O anúncio, já naquela ocasião, soava mal. Ideologias não costumam se submeter a liberações e desejos. Não representam nada de mal, não merecem tratamento pejorativo e nada indica que devam (ou possam) ser eliminadas.

De acordo com o seu modo de viver, trabalhar, produzir, os grupos sociais desenvolvem idéias, opiniões, teorias, doutrinas que, em conjunto, sistematizadas, constituem suas ideologias. A ideologia é, sobretudo, a consciência que tal ou qual grupo social tem da realidade, sem a qual ele não é capaz de defender seus interesses na sociedade.

Que ideologia, portanto, Collor pretende liquidar e o que significa a dita "inserção" mundial que promete em seu lugar?

Hoje, depois dos cabalísticos 100 dias de governo, mesmo os mais descamisados, digo, desavisados, percebem o significado daquela mensagem:

Collor faz tudo para demitir 360 mil funcionários públicos. Desrespeitando inclusive a Constituição, tentou reduzir os salários dos que não podem ser sumariamente colocados na rua. Coincidentemente, autoridades do governo norte-americano recomendam que o Brasil enxugue sua máquina administrativa, para sanear o déficit público.

Ao mesmo tempo em que o super-herói presidente trata de liquidar a CSN de Volta Redonda e privatizar a Usiminas, uma das estatais mais rentáveis e eficientes, Robert Mosbacher, secretário do Comércio dos EUA, manifesta interesse em que empresas estrangeiras assumam logo o controle das estatais brasileiras, em particular as do ramo siderúrgico, petroquímico e de fertilizantes.

Vozes acima do Rio Grande sugerem que o ingresso na modernidade passa pela liberação das importações e pelo fim das "intoleráveis" reservas de mercado. Imediatamente a ministra Zélia proclama uma "revolução no comércio exterior e na industrialização": unilateralmente, põe fim a todas as barreiras de importação, quebra os mecanismos de reserva de mercado, libera a remessa de lucros para o exterior.

Assim, uma soma de 1,8 bilhão de dólares, que deveria ficar retida até dezembro de 1991, como a poupança dos descamisados, pode, imediatamente, ser embolsada pelas multinacionais.
Tanta coincidência faz desconfiar de que não se trata de acabar com as ideologias e sim de uma desavergonhada defesa da ideologia de subordinação do país aos interesses do capital internacional – à custa da maioria descamisada.

Apesar de seu jeitinho modernoso, o pregoeiro da submissão não teve nem criatividade. No passado, D. João VI apresentou a "abertura dos Portos" como um fantástico instrumento do progresso. E está presente na memória nacional a filosofia de Juracy Magalhães: "o que é bom para os EUA é bom para o Brasil".

A diferença é que, ao invés de passear em caravela, o atual inovador pilota moto,"ninja".

EDIÇÃO 18, JUN/JUL/AGO, 1990, PÁGINAS 3