Princípios. Faz-se muita apologia nos dias de hoje sobre a chamada internacionalização da economia brasileira, defendida como uma espécie de redenção para nossos males inclusive por personalidades tidas como democráticas e até progressistas, caso de Fernando Henrique Cardoso e José Serra. Mesmo o conceito de dependência é contestado, como se a ele não correspondesse um fenômeno econômico da atualidade. Qual sua opinião sobre isto?

Bautista Vidal. Infelizmente o processo de dependência brasileira é uma coisa que já se estende desde o começo do século XVIII. Em 1703 Portugal, que até então era uma potência importante da Europa (tinha demonstrado grande capacidade de domínio sobre os mares, possuía a famosa Escola de Sagres e certo desenvolvimento das ciências), foi rendido pela Inglaterra, pelo Tratado de Methuen. A Inglaterra impôs que Portugal deveria ter suas atividades econômicas com o exterior limitadas à exportação do vinho do Porto. Enquanto isto, o país se subordinava a comprar todos os produtos manufaturados ingleses, àquela época basicamente produtos têxteis. Depois a obrigação estendeu-se a todas as demais mercadorias.

Isto transformou Portugal numa colônia da Inglaterra. Então, como nós éramos uma colônia de Portugal, viramos uma colônia de outra colônia, ou seja, uma sub-colônia. Isto já no começo do século XVIII. Falar que Portugal é responsável pelo nosso atraso é uma grande inverdade. A rigor, desde o começo do século XVIII a Inglaterra passou a controlar o nosso processo econômico. Durante todo aquele século, que foi um século de grande estagnação para nós, surgiram as primeiras esperanças de maior autonomia com Napoleão Bonaparte na Europa. A primeira revolução francesa e depois as lutas de Napoleão, de libertação da Europa, abriram o horizonte, com a esperança de que as coisas podiam mudar para o nosso lado. E realmente isto quase sucedeu. Sucedeu quando as tropas do general Junot cercaram a cidade de Lisboa e o príncipe regente, Dom João, procurou o auxílio da esquadra britânica para escapar ao cerco da prisão das tropas napoleônicas e fugir para o Brasil.

Desta forma, a família real, dentro de uma esquadra britânica, enquanto a cidade de Lisboa estava sendo invadida pelas tropas de Napoleão, veio parar aqui. Mas aí o embaixador da Inglaterra impôs como condição para trazer a família real, libertá-la do cerco da prisão, a abertura dos portos. O príncipe regente foi, então, obrigado a assinar a abertura dos portos.

Este foi o segundo ato de grandes conseqüências durante os dois séculos que se sucederam em nossa história, onde nós, através da abertura irresponsável dos portos, imposta pela força da Inglaterra, pela corte britânica, nos tornamos um país que não podia desenvolver nada da sua indústria, nada do seu poder criativo porque devia subordinar-se aos ditames da Inglaterra. As tarifas favorecidas das exportações inglesas inviabilizaram a indústria nacional.

A dependência é um fenômeno histórico que já conta séculos

Tanto isto é verdade que durante o processo de nossa história em várias ocasiões demonstramos a nossa capacidade, a nossa pujança. A primeira grande iniciativa de porte ocorreu quando o patriarca da independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, que era um homem de grande nível (doutor em zoologia e alto funcionário da Corte em Portugal), quando chegou ao Brasil fez um projeto nacional que incluía, além de profundas reformas na educação — em todos os setores —, a construção de duas siderúrgicas. Isto ocorreu 60 anos antes da implantação da primeira siderúrgica japonesa.

Pois bem, essas duas siderúrgicas foram montadas pelo barão Eschwegen, que veio ao Brasil com esta finalidade a convite do patriarca. Mas as duas empresas foram destruídas por prepostos brasileiros sob ordens dos ingleses. O patriarca teve de sofrer um longo exílio, quase foi liquidado, e o Brasil perdeu aquele momento histórico que, indiscutivelmente, poderia tê-lo transformado em país importante e poderoso muito antes e em condições até superiores às que os Estados Unidos depois tiveram. Tudo o que os EUA gozaram de independência, capacidade de desenvolver suas próprias potencialidades, o Brasil jamais teve por estar dominado pela Inglaterra. Os norte-americanos conseguiram a independência da Inglaterra antes desta se transformar numa potência muito forte. E nós sofremos a influência inglesa através de Portugal e depois por meio daquela fatídica abertura dos portos, que nos inviabilizou durante 200 anos. Apesar disto, em nossas escolas se ensina às crianças, e todos nós assim aprendemos, que a abertura dos portos foi uma coisa muito favorável ao Brasil. Na verdade foi uma maldição.

Assim foi nossa história até o interregno entre as duas grandes guerras. A 1ª Grande Guerra incentivou a luta pelo poder entre as grandes potências. Na segunda foi estabelecido um predomínio incontestável de uma nação sobre as outras, com a Alemanha e outras potências européias saindo parcialmente derrotadas. As nações líderes do poder mundial viveram um certo período, entre as duas guerras, de grandes competições e de um certo vácuo de poder, inclusive em relação ao nosso País. Foi, em toda a nossa história, o único período em que tivemos a possibilidade de manifestar nossas aspirações, foi exatamente quando construímos toda a base do Brasil moderno.

Ocorreram, então, grandes manifestações e mobilizações de natureza política que tiveram como coroamento a revolução de 30, que transformou o Brasil, do país antiquado da República Velha, vinculado ao colonialismo inglês, num país com pretensões de se transformar em nação. Aí surgiram as idéias básicas de libertação nacional. As lutas políticas e militares da década de 20, os 11 do forte, Coluna Prestes e tantas outras, provocaram na opinião pública uma crescente tendência para a construção de um projeto nacional.

Além disto, tudo o que é absolutamente fundamental para a construção de uma nação ocorreu neste período. Apesar de várias tentativas anteriores, depois de quatro séculos de resistência é que surgiram as primeiras universidades brasileiras. A Universidade de Minas Gerais, em 1927, a Universidade de São Paulo, em 1934. Surgiram também os projetos básicos que levaram à construção de nossa primeira siderúrgica. As idéias nacionais surgiram nas teias da revolução de 30, embora o projeto que as contemplava só tenha sido implantado na década de 40. Portanto, quase que um século e meio depois da tentativa do patriarca.

Surgiram instituições básicas, como o primeiro instituto de tecnologia da América Ibérica, em 1922, no Rio de Janeiro. E na esteira dele surgiram outros em São Paulo, na Bahia, no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais. Houve a famosa Semana de Arte Moderna, onde a criatividade brasileira se manifestou de maneira pujante. E, enfim, toda a luta pela autonomia energética com uma consciência crescente sobre a importância de dominarmos nossos recursos energéticos e naturais, cuja conseqüência foi a criação da Petrobrás e mais tarde da Eletrobrás. Quer dizer, tudo o que de importante aconteceu no Brasil deu-se neste vácuo de poder entre as duas grandes guerras, quando as grandes potências estavam absorvidas na luta entre elas próprias.

Tudo isto acabou, com o término da Segunda Guerra, quando uma só nação surgiu com o poder total, com quase 60% do produto bruto, detentora isoladamente da tecnologia nuclear e com isto nós tínhamos saído da guerra em situação relativamente folgada. Sem dívida externa e com reservas internacionais altíssimas.

Princípios. E até com créditos, que a Inglaterra e os Estados Unidos vieram a calotear depois, não?

Bautista Vidal. Precisamente. Com crédito caloteado pela Inglaterra. Tudo o que se havia conquistado foi destruído rapidamente durante a administração Dutra. Os saldos na balança externa que tínhamos conseguido foram queimados de maneira irresponsável, comprando uma grande quantidade de bugigangas no exterior, o país foi inundado com bugigangas externas. O governo Dutra foi um desastre para o país.

Sobreveio uma fase de democratização e o segundo período do governo Vargas foi como um oásis. Vimos pelo que ocorreu na própria administração Vargas, levado ao suicídio, que as grandes potências já estavam cuidando de destruir qualquer projeto nacional, qualquer possibilidade de construir uma nação independente no Brasil.

Então veio o modelo de crescimento econômico dependente, que abriu a nossa economia às grandes corporações transnacionais, implantou-se a indústria automobilística totalmente internacionalizada. É bom que se diga que houve luta, muitas pessoas defenderam e conseguiram numa fase inicial, uma participação nacional (alguns ramos de autopeças para carros, por exemplo).
Depois tudo isto também foi destruído.

Ilustra bem a dimensão da desnacionalização a evolução da indústria farmacêutica. Na década de 30 mais de 70% do mercado era dominado por empresas nacionais, que detinham seus próprios centros de tecnologia privados, de enorme eficiência. Nós produzimos vacinas antes dos EUA produzirem, exportávamos remédios desenvolvidos por nossas empresas. Tudo isto acabou. Já na década de 60 sobravam, nas mãos de nacionais, menos de 5% do mercado farmacêutico brasileiro. Temos, ainda, a desnacionalização total da indústria automobilística, de eletrodomésticos, etc, tudo nas mãos de multinacionais.

Aquilo que foi conquistado no período de vácuo de poder entre as potências foi profundamente enfraquecido com este modelo de crescimento econômico dependente. Foi parar nas mãos de estrangeiros. Agora, apesar disto ficou o germe. Tudo o que aconteceu de avanço resultou da base construída naquela época, entretanto associada a um domínio estrangeiro crescente. A economia brasileira, a partir da Segunda Guerra Mundial, foi transformada numa das economias mais abertas do mundo.

Este modelo está em absoluto confronto com a experiência internacional. Foi publicado em 1982, traduzido em 1986 para o inglês e nós estamos traduzindo agora para o português, um livro de um cientista político alemão, Dieter Senghaas, cujo título é "A experiência européia", no qual ele mostra que só através do fechamento as nações européias puderam resistir à dominação inglesa e à destruição de suas bases industriais nos últimos 150 anos. Todas que hoje se permitem o luxo de constituir o Mercado Comum Europeu, porque têm forças equivalentes, viveram um processo de 150 anos de fechamento, no qual adquiriram força de competição, estando unidas, atualmente, sem predomínio absoluto de nenhuma delas. O Senghaas estuda ainda a experiência de outros países.

Ele faz comparações interessantes, entre por exemplo a Noruega e o Uruguai, países que partiram da mesma base. Enquanto um, baseado no fechamento de sua economia, está bem, o outro, através de sua abertura, está sendo destruído. O caso da Austrália e da Argentina, países que possuem um potencial semelhante (a Argentina era um dos países mais ricos do mundo, já foi a terceira renda per capita do Planeta no começo do século. Hoje é um país destruído).

A experiência internacional é absoluta e indiscutível. Nos últimos 300 anos não há exemplo de um único pais, nem mesmo um, isto o Senghaas afirma, que tenha conseguido se desenvolver realmente sem um fechamento durante um certo período. Isto é ostensivo no exemplo dos Estados Unidos, que evoluiu conforme a doutrina Monroe. Fechou-se, construiu internamente sua economia e hoje é o que é.

Nenhum país que se abriu antes de adquirir uma certa potência deu certo. O caso do Brasil foi de um país em que, salvo aquele breve interregno de vácuo de poder entre as duas guerras, onde tudo o que é importante foi feito, tudo o mais saiu errado. O resto foi uma devastação provocada pela invasão estrangeira. Uma experiência de colônia vil, sem nenhuma consistência para resolver os problemas do seu povo, agir segundo suas necessidades e aspirações.

Nossa experiência é a de uma colônia vil onde tudo saiu errado

Dizer que a internacionalização serve aos nossos interesses é uma mentira descomunal, propagandeada por pessoas que se colocam ostensivamente a serviço de interesses alienígenas, com teses absurdamente irresponsáveis, sem qualquer comprovação histórica, como as que defendem, neste sentido, os senhores Fernando Henrique Cardoso e José Serra. O que nós precisamos hoje é de um fechamento para organizarmos a nossa sociedade, impormos neste país uma ordem justa, compatível com as necessidades do nosso povo. Nós temos hoje cerca de 40 milhões de pessoas na miséria absoluta, um processo de genocídio pela fome. Isto é um crime histórico jamais ocorrido em nenhuma região do mundo, salvo nos casos de grandes invasões externas. Estamos, nesta situação, destruindo e inviabilizando o Brasil.

Princípios. A diferença que você enfoca é entre a internacionalização da economia de países já com uma independência e autonomia consolidadas e países como o Brasil, que ainda não possuem estas características?

Bautista Vidal. Não. Repare o seguinte. Não existe internacionalização nenhuma. Os Estados Unidos acabaram de aprovar uma lei comercial na qual se fecham profundamente. Isto porque, como eles estão perdendo na competição com o Japão e o Mercado Comum Europeu, estão tomando providências no sentido

É evidente que a internacionalização não serve ao Brasil do fechamento que falei. Uma superpotência que se fecha para se proteger é ridícula. De qualquer forma, é absolutamente vergonhosa esta afirmação desses intelectuais que estão defendendo precisamente o oposto. Um outro exemplo claro é o do Japão, país hermeticamente fechado. Abriu-se, mas muito pouco, ficando a média de participação do capital estrangeiro na indústria em torno de 4%. No Brasil oscila por volta de 90%. Abrir uma coisa que já está aberta, quando as nações consideradas abertas mantêm uma participação estrangeira em suas economias de não mais que 10%, é evidentemente um contra-senso.

O Brasil ostenta uma posição econômica respeitável no mundo. É o maior produtor de açúcar, o maior produtor de mandioca, o segundo maior produtor mundial de cacau, o maior produtor de laranja. É bem colocado em muitas coisas e apesar disto tem 40 milhões de sua população morrendo de fome. Isto é uma coisa inacreditável, uma vergonha histórica, resultado do domínio governamental de maus brasileiros que trabalham visando satisfazer exclusivamente os seus interesses associados a interesses multinacionais muito perversos. O caso dos chamados tigres do oriente, entre os quais se cita inclusive Singapura e Hong-Kong, é diverso. Veja só: Singapura e Hong-Kong não podem ser considerados países, são entrepostos comerciais. Vale tudo por ali, as corporações internacionais se quiserem fecham aqueles entrepostos em 24 horas. Não se pode subordinar uma nação continental, com mais de 100 milhões de habitantes, a tais contingências absurdas. Não faz sentido. O caso da Coréia é muito distinto, assemelha-se, em algumas coisas, ao do Japão. E o Japão é um dos países mais fechados do mundo, continua sendo desde a Segunda Guerra.

Depois que o Japão começou a ganhar dos EUA, da Alemanha e da França é que se abriu. Não vejo perigo nisto, mas é uma coisa precisamente contrária ao que estão propalando por aí pessoas irresponsáveis, que deveriam ter em mente pelo menos as lições decorrentes dos exemplos históricos. A internacionalização que vem sendo proposta vai nos levar à absoluta destruição.

Princípios. Historicamente você situou a dependência, mas quais os mecanismos, os termos em que ela se coloca hoje? Impuseram-se coisas inacreditáveis com o Tratado de B. Woods

Bautista Vidal. Eu analisei com maiores detalhes esses mecanismos no meu livro "De Estado servil a nação soberana — civilização solidária dos trópicos", lançado pela Editora Universidade de Brasília. Eles são o fundamento do modelo econômico que começou a se estabelecer no período de Juscelino Kubitschek e sobrevive até hoje, tendo sido exacerbado no período do regime militar. Os mesmos que implantaram este modelo na época de Juscelino, como Roberto Campos, Lucas Lopes e o Raul Fernandes — e especialmente o Roberto Campos —, continuaram depois e exacerbaram suas teorias.
É dramático que este modelo seja defendido por todas as teorias econômicas. Desde os estruturalistas da Cepal até os monetaristas. Isto me leva a concluir que as teorias econômicas que predominaram até hoje no Brasil (estruturalistas e monetaristas) defendem uma coisa extremamente perversa para os interesses brasileiros. Isto fica claro no principal mecanismo de dominação, que a meu ver é o tecnológico, complementado por um outro mecanismo muito perverso que é o do sistema financeiro internacional.

Vou começar por este último. A participação no sistema financeiro internacional foi uma imposição do Tratado de Breton Woods, que o próprio representante da Inglaterra, Maynard Keynes, interpretou com a seguinte indagação: "Fui para Breton Woods pensando encontrar com o mundo, me deparei com um tirano". É preciso que se diga que as propostas de Keynes foram todas relegadas a segundo plano. Ele propunha, por exemplo, a instituição de uma moeda de compensação internacional. No final, o próprio Keynes — tendo a Inglaterra ficado como segunda beneficiária do acordo — abriu mão de suas concepções e rendeu-se ao tirano. Assim, neste tratado impuseram-se coisas inacreditáveis, como o dólar na condição de moeda com curso internacional, coisa de uma arbitrariedade ilimitada.
A única possibilidade de controle disto consistia em que esta moeda tivesse uma referência, uma equivalência naquilo que Keynes chamava de relíquia bárbara, o ouro. Mas em 1971 Nixon rompeu unilateralmente o acordo, decretando que o dólar nada mais tinha a ver com o ouro. 0 dólar era o dólar e acabou. Uma nação, com sua moeda nacional, imprime papel pintado e expropria o mundo. Assim é o sistema financeiro.

Aí todo este instrumental, FMI, Banco Mundial, GATT, são organizações para defender este princípio injusto, bárbaro, violento, em que uma nação impõe as suas regras ao restante do mundo.
A concepção de hegemonia econômica, de capital, que está em vigor hoje é totalmente fundamentada no arbítrio. Não é fundamentada nem nas riquezas naturais nem no patrimônio físico das nações, nem no trabalho. É fundamentada exclusivamente num papel pintado que estabelece o arbítrio total. Este é um mecanismo tremendamente desfavorável para qualquer outra nação que queira se desenvolver. Nós não podemos negociar com nossos vizinhos — Uruguai, Argentina — se não for com a moeda de um outro país, o dólar.

Este sistema está se deteriorando dia a dia, resultou na montagem de uma dívida externa que não resiste a uma auditoria, é uma coisa muito séria e está levando a situações absurdas. As relações econômicas em nível internacional são constituídas em sua maior parte de papel pintado,

FMI, BIRD e GATT sustentam um sistema injusto e bárbaro
apenas uma pequena percentagem são trocas de mercadorias e serviços. É uma situação extrema, que evidentemente vai resultar numa grande tragédia. Até líderes capitalistas compreendem isto, como o ex-ministro do Tesouro britânico Lord Lever, que chamou explicitamente o sistema financeiro de um cassino, uma verdadeira orgia, que beneficia naturalmente os bancos internacionais, os interesses que eles representam.

Este é um lado. Do outro, nós temos a questão tecnológica, que é profundamente mistificada. As comunidades científicas trabalham a favor desta mistificação, por seus condicionamentos e também em função de interesses menores. A diferença que se estabelece, por exemplo, entre ciência e tecnologia é absolutamente equivocada, é uma coisa perversa até que em nenhuma outra época histórica fez tantos estragos. Agora se conseguiu fazer disto um mecanismo de subjugação dos povos e domínio de uns sobre outros. A questão tecnológica é totalmente distinta da questão científica. A ciência é conhecimento cultural, muitas vezes profundo, mas não necessariamente comprometido com a realidade dos povos, da sociedade. A tecnologia não. È algo vinculado à realidade dos povos. Tecnologia não é simplesmente ciência aplicada, é muito mais que isto. A tecnologia é, em 80 a 90%, um problema de natureza econômica, social e política, uma questão estratégica do desenvolvimento das nações.

Não existe isto que chamam de transferência de tecnologia. Existem grandes pacotes de decisões políticas que são transplantados dos países centrais para condicionar a produção nos países periféricos. A tecnologia nada mais é do que a agregação de uma grande quantidade de itens com um conteúdo técnico, mas principalmente com um conteúdo social e político. Veja o exemplo de um veículo simples como um Volkswagen desses 1.300 que não se produz mais no Brasil. São 30 mil itens, cada um deles vinculado aos interesses dos montadores, quer dizer, dos montadores de pacotes tecnológicos. Cada um desses itens se relaciona com a utilização e controle das matérias-primas e dos produtos intermediários, as especificações obedecem a interesses externos, dos países de origem das multinacionais. A agregação está condicionada à escassez ou abundância dos fatores de produção nos países de origem e associada aos interesses econômicos e políticos de dominação.
Então, o país que abre mão dessas decisões no campo tecnológico não pode ser um país viável. O próprio uso do trabalho nacional fica profundamente prejudicado se os pacotes tecnológicos vêm de outras regiões do – mundo. Aqui o que mais temos é abundância de mão-de-obra, enquanto, em sua maioria, as potências econômicas utilizam de forma intensa tecnologia não apropriada à absorção desta mão-de-obra, com automação excessiva. Assim, quando transferem seus pacotes ao Brasil forçam-nos a deixar de usar nossos fatores abundantes, como o trabalho, os recursos naturais, para utilizar coisas que nós não temos, como muito capital e automação.

Além disto, a seleção de matérias-primas e produtos intermediários, componentes, obedece às conveniências, à dependência, ao que, enfim, favorece os países elaboradores do pacote tecnológico. Por isto no Brasil é impossível ter, no momento, pacotes com especificações de um aço brasileiro, porque as indústrias alemãs não abrem mão de suas especificações, as japonesas idem e assim por diante. Seria uma loucura alguém pensar em consumir na Alemanha um aço que não obedecesse à norma alemã. Isto não passa pela cabeça de ninguém. Aqui, pelo contrário, não passa pela cabeça das autoridades a idéia de usar uma especificação brasileira, porque as forças internacionais são tão fortes que impõem uma especificação de acordo com seus países de origem.

0 resultado disto é absurdamente irracional. No Brasil somos forçados a produzir cerca de 1.500 tipos de aço, quando países como o Japão, a Alemanha, com indústrias extremamente sofisticadas, bastam-se com 300 tipos de aço, o que acarreta enorme racionalização e uma profunda economia de custos. Só aí, neste item, temos uma ineficiência que, a nível de indústria básica, chega a alcançar 30 a 40%. Agora, se nós acumularmos esta ineficiência à do produto básico e aos subseqüentes, intermediários ou finais, o índice chega a 80 e até 100%.

A ineficiência do modelo dependente é quase absoluta
Princípios. Que tipo de ineficiência?

Bautista Vidal. O seguinte. Uma coisa é uma indústria siderúrgica que produz 200 ou 300 tipos de aço. Outra é a que tem de se subordinar a produzir mais de mil tipos. Quando chega uma encomenda nova é todo aquele aparato, o forno, tem que fazer alteração de matéria-prima, é um desastre. Agora, esta gente que fala em modernização querendo aumentar a ineficiência e a irracionalidade ou é muito incompetente ou age de má fé em relação aos interesses legítimos do povo brasileiro. Nós precisamos é nos proteger para dar maior racionalidade à economia, viabilizar a redução de custos, ser mais competitivos. Isto não é viável quando a economia é comandada pelos interesses de transnacionais, que só por milagre poderiam ser iguais aos do povo brasileiro. É evidente que uma coisa são os interesses japoneses, outra o dos americanos, dos alemães etc. Entre eles os interesses já não são coincidentes, imagine todos eles coincidentes com os interesses brasileiros! É uma piada, uma grande piada. Então, esta internacionalização toma a conotação de imoralidade.

Princípios. Você fala também em seu livro sobre a exportação de minérios brasileiros a preços irrisórios, inclusive às vezes inferiores ao custo de produção. Como é isto?

Bautista Vidal. Nas relações de trocas com as potências econômicas o valor do que nós produzimos é cada vez menor, enquanto compramos mercadorias a preços cada vez maiores. Através deste processo perverso, da deterioração das relações de troca, como somos detentores de grandes reservas (detemos mais de 90% das reservas mundiais de nióbio, 52% das reservas de titânio, 48% de tântano, somos grandes produtores de minérios de ferro em Carajás, descobrimos enormes reservas de manganês, alumínio temos em grande quantidade), sofremos com a manipulação dos preços pelas potências e vendemos nossos produtos por preços insignificantes. Os produtos minerais ocupam uma posição inexpressiva no produto bruto mundial, de 0,76%, salvo engano. Mais ainda, nós chegamos a exportar tendo de pagar para exportar como no caso dos minérios de ferro, vendendo a preços abaixo do custo. Só a extração e o transporte do minério de ferro custam cerca de 20 dólares, nós exportamos a 12, 15 dólares.

Outro exemplo importante é o do quartzo, matéria-prima absolutamente indispensável na produção de componentes estratégicos para a eletrônica moderna, a informática e a telecomunicação. O Brasil detém praticamente 100% das reservas de quartzo do Planeta, o que nos dá um grande poder estratégico. Quando Severo Gomes era ministro da Indústria e Comércio, eu era secretário de Tecnologia Industrial. Em três meses, um curto período, nós proibimos a exportação de quartzo porque estávamos exportando a 40 centavos de dólar, o preço subiu para 8 dólares e chegou a 16 dólares. Nosso objetivo era introduzir os componentes intermediários e em vez de vender a 0,40 dólar passaríamos a vender por 80 a 200 dólares o quilo. Na verdade, nós exportamos a matéria-prima básica dos componentes sofisticados da eletrônica, da indústria espacial, da informática, produto absolutamente fundamental, exportamos a 40 centavos de dólar e importamos o produto final a 2 mil dólares, produto que nada mais é do que o quartzo ao qual foi adicionado tecnologia, evidenciando o papel absolutamente fundamental da tecnologia no mundo moderno.

Muito bem. As experiências que têm sido feitas para estabelecer uma competência nacional nesta área são sistematicamente repelidas pelos próprios órgãos que comandam o desenvolvimento tecnológico. A Secretaria de Tecnologia Industrial, uma exceção dentro da estrutura estatal, pois cuida do interesse nacional neste setor, acaba de ser destruída, uma estrutura que começou a ser criada em 1922, levou mais de 60 anos para se firmar, com um quadro técnico extremamente competente (o programa do álcool foi criado por esta secretaria, a competência na área de metalurgia também se deve a ela), a secretaria foi destruída por esta nova política industrial que dizem ter sido definida para desenvolver a tecnologia. Imagine a piada. A estrutura que acaba de ser destruída era semelhante à do Ministério da Indústria do Comércio Exterior do Japão, sem ser cópia, envolvia 43 órgãos extremamente competentes.

Princípios. Como foi isto?

Bautista Vidal. A secretaria foi desmontada, destruída fisicamente. São as forças de maus brasileiros associadas a interesses internacionais, ilegítimos. Foi uma violência, as pessoas foram demitidas numa violência inusitada, o Conselho Nacional de Normas Técnicas — destinado a racionalizar a produção industrial — há 3 anos não se reúne porque os ministros não permitem, foi desmontado, não mais existe. O Fundo Nacional de Tecnologia foi destruído. Um processo inusitado de violência para inviabilizar a regulação e racionalização da indústria nacional. Como se não bastassem 300 anos de história para mostrar que a abertura comercial é uma loucura, um absurdo, eles estão destruindo algumas das poucas coisas sérias que foram montadas neste país.

Princípios. No livro você fala no surgimento de um novo nacionalismo. Encontra-se aí uma saída para esta situação?

Bautista Vidal. A palavra nacionalismo é maliciosamente utilizada no Brasil, carregada com uma conotação pejorativa, quando expressa na verdade a defesa dos interesses legítimos do povo. Ora, uma nação que se volta contra seus próprios interesses, não é isto uma imoralidade? O nacionalismo é uma coisa que está vinculada aos interesses elementares de um país, é um princípio elementar de defesa de legítimos interesses, do bem-estar a que todos têm direito, do respeito aos valores nacionais de um povo, de sua cultura etc. Tudo o que é impiedosamente destruído com a tal internacionalização de uma maneira brutal, violenta.

Em minha opinião não há a menor dúvida de que existe uma forte tendência de apoiar esses interesses da nação. Tenho participado de debates em vários níveis, inclusive entre empresários, militares. Posso observar que existe uma consciência muito séria da necessidade de união do povo em defesa dos interesses nacionais e até há certa urgência porque as coisas estão como que abortando. Nós não vamos suportar sobreviver durante mais uma década nesta situação que estamos vivendo hoje. Nenhuma nação do mundo pode suportar isto, o que estão chamando de internacionalização não passa da doação vergonhosa de uma parte substancial do nosso patrimônio, construído com décadas de trabalho. Trata-se de uma roubalheira descomunal, que revolta a nação e não pode continuar.

Princípios. As disposições sobre a Ordem Econômica aprovadas na Constituinte — em particular o conceito de empresa brasileira de capital nacional — podem mudar este quadro?

Bautista Vidal. Algumas foram positivas, mas no conjunto estão muito fracas, não te parece? Estão aquém do que deveria ser. O que deveria ser definido é empresa estrangeira, os seus limites de operação. Tínhamos que definir também o controle sobre a tecnologia. Mas veja nossa posição defensista, somos forçados a aceitar isto e até considerar uma vitória, porque na verdade poderia ter sido muito pior. Infelizmente, os meios de comunicação no Brasil funcionam contra o povo, não permitem sua conscientização, mas nós precisamos explicar a atual situação custe o que custar, para que os brasileiros participem na defesa dos seus interesses e dos interesses dos seus filhos, para que tenham acesso à informação e à verdade, conheçam as conseqüências das medidas que são tomadas pelo governo e participem da vida política.

Precisamos recompor a situação, mudá-la a nosso favor, a favor do povo. 0 quadro é dramático. Veja o que ocorre no setor energético. A nação brasileira detém 40% do trópico úmido e, conseqüentemente, as grandes reservas energéticas do Planeta. Metade das terras não agricultáveis do Brasil dariam para construir um potencial energético com o dobro da reserva energética da Arábia Saudita. Para a produção do óleo vegetal, se usássemos a faixa oriental da Amazônia — que é muito apropriada —, nós poderíamos produzir 6 milhões de barris-dia de óleo diesel vegetal, que é muito mais adequado às nossas necessidades. Isto corresponde a mais do dobro da produção da Arábia Saudita — a grande produtora de energia proveniente do petróleo — o que dá uma idéia do nosso potencial. Apesar disto, continuamos importando petróleo. Isto em função do modelo econômico dependente, montado conforme interesses alienígenas. O Brasil teria soluções espetaculares no campo energético, ao contrário de nações como Japão e Alemanha, que aí não têm saída. O modelo dependente é que nos torna um país inviável.

EDIÇÃO 16, DEZEMBRO, 1988, PÁGINAS 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35