Em 1876, quando escreveu a sua obra Sobre o Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem, Engels demonstrava mais uma vez que era um homem à frente de seu tempo. Além de defender uma tese até hoje polêmica e combatida por muitos, ele conseguiu traduzir os parcos dados disponíveis em uma análise sobre a evolução das espécies que, até hoje, em essência, se mostra correta.

Pretendemos aqui atualizar os leitores sobre as recentes descobertas na área da paleoantropologia referentes à evolução humana, assim como fazer um breve relato dos principais problemas que envolveram e, em certo sentido, ainda envolvem as pesquisas na área. Levantaremos também as principais questões que estão sendo debatidas hoje pelos cientistas, e importantes para quem se interessa em saber mais sobre as nossas origens.

Evidenciaremos a importância de Engels, não apenas como um evolucionista, mas principalmente como defensor do método de análise da realidade, formulado por ele e por Marx; o Materialismo Dialético e Histórico. Através dos achados arqueológicos e das conclusões a que os cientistas estão chegando sobre a nossa evolução, fica patente a dialética da natureza.

A teoria evolucionista, considerada a mais revolucionária teoria da história da biologia, é até hoje vista por muitos setores da sociedade como pura heresia. Por isso, Charles Darwin demorou vinte anos para publicá-la em seu livro A Origem das Espécies (1859). Marx e Engels foram dos primeiros a reconhecer os seus méritos, tanto é que em 1869, Marx escreve a Engels: "Embora desenvolvido no rústico estilo inglês, este é o livro que contém a base, em história natural, para nossa tese" (Gould, 1987). Marx quis dedicar o volume II de O Capital a Darwin, mas este rejeitou. Existe, porém, em sua biblioteca em Down House, um exemplar do Volume I com dedicatória escrita por Marx, que se assina um "admirador sincero".

Desde Marx, Engels e Darwin até hoje, muito já se avançou na descoberta de elementos em prospecções arqueológicas e outros estudos sobre a evolução humana. Mesmo assim, ainda existem aqueles que preferem desprezar a ciência, permanecendo na ignorância, apegados a teorias criacionistas (1). Mais de cem anos passados, o estudo da evolução ainda não faz parte dos currículos escolares, chegando mesmo a ser proibida a sua difusão em alguns lugares. O estado do Texas, nos EUA, somente teve revogada a lei proibitiva do ensino da teoria da evolução nas escolas de 1º grau em novembro de 1990 (2).

Para estes estudos, os últimos 20 anos foram muito importantes. Estes anos foram peculiares em achados, tendo sido algumas vezes vertiginoso o ritmo das descobertas, o que exigiu o repensar da pré-história humana e, por isso, praticamente todas as páginas do nosso passado foram reescritas.
Após essas duas décadas de notáveis descobertas no campo da paleoantropologia, nossas origens como espécie, afirma Leakey, podem, pela primeira vez, ser apresentadas com base em evidências científicas. Ele cita o geneticista russo Theodosius Dobzhansky, que fez o seguinte comentário: "Em seu orgulho, o homem pretende se tornar um semideus. Mas, ele ainda é, e provavelmente permanecerá em boa parte, uma espécie biológica. Seu passado, todos os seus antecedentes são biológicos. Para compreender a si mesmo, ele precisa saber de onde vem e o que guiou o seu caminho. Para planejar seu futuro, como indivíduo e mais ainda como espécie, ele precisa conhecer suas potencialidades e limitações".

“O semideus não pode livrar-se de sua raiz biológica. Para entender-se precisa localizá-la”.

É partindo desta preocupação central que estudiosos desde Darwin até hoje têm direcionado seus questionamentos. Richard Leakey resume o pensamento geral com as seguintes questões: como os mecanismos básicos da evolução operaram nos primeiros estágios da emergência da humanidade; como viviam nossos ancestrais; qual era seu relacionamento ecológico com seus parentes evolutivos próximos; e que traços comportamentais separavam esses hominídeos, que eventualmente se tornaram plenamente humanos, dos que desapareceram?

Até aqui, muitos preconceitos, crenças, e dificuldades metodológicas dificultaram a real interpretação dos dados encontrados.

A mais simples dessas concepções e que influencia o conhecimento sobre nossa evolução é a da espécie única. Eldredge e Tattersal dizem que "os adeptos da espécie única rastrearam sua ascendência intelectual até o artigo de Schwalbe de 1906, onde o sábio havia sugerido que o homem moderno provém do homem de Java, através dos neandertalenses. Sua fundamentação lógica residia na suposição de que a aquisição da cultura material pelos hominidas primitivos havia ampliado de tal maneira seu nicho ecológico que era impossível conceber a existência de duas criaturas fabricantes de utensílios. O homem moderno está só no mundo; por extensão, também estavam seus ancestrais.

Contudo, talvez a influência mais fundamental subjacente à posição em favor da espécie única tenha sido a adesão de seus proponentes a uma forma altamente literal do grande mito evolutivo da mudança lenta, gradual e progressiva" (p. 107).

Vale ressaltar que este tipo de visão sobre a espécie única, mesmo sendo linear e metafísico, era próprio de cientistas, pois os adeptos do criacionismo, além de rejeitarem a teoria da evolução vêem o homem como uma criação de Deus, à sua imagem e semelhança, portanto, jamais poderia haver mais de um ser que possuísse, por menor que fosse, algumas das suas características.

David Pilbeam, também a respeito destas dificuldades metodológicas, descreve como as idéias de cada período exerceram substancial influência nas interpretações do passado: "Na época de Darwin, quando a evolução e a vida eram vistas como uma batalha, ele enfatizou o uso do instrumento e armas. Nas primeiras décadas de nosso século – o apogeu do otimismo eduardiano – o cérebro, a inteligência eram apresentados como responsáveis por nos termos tornado o que somos. A obsessão com o cérebro foi precisamente a causa de a grande fraude de Piltdown, um crânio de tamanho moderno associado a um maxilar de macaco, ter sido aceita como genuína com tanta presteza (3). Nos anos 1940, com o avanço da tecnologia, o homem fazedor de instrumentos ocupou o palco. Os anos da guerra deixaram sua marca, com a origem do homem sendo ligada a um ancestral tipo um macaco-assassino. E certamente não é um acidente que o florescimento dos meios de comunicação de massa nos anos 1960 coincide com o turno da linguagem como enigma do avanço humano. Hoje, com o crescente vigor dos movimentos feministas, o papel do macho como "Homem – o caçador", está sendo substituído por um quadro de grupos cooperativos de caçadores-coletores nos quais as mulheres desempenham papel principal.

Nota-se que durante todos estes anos faltou aos cientistas uma visão de mundo mais abrangente, despida de preconceitos, e um método de análise da realidade que pudesse levar em conta os vários aspectos desta realidade, mesmo que contraditórios. Só recentemente estão fazendo análises mais abrangentes, obrigados pelas próprias evidências contidas no seu material de estudo. O antropólogo Eric Wolf diz: "A estrutura teórica erguida pelos evolucionistas do século XIX foi derrubada pelo criticismo difusionista, mas as ruínas desse velho edifício não foram utilizadas para nova construção teórica. Os difusionistas começaram toda uma nova construção, desprezando problemas e respostas de seus predecessores, para acabar sofrendo sorte semelhante, às mãos dos funcionalistas… Em passado recente, os antropologistas americanos voltaram a se interessar pelos problemas colocados pelos antigos evolucionistas. Esse interesse é, por vezes, eclético, mas tem havido também um esforço no sentido de tratar do assunto de maneira integral, na qual as contribuições teóricas do passado formariam nova e promissora síntese" (p. 78).

Um outro mito que perdurou até pouco tempo era o de que as histórias dos seres vivos dependem, essencialmente, da descoberta de fósseis. Eldredge e Tattersal (1984) rebatem esse mito e dizem que se assim realmente fosse, poder-se-ia esperar, confiantemente, que à medida que fossem sendo encontrados mais fósseis hominídeos, mais clara se tornaria a história da evolução humana. E, no entanto, praticamente o oposto tem ocorrido. “Se a história de uma linguagem em evolução fosse a de uma mudança lenta e regular, cada geração poderia ser encarada como um elo numa cadeia que, pelo menos em teoria, poderia ser inteiramente documentada pelas provas fósseis. Como assinalamos, entretanto, este esquema não leva em conta a diversificação da vida, que sabemos ter ocorrido. E, se essa diversificação se deu através da multiplicação das espécies pela especiação**, a história fóssil da vida é algo que não pode ser diretamente descoberta. Em vez disso, o que temos é uma diversidade de espécies no tempo e no espaço, cujas inter-relações têm de ser analisadas” (p. 112).

O trabalho dos cientistas seria grandemente simplificado se eles pudessem apenas traçar linhas num gráfico temporal para unir os fósseis mais antigos com os mais recentes, numa sequência progressiva, mas isso com certeza não levaria a um conhecimento real das nossas origens. Recentemente, vários movimentos novos de pesquisas começaram a ampliar as perspectivas de investigação evolucionista. Um desses movimentos envolve investigações sobre o comportamento e a ecologia dos primatas vivos e de outros mamíferos. Os resultados dessas observações podem ser comparados com dados quantitativos obtidos em estudos de sociedades humanas que ainda vivem da caça e coleta. Outro movimento novo, importante, envolve o estudo das circunstâncias ecológicas que cercaram os desenvolvimentos evolucionários humanos. Investigações desse tipo são possíveis porque as rochas preservaram, além dos fósseis hominidas, um registro ordenado dos ambientes habitados por esses proto-hominídeos.

“Instrumentos são registros do comportamento e da organização social”.

Este trabalho é facilitado também pelo fato de os ancestrais do homem moderno se tornarem fabricantes e usuários de instrumentos. Estes artefatos formam um tipo de registro que revela aspectos do comportamento, que complementa o registro anatômico fornecido pelos ossos fossilizados dos próprios fabricantes dos instrumentos. Segundo Isaac, hoje estuda-se cada vez mais o contexto dos artefatos: por exemplo, o padrão de distribuição dos instrumentos descartados e sua associação com vários tipos de restos alimentares. Isto fornece pistas únicas sobre as circunstâncias ecológicas desses hominídeos, e sobre sua organização sócio-econômica.

Com estas pesquisas já é possível fazer algumas suposições e principalmente perguntas sobre o estilo de vida e o caminho da hominização.

Quando foi mesmo que um nosso grupo ancestral se separou das linhas que conduziram aos símios modernos ou pongídeos (macacos) e iniciou o que poderíamos chamar de espaço de especialização hominida? Ou, como diz Engels, quando se inciou nossa transformação de macaco em homem?

O Homem moderno (Homo sapiens sapiens) distribuiu-se amplamente pelo Velho Mundo apenas nos últimos 40 a 50 mil anos atrás. Dizemos "apenas" porque isto não representa mais que uma fração de tempo desde que os nossos primeiros ancestrais se diferenciaram dos pongídeos, o que é provável que tenha ocorrido, pelo menos, há 10 milhões de anos, ou talvez, há 14 ou 15 milhões (Pilbeam).

Recentemente esta idéia de que a divergência inicial tivesse ocorrido há cerca de 15 milhões de anos vem sendo questionada e substituída por uma estimativa de no máximo 5 milhões de anos, baseados em estudos bioquímicos. A comparação do DNA humano com o do chimpanzé revela uma identidade da ordem de 98% (Mckean, 1983), que é o que justifica a colocação de ambos no mesmo gênero em termos zoológicos (Bussab, 1989).

Para quem se espanta com este tipo de parentesco é bom lembrar que a vida na Terra surgiu provavelmente há cerca de 3,5 bilhões de anos. Os primeiros organismos vivos eram pequenos, simples células, muito semelhantes às bactérias, e que permaneceram imutáveis por milhões de anos. Depois é que animais maiores e mais complexos começaram a surgir, como larvas e grumos gelatinosos nos mares. Foi só por volta de 400 milhões de anos atrás que a terra seca foi colonizada e que começaram a se diversificar as espécies, a maioria das quais já se extinguiu. Portanto, não só nós e os macacos, mas todos os animais existentes hoje no planeta, descendemos, em última instância, de algum desses pequenos seres aquáticos.

David Pilbeam aponta como o mais provável candidato a primeiro hominídeo, uma criatura semelhante ao antropóide chamada Ramapithecus, cujos últimos registros datam de cerca de 8 milhões de anos. A principal razão para colocá-lo nesta posição é que os seus dentes são muito semelhantes aos dos hominidas posteriores. Porém, não se tem certeza sobre esta ligação, pois há um "vazio fóssil" de cerca de 4 milhões de anos, nos quais muitas outras coisas podem ter ocorrido. O período que compreende os últimos 4 milhões de anos é até agora o mais conhecido pelos cientistas.

Entre 4 e 3 milhões de anos atrás verifica-se no Leste da África o registro de 1 único hominida, chamado de Australopithecus afarensis, que possuía muitos traços semelhantes aos pongídeos: arcadas paralelas e caninos proeminentes, altura de 90 a 135 cm e forte dimorfismo sexua1 (4). Tinha ainda um cérebro pequeno, porém a organização dos lobos cerebrais é mais do tipo humano (lobos temporais mais desenvolvidos) (Bussab, 1989). Achados recentes em Hadar e as surpreendentes pegadas de Laetoli em Olduvais (5) (Leakey, 1981) apontam um traço bastante moderno: o bipedalismo plenamente desenvolvido.

Bussab (1989) levanta que a mudança para o bipedalismo, uma forma raríssima de locomoção, requereu modificações profundas anatômicas e fisiológicas, e que tem subprodutos complicados: impôs, por exemplo, uma limitação para a abertura pélvica feminina e para o tamanho dos recém-nascidos. Por isso, nenhuma das teorias existentes relaciona o surgimento do bipedalismo como uma adaptação para locomoção terrestre. Tudo indica que o bipedalismo deve ser associado com a necessidade de libertação das mãos, em função do "carregar" e/ou usar instrumentos e/ou caçar, ou ainda ficar mais alto nas savanas. Provavelmente tudo isto junto.

Os dados existentes indicam que a partir do Australopithecus afarensis evoluíram duas linhagens de hominidas independentes: o Australopithecus africanus (macaco do sul da África) e o Australopithecus robustus (robusto macaco do sul da África).

Ao que tudo indica, a linhagem hominida evoluiu com características diversas. Entre 2 e 1,6 milhões de anos, contemporâneos ao Australopithecus robustus viveram o Australopithecus graceis e o Homo habilis. Este último tinha uma dentição menor, uma capacidade craniana mais pronunciada – 700 cc – e forte associação com instrumentos de pedra. É a primeira vez que o registro fóssil revela este tipo de uso, embora seja possível que outros tipos de materiais perecíveis tenham sido usados antes. Para Leakey, o Homo habilis pode ter desempenhado um papel-chave no desenrolar do drama das origens da humanidade, e é sem dúvida o primeiro ser que pode ser considerado Homo.

O Australopithecus africanus e o Australopithecus robustus foram triunfantes durante alguns milhões de anos e depois se extinguiram. Só a linha Homo continuou. Por que os Australopithecus se extinguiram não sabemos. Leakey (1981) acha possível que seus estilos de vida, apesar de diferentes dos do Homo, foram suficientemente semelhantes para que se estabelecesse alguma competição, que se intensificou à medida que o Homo se tornou cada vez mais bem sucedido. Entretanto, ele levanta que a competição poderia ter vindo de outra direção: dos babuínos. Também é possível que as duas competições tenham se somado. Porém, o que se sabe é que a nova ordem econômica dos primeiros hominidas separou-os de seus primos símios, não tanto pelo que comiam, mas pela maneira como se alimentavam. Certamente, os primeiros hominídeos incluíam mais carne em sua dieta do que seus parentes não-hominídeos, mas esta diferença era meramente em grau. A ruptura significativa foi a estratégia de coletar alimentos para serem comidos mais tarde, e o seu consumo dentro de uma rede social, já bem desenvolvida nos primatas superiores, e que foi intensificada. Esta tese, formulada por Glynn Isaac, inclui como elemento essencial à divisão de trabalho entre homens e mulheres.

É importante verificar aqui como essas novas conclusões dos cientistas de hoje vão referendar a tese de Engels, pois não se trata mais de achar que foi a fabricação de instrumentos, ou a inteligência, ou qualquer outro elemento isolado, que permitiu a hominização, mas todos eles em conjunto, principalmente partindo-se da crença na existência de uma organização social superior. Trabalho, tal qual definiu Marx, é essencialmente uma atividade social que produz bens que possuam valor de uso, portanto, não pode ser comparado com coleta, com consumo imediato, como fazem os pongídeos, mesmo que inclua algum tipo de instrumento.

Após o Homo habilis, por volta de 1,5 milhões de anos atrás, surge o Homo erectus, que permanece até há aproximadamente 300 mil anos, período em que emerge o Homo sapiens.
Os ancestrais desconhecidos do Homo erectus (não se tem evidências de que tenha sido o Homo habilis), devem ter sido seres razoavelmente inteligentes, pois seus cérebros eram quase duas vezes maiores do que o dos Australopithecus.

O que mais chama a atenção a respeito do Homo erectus não é o desenvolvimento dos novos traços anatômicos que ele traz, mas as mudanças comportamentais; como a do desenvolvimento da partilha de alimentos, do modo de vida caçador-coletor e de uma inteligência mais aguçada. O Homo erectus se dispersou por territórios onde nenhum hominida avançado vivera antes. Há cerca de 1 milhão ou mais de anos, alguns grupos desses hominídeos mudaram-se para a Ásia e para algumas regiões da Europa Oriental. Com este movimento, nossos ancestrais deixaram de ser criaturas exclusivamente tropicais, e aprenderam a competir em condições de igualdade com a flutuação de disponibilidade de alimentos que acompanha a mudança de estações nas regiões temperadas (Leakey, 1981).

Há um fator biológico a respeito do qual podemos estar seguros: aquelas populações de homo erectus que migraram para longe dos trópicos não tinham mais pelos e sua pele era de cor escura.

O principal marco cultural do Homo erectus é a tecnologia de artefato achuelense (técnica de produção de instrumentos em "pedra lascada" principalmente machados-de-mão), e foi na China, há 650 mil anos, que apareceram os primeiros indícios da domesticação do fogo. É nesse período também que surgem as primeiras evidências de manifestações rituais no registro fóssil. No período que compreende, entre aproximadamente 100 mil anos até 54 mil anos atrás, existiu um espécime que é certamente de Homo sapiens, mas com algumas características primitivas. É o Homem de Neanderthal ou Homo sapiens neandertalense.

Os Neandertais tinham uma capacidade craniana igual a nossa, variando de 1000 a 2000 cc, e uma compleição mais robusta e musculatura mais poderosa. Possuíam alto grau de habilidade tecnológica e provavelmente compreendiam muito bem o mundo ao seu redor. Leakey acha que sem uma apurada sensibilidade em relação aos possíveis recursos do meio ambiente, combinada com uma consumada habilidade para explorá-la, certamente teria sido impossível para os Neandertais conquistar uma tal diversidade ambiental. Eles se expandiram pelo Oeste da Europa, parte do Oriente Próximo e pelo Oeste da Ásia, ou seja, mudaram-se para áreas do Globo onde nenhum hominídeo se aventurara anteriormente e isto numa época em que a intensa glaciação tornava a vida naquelas regiões um enorme desafio.

Uma nova forma de tecnologia lítica (de pedra) está intimamente identificada com os Neandertais – a chamada indústria mousteriana, que representa um grande avanço em relação a sua predecessora, a achuliense.

Embora sejam conhecidos como os homens das cavernas, foram inventivos na construção de abrigos utilizando ossos de mamute como sustentação, bem como construíam fogueiras. Há indícios de que desenvolviam rituais complexos, como sepultamentos com flores e oferendas típicas. Também existem indícios do uso de plantas medicinais e de uma amputação bem sucedida. Cuidavam dos velhos e dos doentes, inclusive pessoas com deficiências físicas (Leakey, 1981, Bussab, 1989).

“35 mil anos atrás diferentes hominidas conviveram e pereceram no curso da história”.

Embora tenha aparecido gradativamente no registro fóssil, o Homo sapiens sapiens neandertalense teve um desaparecimento abrupto: no Leste há 40 mil anos e na Europa, há 35 mil. Foram substituídos pelo chamado Homem de Cro-Magnon, não tendo sido encontrados sinais de violência para esta transição. Na verdade não se conhece a causa do seu desaparecimento. Muitas hipóteses são levantadas e associadas a vantagens tecnológicas do Homo sapiens sapiens, a uma possível ausência da fala, as desvantagens do tempo de gestação (11 meses) etc (Bussab, 1989). É importante destacar que todos os estudos recentes demonstram que os homens modernos não evoluíram a partir dos Neandertais. Provavelmente, alguma outra população de Homo primitiva deu origem ao Homo sapiens sapiens. Mas qual? E como?

O que se sabe é que por volta de 35 mil anos atrás diferentes hominidas conviveram e alguns destes parecem não ter contribuído para a constituição genética atual.

Achados como características modernas desse período, principalmente na África, parecem indicar ter sido lá o berço da espécie, mas também existem algumas evidências nesse sentido, mas com diferenças, que indicam a Ásia. Convencionou-se chamar estes achados como Homem do Cro-Magnon, porém não se tem certeza de que se trata da mesma espécie. Há a hipótese de que o Homo sapiens sapiens tenha evoluído diretamente do Homo erectus, em algum lugar do Globo com características ecológicas particulares é a teoria do "Jardim do Éden".

Numa recente e polêmica publicação, Gould (1990) apresenta uma outra alternativa para a evolução humana que, segundo ele, "encontra forte apoio nas reconstruções de nossa árvore evolutiva baseada em diferenças genéticas entre grupos modernos. O Homo sapiens surgiu como um detalhe evolutivo, uma entidade definida, uma população pequena e coesa se separou de sua linhagem ancestral na África. Eu chamo a esse ponto de vista de 'teoria da entidade' a respeito da evolução humana… Nós somos uma frágil e improvável entidade que, após um começo precário como uma pequena população africana, por sorte foi bem sucedida. Nós não somos o resultado previsível de uma tendência global. Somos uma coisa, um detalhe da história da vida e não a materialização de princípios gerais".

Afora as incertezas ainda reinantes sobre este ponto da evolução que, com novas descobertas que compreendem o período dos últimos 400 anos, podem ser esclarecidas, algumas questões podem ser debatidas com os dados disponíveis e, principalmente, com um método de análise que seja capaz de levar em conta os diferentes aspectos, que apontam para a busca de uma interdisciplinaridade, e para as diferenças, mas também para as identidades entre as espécies.

A primeira destas questões que precisa ser tratada é a de como se efetua a evolução.
Gould, como vimos anteriormente, defende a teoria das contingências, chegando inclusive a afirmar: "Enquanto mamíferos grandes e racionais, devemos nossa existência literalmente à nossa boa estrela". Esta é sem dúvida uma visão que precisa ser mais aprofundada e debatida.

Eldredge e Tattersal afirmam: "examinando pormenorizadamente o registro fóssil dos hominidas, vimos que a idéia da progressão lenta e gradual não encontra respaldo" (p. 140). Concordamos com esta visão, pois acreditamos que o desenvolvimento se dá não só por acumulação quantitativa, mas também por saltos. Independente dos achados que estão por vir para preencher as lacunas da nossa história, podemos ver claramente que houve um acúmulo de cultura durante, no mínimo, 2 milhões de anos e que em algum momento houve algum salto de ordem biológica. Se não, como explicar a nossa capacidade cerebral da qual não utilizamos nem a metade?

Leakey relata que durante 2 milhões de anos, no mínimo, nossos ancestrais seguiram um estilo de vida tecnocrático simples, mas imensamente bem sucedido. A estratégia inicial de apresamento oportunista de carniça, combinada com a coleta organizada de vegetais, gradualmente evoluiu para um estilo de vida de caça e coleta, ocorrendo esta transição provavelmente há cerca de 1,5 milhão de anos atrás. Não foi senão recentemente, entre 20 mil a 10 mil anos atrás, que este estilo de vida estabelecido há longo tempo começou a ser substituído por uma sistemática produção de alimentos, na forma de pastoreio ou na agricultura. A caça-coleta foi uma característica estável e permanente em nossa evolução biológica, desde o Homo erectus e finalmente até o homem moderno. Este estilo de vida, com certeza, é parte indelével do que nos fez humanos.

“Divisão de funções é uma característica básica da nossa humanidade”.

Isaac vai mais além do que constatar este fato e questiona quais foram as vantagens evolucionárias e ecológicas do adiamento do consumo de alimento (estratégia implícita no estilo de vida caçador-coletor). Ele próprio reflete que nas sociedades humanas primitivas, "o transporte de alimento está associado com uma divisão de trabalho. A sociedade está dividida por sexo e idade, em classes que tipicamente fazem contribuições diferentes para o suprimento total de alimento. Um resultado desta divisão é um aumento na variedade de alimentos consumidos pelo grupo. As mulheres adultas tipicamente contribuem com a maioria dos alimentos 'coletados'. Estes alimentos incluem principalmente produtos vegetais, mas também mariscos, anfíbios e pequenos répteis, ovos e insetos.

Os homens adultos em geral, mas não invariavelmente, contribuem com a 'caça': a carne de mamíferos, peixes, aves e etc. Os sexos tipicamente se separam e trazem para uma base de moradia o excedente de suas atividades" (p. 14). Ele afirma que em algum ponto na evolução do comportamento humano dois padrões foram estabelecidos: partilha de alimentos e divisão de trabalho.

Por compreender a importância deste estilo de vida para a humanidade é que muitos antropólogos se dedicam hoje a estudar os poucos grupos humanos que ainda vivem da caça e da coleta, como os Kung que vivem no deserto de Calaari na Namíbia. O mais interessante destes estudos, sem dúvida, tem sido a observação das mudanças ocorridas na organização social em função da sedimentação, realizada através da adoção da agricultura e do pastoreio que vem ocorrendo rapidamente em alguns grupos. Estes estudos estão sendo muito frutíferos no delineamento de vários elementos sobre a organização política e social destes grupos, e no levantamento de várias hipóteses sobre como se formaram os primeiros grupos humanos e a função dos primeiros instrumentos.

Outra questão importante é relativa ao surgimento da linguagem e seus efeitos evolutivos. Para alguns autores, o aparecimento dos padrões da fala pode ter desempenhado um papel tão importante na divergência do Homo sapiens de outros hominídeos, como o bipedalismo deve ter desempenhado na divergência inicial (Bussab, 1989).

Os estudos têm se baseado em evidências de duas naturezas: a constatação de que habilidades culturais complexas necessitam de níveis também sofisticados de comunicação, e a tentativa de localização de sinais que indiquem desenvolvimento do aparelho fonador ou de centros nervosos ligados à produção da fala.

Recentemente, em 1984, Laitman descobriu uma relação entre a localização da base do crânio e da laringe na produção da fala e concluiu: base do crânio achatada, posição alta da laringe e baixa capacidade faríngea eram sinal negativo para a fala articulada. Já a base arqueada se correlaciona com a posição baixa da laringe e com o trato vocal supra-laringeal desenvolvido, que permite gerar sinais acústicos bem distintos. A partir daí os exames dos fósseis informaram que nem os Australopithecus nem os Neandertais tinham estes traços desenvolvidos. Até mesmo o recém-nascido humano não difere do chipanzé adulto quanto a este traço. Só a partir dos dois anos é que a característica se estabelece (Otta, 1985). Isto não quer dizer que os indivíduos que não tenham este traço não possam emitir sons. Os chimpanzés, por exemplo, são capazes de emitir 11 tipos de sons, através de manobras articulatórias, o que deve ter ocorrido com outros hominidas e principalmente com os Neandertalenses, pois, como dizia Leakey, é difícil de acreditar que indivíduos com o tipo de complexidade social que eles tinham não tivessem algum tipo também complexo de comunicação.

Portanto, mais uma vez, vamos ver uma característica tipicamente humana que, apesar de ter sofrido uma pressão evolutiva grande, surge também como uma especialização só no Homo sapiens sapiens, apesar de lhes trazer alguns prejuízos olfativos, respiratórios e riscos de asfixia, pois implica canais comuns para as vias respiratórias e alimentares. O homem apresenta também outras especializações para a fala como a assimetria cerebral que o caracteriza, e adaptações desenvolvidas quanto à percepção categórica.

Outra questão importante, bastante estudada e discutida hoje, relacionada à evolução humana, diz respeito ao aumento do período infantil. Bussab, sobre isso, diz: "a hominização se deu, em boa parte, por processos neotênicos, que tenderam a manter prolongadamente traços infantis. Isto permitiu, desde um maior crescimento cerebral e a manutenção de padrões como exploração e brincadeira, até a conservação de traços mais específicos como a forma do crânio e a do perfil.

Bussab diz ainda que a fase infantil prolongada e o contato intenso e duradouro com os adultos e companheiros parecem ter criado as condições de efetivação da nova organização tecnológica e social.
Estas, parece-nos, são as questões mais importantes em evidência nos círculos científicos, atualmente, sobre a evolução humana. De tudo o que aqui foi relatado, uma verdade se sobressai: o processo evolutivo, em qualquer época, é dialético porque é dialética a natureza.

Dadas as circunstâncias em que ocorrem os debates hoje em dia, onde ainda faltam dados conclusivos sobre as nossas origens, e principalmente pelo fato de os cientistas envolvidos ainda não dominarem o método adequado para analisar a realidade, este debate deve perdurar ainda durante algum tempo. Ainda mais que, em ciência, sempre novas questões estão sendo colocadas no sentido do aprofundamento da busca do conhecimento.

Neste contexto, ressalta a figura de Friedrich Engels, não só como um dos precursores deste debate, mas principalmente, como um mestre que, junto com Marx, nos deu a chave da dialética materialista sem a qual não poderemos avançar nos enigmas de nossa própria origem e evolução.

Ilka Bichara é professora de psicologia da Universidade Federal de Sergipe (UFSE), mestre e doutoranda em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP).
Processo de “transformação” das espécies por adaptação.

Notas:
(1) São as teorias que consideram que não houve evolução, mas que os seres foram criados já prontos, exatamente como se apresentam hoje.
(2) Folha de S. Paulo, 6 de dezembro de 1990.
(3) Em 1912 o arqueólogo amador Charles Dawson "descobriu" o crânio Piltdown – uma mandíbula semelhante à de antropóide, associada a um crânio grande do tipo moderno. Esta descoberta, diz Leakey, ajustou-se perfeitamente à concepção predominante de um ancestral humano com faculdades intelectuais bem desenvolvidas mais alguns traços físicos simiescos e que visivelmente era inteligente e inglês! Só em 1955 foi revelada a fraude.
(4) O termo dimorfismo sexual se refere à diferença de tamanho e forma entre os sexos como acontece com muitas espécies animais.
(5) São as pegadas mais antigas de ancestrais do homem, e mostram que há cerca de 3.750.000 anos os hominidas caminhavam eretos num desembaraçado modo de andar a passos largos, exatamente como fazemos hoje. Esta é considerada a mais dramática descoberta arqueológica deste século: 3 hominidas, 1 indivíduo grande, provavelmente um macho, caminhou lentamente em direção ao norte, logo atrás seguiu um indivíduo menor, que colocava os pés sobre as pegadas do primeiro, e um indivíduo mais jovem saltitava ao lado dele. Isto fica em Laetoli, na Tanzânia, perto do vulcão Sadman, cujas lavas resfriadas e molhadas com chuva permitiram as pegadas.

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EDIÇÃO 20, FEV/MAR/ABR, 1991, PÁGINAS 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70