O Brasil tem uma tradição forte de liberalismo na exploração econômica dos seres vivos, animais e vegetais. A agricultura brasileira gozou até hoje de total liberdade para utilização dos animais e vegetais de seu interesse econômico. Nunca existiu qualquer barreira de tipo patente, direito autoral, propriedade intelectual, direito do melhorista que dificultasse criadores, silvicultores, pecuaristas e agricultores brasileiros a utilizarem raças ou linhagens melhoradas de qualquer animal ou variedade de qualquer espécie vegetal.

O Brasil é um país pobre em espécies nativas de vegetais e animais utilizados comercialmente. Poucas são as criadas comercialmente de origem brasileira, podendo ser mencionadas mandioca, castanha, amendoim, milho e algodão. Graças à total liberdade na utilização dos seres vivos, a agricultura brasileira foi sendo enriquecida desde os tempos coloniais até hoje, com a introdução de raças animais e variedades vegetais de outros países. Foram introduzidos café, cana-de-açúcar, trigo, arroz, feijão, soja, sorgo, mamona, tomate, alface, cebola, laranja, manga, mamão, abacate, uva, pêssego, maçã, pêra, caqui, pinus, capim colonião, braquiarias, e quase todos os animais, como galinha, peru, vaca, porco, ovelha, cabra, jumento, búfalo, cavalo, abelha, bicho-da-seda e tantas outras espécies. Mesmo o milho, que é nativo do Brasil, foi melhorado com variedades mais produtivas, vindas do México e Colômbia, e o algodão começou a ser cultivado com variedades americanas.

Formaram-se no Brasil inúmeras associações de criadores desses animais e cooperativas produtoras desses vegetais com liberdade para produzir e comercializar reprodutores e sementes. Pode-se mencionar as associações de criadores de gado, de cavalos, búfalos, cabras, coelhos, cães, ovelhas e cooperativas de plantadores de cana, café, soja e tantas outras. Inicialmente, os brasileiros utilizaram somente as raças e variedades introduzidas, mas, em inúmeros casos, cruzamentos de animais e de plantas foram feitos no Brasil com posterior seleção de exemplares melhor adaptados às condições brasileiras, surgindo muitas raças e linhagens melhoradas de animais e variedades vegetais que substituíram com vantagem as estrangeiras, constituindo uma tecnologia nacional digna da maior admiração e motivo de orgulho para o Brasil. Pode-se lembrar a raça mangalarga de cavalos, o gado girolanda, canchin, o cão fila, as inúmeras variedades de café, algodão, arroz, soja, trigo e frutas em geral. Em muitos casos, os animais e variedades estrangeiras continuam sendo criados e cultivados até hoje, com maior liberdade, bastando citar o cavalo árabe, o gado zebu, as vacas holandesas e gersey e variedades de plantas como a uva cabernet, ainda uma das mais cultivadas para fabricação de vinho tinto de boa qualidade, e variedades de soja como Davis e Bragg. Graças à plena liberdade de uso da tecnologia estrangeira, criou-se na agricultura uma tecnologia brasileira, desenvolvida por brasileiros. Nunca pagamos royalties para comer churrasco, beber café ou tomar leite. Sempre fomos livres para explorar os animais e plantas.

O Brasil não se isolou pelo fato de não acatar as patentes de seres vivos

Essa liberdade foi nociva ao Brasil? Não, ao contrário, foi muito benéfica. Houve atraso tecnológico no setor devido à falta de patentes? Não. As raças de animais de alta qualidade e as variedades de plantas com alto potencial de produção utilizadas no Brasil demonstram que não há necessidade de patentes para haver desenvolvimento tecnológico. O Brasil se isolou do mundo por não reconhecer patentes de seres vivos? Não, ao contrário, a agricultura brasileira mantém bom intercâmbio com todos os países. É motivo de vergonha para os brasileiros terem usado essa tecnologia estrangeira sem pagamento de royalties? Não. Nossas associações de criadores do cavalo árabe, do gado nelore e gir da Índia, da vaca holandesa, ou os cultivadores da uva cabernet não tem nenhum motivo para vergonha.

Ao contrário, é motivo de orgulho ter absorvido e até melhorado a tecnologia estrangeira. Houve efetiva transferência da tecnologia de outros países para o Brasil no setor de sementes, mudas e reprodutores, com grande benefício para o povo brasileiro, sem formação de oligopólios que exigem a intervenção do governo. O modelo de liberdade plena coma ausência de patentes demonstrou, em quatrocentos anos, no Brasil, que funcionou muito bem. Em time que está ganhando não se mexe, diz o adágio popular.

Bush faz pressão em busca de royalties para as multinacionais

Aproveitando-se, todavia, do projeto de lei agrícola já aprovado pelo Senado e que tramita pela Câmara, o deputado Rosa Prata introduziu uma emenda – de n° 21 – que estabelece as patentes para animais e plantas e retira dos brasileiros a liberdade de uso dos seres vivos. Se aprovada essa emenda, as associações de criadores, no futuro, não gozarão de tanta liberdade. O brasileiro, no futuro, terá de pagar royalties desde o amanhecer até se recolher para dormir. Ao tomar seu café matinal, pagará royalties pelo café, pelo açúcar que o adoça, pelo pão do trigo, pelo leite de vaca e pela manteiga, sua derivada. No almoço, a dona-de-casa não poderá mais fritar seu bife sem pagar royalties, que serão pagos também pelo feijão, arroz, verduras e pelo suco de frutas. No aperitivo da tarde royalties pela cachaça que vem da cana-de-açúcar, pela vodka que vem dos cereais, pelo limão da caipirinha, pelo vinho da uva, pela porção de fritas da batata e pelo queijo picado que é feito do leite da vaca. No jantar, novos royalties. Ao ir dormir, royalties pela madeira da cama, pelo algodão dos lençóis e pela lã dos cobertores. Para onde irá essa fortuna de royalties extraída de milhões de brasileiros?

Irá para os poucos grupos econômicos, em especial para as multinacionais, que inspiraram a emenda Rosa Prata, tornando os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. Irá boa parte para o povo americano, justificando a enorme pressão que o senhor Bush está fazendo a favor das patentes, tornando os americanos mais ricos e os brasileiros mais pobres.
A emenda Rosa Prata é um triste fato histórico. Ela servirá de teste para avaliar se os partidos liberais do Brasil são de fato favoráveis à liberdade ou representam apenas os interesses dos grandes grupos econômicos.

* Doutor em agronomia, pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas e membro do Conselho da Associação de Agricultura Orgânica.
** Publicado na revista Balde Branco, julho-1990.

O MUNDO SEM PATENTES SERÁ MAIS JUSTO***

O direito de patente é justo? É justo que nações recém-emergidas respeitem patentes de nações ricas que as escravizaram? E justo que uma companhia brasileira seja proibida de fabricar um computador porque há uma patente sobre ele? Que países serão beneficiados com a patente dos genes? O direito embasado numa injustiça torna o mundo mais injusto.

Se o homem fizesse a seguinte proposta ao macaco: "Tudo o que você descobrir eu respeitarei como sua propriedade intelectual. Você terá direito exclusivo de produção e eu terei de pagar royalties pelo uso do invento. Mas de tudo que eu inventar também cobrarei royalties" – esse acordo seria justo? Quem seria o beneficiado? O homem ou o macaco? Da mesma forma, quando países cujas universidades têm mais de duzentos anos fazem acordo de patentes com o Brasil, cuja universidade mais velha tem pouco mais de cinquenta anos, o grande prejudicado é o povo brasileiro. Para o acordo ser justo, as partes deveriam ter igual competitividade. Há outro acordo que pode ser feito, benéfico aos povos mais fracos. "Tudo que eu inventar, você pode usar; tudo que você inventar, eu usarei”.

Enquanto perdurarem os acordos de patentes, os povos ricos ficarão mais ricos e os demais, mais pobres; os grupos econômicos dominantes ficarão mais fortes, e os mais fracos serão eliminados. Continuará a concentração de riqueza e poder, com ou sem reforma agrária.

O domínio territorial deixou de ser necessário. O feudo hoje é tecnológico. O mundo se dividiu entre nações que têm tecnologia e nações inquilinas dessa tecnologia. O fosso tecnológico está crescendo, e a pressão dos mais ricos para defender e ampliar o sistema de patentes, que lhes é benéfico, é cada vez mais impiedosa. Com a Lei Agrícola, a direita se organiza para implantar as patentes sobre genes das sementes.

Ver um computador e conseguir fabricar outro semelhante não é pirataria tecnológica. Pirataria seria invadir uma fábrica e roubar seus segredos. O garoto que vê uma pipa e consegue fazer outra pode e deve empiná-la com orgulho. Aprender deve ser direito que precede o de inventar. Privilegiar o inventor, inibindo o aprendizado, é condenar os povos pobres à eterna miséria.

Complemento essencial para dominação tecnológica é a "liberdade de iniciativa" ou "livre empresa". Essa liberdade é uma farsa. Os mercados e iniciativas estão previamente dominados pelo capital, tecnologia e sistema de patentes. É um jogo de cartas marcadas. Não há, de fato, liberdade de mercado e livre iniciativa. Os políticos e partidos de direita, que se dizem defensores da liberdade de iniciativa, representam os interesses dos dominadores do mercado. São sempre os primeiros a endossar o sistema de patentes e interesses das grandes empresas.

Trecho de artigo publicado na revista Guia Rural setembro de 1989.

EDIÇÃO 19, NOVEMBRO, 1990, PÁGINAS 66, 67, 68, 69