privada participe da solução desse problema. A questão do aluguel, por exemplo, não é o fato de se pagar aluguel, mas quanto se pagará por esse aluguel, em que mercado imobiliário isso se dá. O dono da unidade pode ser o BNH ou um proprietário privado. Vai depender da maneira de esse aluguel ser sendo regulado, como ele está sendo pago. O Estado tem de se colocar coordenando, como regulador. Na verdade, seria necessário haver grandes cooperativas que poderiam contar com os recursos da população, ou particulares, ou do próprio Estado.

CLAUDIO: Isso, senão me engano, foi falado na época em que o Sr. Miguel Colassuono era prefeito de São Paulo, quando se discutiu sobre o Banco de Terra. Falava-se da conveniência de o Estado adquirir grandes créditos, como elemento regulador dos valores imobiliários.

CALAZANS: A questão da EMURB (Empresa Municipal de Urbanização) de São Paulo, mostra isso. Não adianta .criar um instrumento nas mãos do Estado se não é criado também um instrumento nas mãos da sociedade. Não vejo muitas condições de o Estado assumir a produção de habitações porque a construção apresenta uma demanda de capital inicial muito grande. Mesmo os recursos do BNH são imensamente menores do que se precisa para cobrir o déficit habitacional em São Paulo, que é uma coisa astronômica. Tanto é que a execução do plano do Sr. Mário Covas, de construir 200 mil unidades habitacionais, necessitaria de bilhões de cruzeiros que, evidentemente, só o BNH poderia ter, e não tem. E nós temos de enfrentar não apenas a construção de 200 mil unidades, mas sim de 1 milhão, no mínimo, só em São Paulo. Então, considerando que o compromisso do Estado é com o conjunto da demanda, não podemos ter a ilusão de que o Estado possuirá nos próximos anos recursos que se convertam em capital de giro para a construção, infelizmente alto. É alto em geral, pela composição do capital, e é mais alto no Brasil pelo custo do dinheiro. Mas, acredito que o Estado possa garantir o direito do trabalhador à terra. Agora, não queremos simplesmente pegar a terra, fazer lote urbanizado, dar terra a cada um e cada um que se vire. É preciso enfrentar o problema da habitação sem ter a ilusão de que o Estado possa aplicar muito dinheiro. Acho que, ao se responder ao problema da demanda global de habitações, evidentemente se está respondendo conjuntamente ao problema do saneamento. A demanda de recursos fundamental é a produção, é o emprego; é o equacionamento da produção. Portanto, devido a um problema de capital, em nível tanto de recursos, quanto de financiamentos, para que o Estado atenda ao direito de que todo cidadão tenha moradia, ele tem de garantir a terra e garantir que a população possa, equacionando também os próprios recursos, solucionar os problemas de moradia. E daí, em cada local ou região, avançar certos instrumentos que passem um pouco para organizações mais coletivas dessa produção. Isto não significa, por exemplo, que na área de cortiços, onde o capital já está formado, onde o bem imobiliário já existe, que o problema de moradia não possa ser resolvido por aluguel.

Mas o fundamental é incorporar a contribuição que a população brasileira já dá na auto-construção, avançando em soluções não individuais, criando mecanismos que permitam organizar essa construção de forma mais coletiva. Isto nada tem a ver com o enfoque de pequena comunidade. Deve-se ter uma visão em nível de cidade, de Caixa Econômica municipal, de cooperativa municipal. Deve-se romper com a visão pequena e passar a uma visão política da coisa. E, conjuntamente, investigar instrumentos que permitam essa mediação, de modo que o indivíduo tenha a casa dele, mas a propriedade disso é do grupo ou do Estado em que o indivíduo possui uma parte.

CLAUDIO: Exatamente por essas razões – ou seja, porque a demanda por habitação é de tal maneira astronômica face aos recursos que o Estado poderia ter, ou' até estaria disposto a alocar – considero o problema da habitação insolúvel na economia capitalista. Por isso, na minha opinião, a maneira mais eficiente pela qual o Estado poderá intervir hoje no urbano é na construção do espaço público.

ROSANA: Por outro lado, não considero correto em curto prazo o Estado deixar de investir na habitação com recursos centralizados. Acho que qualquer atendimento das necessidades em larga escala pressupõe a intervenção do Estado.

CALAZANS: o problema da habitação terá de ser enfrentado em compromisso entre as organizações populares e o Estado. E a partir daí, de certa forma, tem toda razão quando se afirma que a população já está resolvendo o problema de outro jeito, pela auto-construção. O papel fundamental do Estado seria transformar e interferir na produção de moradias. Por exemplo, quando o Estado oferecer a terra e oferecer recursos para a população se organizar coletivamente e apoiar esse esforço estará rompendo com o empreiteiro, com o intermediário e com o capital financeiro. Essa me parece uma bandeira de luta, uma palavra-de-ordem. O que me parece possível nessa articulação entre o Estado e a sociedade civil, na questão da habitação, é o Estado contribuir com o investimento inicial, aquele que é capaz de organizar o processo produtivo.

MANOEL: Hoje, vemos muito claramente que em nível de população em geral existe uma consciência já formulada quanto à reivindicação por moradia, quanto à questão da habitação. Com relação à reforma urbana, porém, já não acontece o mesmo. Eu perguntaria: até que ponto a população tem consciência do que é mesmo reforma urbana e qual a importância dessa reforma? YARA: A meu ver, na medida em que os movimentos populares se organizam, na medida em que a esfera política na cidade é valorizada, a percepção da necessidade da reforma urbana vai ocorrer. Talvez a consciência surgirá a partir do equacionamento de problemas específicos.

MANOEL: Esse equacionamento é importante, essa sistematização da consciência é importante, porque essa consciência vai brotando num processo vivo. Mas se a consciência espontânea não passa por uma transformação, torna-se difícil dar o salto. O nosso papel como intelectuais é basicamente este: articular coisas que para o povo estão dispersas, desconexas, e dar um sentido.

CALAZANS: Para mim, não é tão desconexo, porque a conexão se dá na história. Podemos, dentro do conjunto de questões que discutimos até agora, tirar o sumo, o elenco de uma série de palavras-de-ordem, e debatê-las com representantes do movimento popular e sindical.
Com a superação do capitalismo, a cidade se voltará mais para a sua dimensão política. Isso se relaciona com o que já foi colocado aqui, de que o espaço público ganha proeminência na organização do território. Em São Paulo, teremos de equacionar isso muito bem. Eu diria que podemos até descentralizar a indústria no eixo Rio-São Paulo. Mas em nível de habitante, de moradia, a posição é muito mais de concentração, de urbanização compacta. Veja bem, no CONCLAT os trabalhadores se manifestaram favoráveis a morar dentro da área urbanizada, que tem água, esgoto, cinema etc. Há uma afirmação clara nesse sentido. A meu ver, a cidade dos trabalhadores é a cidade concentrada que se volta para a vida política, para a vida cultural.

VANIA: Considero também que dentro da reforma urbana é necessário promover a renovação urbana, ou seja, recuperar o que já existe.

ROSANA: Isso implica não só novos investimentos, mas também a manutenção do existente, porque existe um investimento, esta cidade já foi construída.

CLAUDIO: Um tema atualíssimo para discussão é saber em que medida, numa economia planificada, conviria privilegiar a urbanização do campo, através da implantação de cidades novas, e levar a vida urbana para o campo; ou em que medida conviria o inverso, ou seja, trazer alguns padrões, alguns elementos da vida rural para as cidades (a natureza, o verde etc.). É uma polêmica a ser travada, porque no Brasil a relação entre cidade e campo é um problema fundamental.

* Manoel Cação Pereira é arquiteto e colaborador da revista Princípios.

EDIÇÃO 9, OUTUBRO, 1984, PÁGINAS 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17