O maior bombardeio aéreo de todos os tempos inaugurou a Década do Direito Internacional da ONU. E recolocou em pauta a discussão sobre guerra e paz. A terrível destruição causada no Iraque reforçou a conhecida tese de Clausewitz de que a guerra é a continuação da política por outros meios – considerada obsoleta por Gorbachev.

Afinal, o que estava em jogo no Golfo? Será que ainda existe algum inocente capaz de dar crédito à humanitária desculpa americana de salvar o coitado do Kuwait das garras do satânico Iraque? Ou será mais razoável estudar a brutal agressão ianque no cenário das disputas inter-imperialistas? A guerra foi um episódio fortuito ou desdobramento de uma política própria da natureza capitalista?

Os Estados Unidos saíram da Segunda Guerra Mundial com uma posição de liderança destacada no mundo capitalista. Só encontrava contestação por parte do campo socialista, com a União Soviética à frente. Com a restauração do capitalismo, e transformação da própria pátria do socialismo em superpotência, a hegemonia mundial passou a ser disputada por esses dois gigantes.

Mas, não precisa ser especialista em assuntos internacionais para perceber que este quadro mudou muito. Alguns dados simplificados servem para retratar o declínio vertiginoso do poderio norte-americano, ao lado da desagregação da URSS.

A produção industrial americana vem caindo sistematicamente e hoje trabalha com 20% de capacidade ociosa, num ritmo equivalente ao de outubro de 1986. A inflação permanece em índices elevados. A especulação financeira atinge níveis assustadores. O parasitismo se mostra abertamente como um mal inevitável do sistema capitalista. A recessão perturba o sono dos empresários e sacrifica os trabalhadores.

A tecnologia do Japão e da Alemanha tende a superar à dos EUA em diversos setores. E os produtos destas potências substituem as mercadorias ianques por todo lado – inclusive no próprio mercado americano.

O sistema financeiro dos EUA está em crise flagrante. Hoje, nove entre os dez maiores bancos do planeta são japoneses – em 1980 eram americanos. O mecanismo de sucção de riquezas através do incentivo de dívidas externas dos países dependentes esgotou-se. As cifras do endividamento tornaram-se de tal monta que não podem ser pagas, mesmo pelos governos mais subservientes – como é o caso de Collor, no Brasil. Mais grave ainda, os próprios Estados Unidos tornaram-se os maiores devedores do mundo, com compromissos internacionais na ordem de 850 bilhões de dólares.

“A rivalidade entre as potências não se encerra na economia, é política e militar”.

Até na corrida pela exportação de capitais, os americanos estão com a língua de fora, atropelados pelos europeus e japoneses. Um sintoma disto: foram investidos neste período recente US$ 390 bilhões estrangeiros na economia americana. Enquanto os EUA, no mesmo período, colocaram US$ 359 bilhões no exterior. Importantes empresas como a General Eletric, na rede NBC de televisão, têm passado para o controle de capitais japoneses. Até Michel Jackson hoje é contratado da Sony.

O desenvolvimento desigual dos países é uma característica intrínseca ao capitalismo. O processo de crise da URSS e dos EUA, e a subida da Alemanha e Japão são prova disto. E este crescimento desigual conduz à luta para redividir áreas de influência no mundo visando a assegurar primazia sobre mercados e fontes de matérias-primas e oportunidades para investir capitais. Num determinado momento, a competição ultrapassa os limites "normais" e recorre aos argumentos militares.

A Primeira Guerra Mundial foi o desdobramento lógico do avanço alemão sobre seus rivais. E a Segunda, novamente, foi fruto do rompimento, pela Alemanha, das amarras do Tratado de Versalhes e da sua marcha em busca do que denominou "espaço vital".

A rivalidade inter-imperialista não se encerra, portanto, na esfera econômica. Ela é necessariamente também política e militar. Não é, pois, por acaso, que na análise do declínio americano um número se destaca. Enquanto quase todos os indicadores são desfavoráveis ao Tio Sam, no terreno bélico as coisas se invertem. O orçamento militar americano entre 1980 e 1986 saltou de US$ 134 bilhões para US$ 266 bilhões. A guerra do Golfo é uma decorrência disto. Bush precisava demonstrar aos rivais que os EUA dispõem de meios insuperáveis para conquistar mercados e fontes de matérias-primas no mundo. Exibir força era, portanto, o primeiro objetivo da agressão. E não se pode negar que o espetáculo, deste ponto de vista, foi convincente. A humanidade ficou boquiaberta com o poderio destrutivo lançado contra o Iraque. Nem se levava em conta a desproporção dos exércitos em confronto.

Era como se tudo corresse num campo de provas. A soberba máquina de propaganda montada pelos meios de comunicação fazia parte do show. Ressaltava-se a incrível precisão das "operações cirúrgicas", a sofisticação dos equipamentos, a impotência do adversário. E, para completar, a cena final: um soldado iraquiano acovardado – representando, para os editores da TV americana, o povo iraquiano e todos os povos do mundo – beijando as botas de um marine alto, louro, forte, bem nutrido, como convém a um guarda-costas do mundo livre e dos bons costumes internacionais. Se fosse na época de Hitler se poderia acrescentar, ariano.

A investida comandada pelo general Schwarzkopft tinha também outro alvo muito claro: aumentar a presença americana no Oriente Médio e o seu controle sobre o petróleo – material estratégico de primeira ordem – que tem nesta região as maiores reservas mundiais, fonte de 90% das importações da Europa e Japão. Neste sentido, era fundamental liquidar o Iraque como potência regional capaz de oferecer resistência contra a dominação imperialista ianque. Este objetivo ficou evidente com o covarde e bárbaro ataque desfechado contra tropas iraquianas que, depois de aceitarem as condições do cessar-fogo, tratavam de se retirar do território kuwaitiano.

De quebra, as 3 mil ações por dia abriam imensas possibilidades de investimentos na indústria Bélica e espaço para contratos bilionários na reconstrução de tudo que foi arrasado no Kuwait e, que ninguém se assuste, talvez, daqui a pouco tempo, no próprio Iraque. Afinal, a pátria dos capitalistas é sobretudo o lucro. E combater a recessão é um problema urgente para os magnatas ianques na atualidade.

Aliás, os resultados imediatos já se fazem sentir. A "reconstrução" está calculada em US$ 100 bilhões. Sendo que contratos de US$ 500 milhões já foram assinados, 70% com empresas norte-americanas. E o Império já decretou que só participa de tão "bondosa" obra quem esteve diretamente na guerra.

“Uma lição que custou 100 mil vidas e uma inovação que nasce morta”.

Não há como deixar de perceber que a batalha no sentido militar foi uma decorrência da disputa econômica há muito travada – em tempos de paz – entre os imperialistas. A ocupação do Kuwait serviu de pretexto para os EUA usarem a sua superioridade em armamentos para tentar ganhar espaço de seus concorrentes. Foi uma continuação pela via armada da política de rapina do imperialismo americano contra os povos e nações mais frágeis, e de busca de superação dos rivais imperialistas. A guerra do Golfo teve pelo menos um mérito: desmascarou radicalmente as ilusões pacifistas espalhadas por Mikhail Gorbachev. Em seu livro sobre a perestroika, ele afirmava: "A frase de Clausewitz, segundo a qual a guerra é a continuação da política, mudando-se apenas os meios, parece hoje absolutamente fora de moda".

Lástima que o preço da lição sejam mais de 100 mil pessoas destroçadas pela "tempestade no deserto" pelo equivalente a 20 bombas de Hiroshima atiradas contra o Iraque pela aviação americana.
Mas, e do lado iraquiano a guerra foi também uma forma especial de fazer política? Evidente que sim. Algumas correntes de pensamento que trataram logo de condenar igualmente as duas partes, esqueceram-se de analisar que política estava em jogo com a ocupação do Kuwait e que caráter tomou a luta com os EUA no conflito.

O Iraque tratava de ampliar sua influência no Mundo Árabe. Afirmar-se numa região que vem de longe procurando salvaguardar sua identidade nacional. E que encontra como maior obstáculo a presença das potências estrangeiras – no período colonial como agora, sob um novo colonialismo encabeçado pelos EUA e Israel como cabeça de ponte.

Os argumentos de que o Kuwait era, anteriormente, parte do Iraque e que o Emirado estava sendo usado pela ultra-reacionária família que o governa como Cavalo de Tróia do imperialismo têm certa validade. Mas, não justificavam a invasão. Afinal todas as fronteiras da região foram construídas artificialmente. E se cada um tratasse de recolocar as coisas em ordem a golpes de baioneta, o Oriente Médio se tornaria palco de mil guerras simultâneas.

Mas, a desmedida resposta dos EUA à invasão do Kuwait alterou a qualidade do problema. A disputa regional foi suplantada por uma ação imperialista – da maior (e atual única) superpotência do Globo – contra todo o Oriente Médio, afrontando inclusive interesses de outros países imperialistas, e transformando-se em ameaça para todo o planeta.

Os EUA submeteram a ONU a seus ditames. Aproveitaram a situação de desagregação da URSS para colocá-la na posição vergonhosa de cúmplice da agressão. Intimidaram seus parceiros – e rivais ao mesmo tempo – a sustentar financeiramente a aventura belicista. Consta, inclusive, que com custos superfaturados, configurando um verdadeiro assalto.

A guerra mudou de caráter. O Iraque, assim como os demais povos árabes – já que os governos se acovardaram – entraram numa luta defensiva contra o imperialismo. O próprio governo de Saddam, independente de sua natureza, passava a representar parte da aspiração dos povos árabes, inclusive da heróica resistência palestina.

Aqueles que, alegando princípios, comparavam o caráter do governo Saddam, o seu autoritarismo, seu passado em relação aos curdos e à revolução iraniana, com o imperialismo americano e, por isto condenavam as duas partes, acabavam comparando elefante com alface. Evidentemente, os povos e o proletariado tinham de levar em conta o que Saddam representava e as limitações decorrentes de sua posição de classe. Porém, nas condições concretas esta era uma consideração no campo da luta antiimperialista. Assestar baterias contra os dois lados era, conscientemente ou não, prestar um serviço ao imperialismo.

Não que os princípios não sejam válidos. Mas, o manejo cego deles, com considerações abstratas, fora do contexto, conduzem ao fracasso e, muitas vezes, a resultados opostos aos próprios princípios.
A Segunda Guerra Mundial também começou como um conflito inter-imperialista. O proletariado e os povos não tinham compromisso com nenhum dos contendores. Sua tática era transformar a guerra em guerra civil contra seus governos. Contudo, num determinado momento, a Alemanha nazista voltou seus canhões contra a União Soviética.

E o conteúdo da luta sofreu uma mudança radical. Da parte do povo soviético tratava-se, então, de defender a pátria e o socialismo. Os trabalhadores em todo o mundo, em defesa da revolução e da democracia, empreendem uma gigantesca batalha para golpear os agressores nazistas. Trataram até de forçar que os governos de seus países declarassem guerra à Alemanha. E, inclusive potências que, mesmo a contragosto, formaram a grande aliança junto com a União Soviética, na prática ajudaram o avanço da causa popular em todo o mundo. De fato, a vitória contra o Eixo representou um enorme impulso do movimento progressista e democrático. É claro que a comparação não pode ser feita mecanicamente. A URSS de então não é o Iraque. Mas, o exemplo ajuda a raciocinar.

“A nova ordem já surge contestada e pode levar à 3a Guerra”.

A guerra do Golfo tem ainda um aspecto a ser explorado. Gorbachev, em seu livro, afirma: "é hora de esquecer qualquer aspiração imperialista em termos de política externa. Nem a URSS nem os EUA estão em condições de impor seus próprios pontos de vista às demais Nações. (…) Uma nova relação dialética entre força e segurança surge da impossibilidade de uma solução militar para as questões internacionais".

Um pensamento condizente com a vida ou mais uma formulação teórica para mofar nas prateleiras?
É certo que hoje, pouco tempo depois de o líder soviético escrever estas coisas, a prática mostrou que a URSS, de fato, não está capacitada a fazer valer suas pretensões. No entanto, os EUA, ao contrário, foram capazes de se transformar no Grande Império Mundial, desafiando todo o planeta.

E daqui para diante? A espetacular vitória de Bush no Oriente Médio afetou a tendência de declínio dos EUA? Deteve a marcha da Europa encabeçada pela Alemanha e o Japão em busca da hegemonia mundial?

Dentro da União Soviética, as coisas se acomodam para aceitar a supremacia americana indiscutível?
Não precisa muita argúcia para responder respectivamente a estas indagações.

Alemanha e Japão engoliram a prepotência americana pela precariedade da correlação de forças no terreno militar. Contudo, certamente perceberam que, para alterarem o quadro internacional, defrontam-se com uma máquina militar poderosíssima e com gente desatinada, capaz de cometer a maior violência para salvar-se da bancarrota. Aliás, tanto o Japão como a Alemanha – esta última em particular, com Hitler – têm também um trato considerável com o uso da violência.

Japão e Alemanha vão tolerar a perpetuação, por exemplo, de um conselho de segurança da ONU com o veto dos "cinco grandes" – dos quais eles são excluídos – por muito tempo? Esta conformação da ONU é resultado da Segunda Guerra Mundial e da correlação de forças por ela criada. Porém, uma potência decadente poderá manter esta ordem indefinidamente? A superioridade tecnológica e financeira do Japão e Alemanha não tende a se transformar em contestação dos EUA em todos os terrenos, inclusive militar? Em vez de impossibilidade, como quer o líder da perestroika, aumenta a probabilidade da solução bélica para as questões internacionais. Em Moscou também, os resultados da guerra já se fazem sentir. Os setores ditos "conservadores", encastelados no aparato estatal e no exército, reascenderam suas aspirações militaristas e autoritárias. Reclamam a reconquista do lugar de superpotência mundial para a URSS. A pregação já ganhou as ruas.

A "nova ordem" pretendida por Bush parece assim condenada a uma contestação crescente. Nuvens ameaçadoras no horizonte indicam que ela pode até ser o início de uma tendência rumo a uma terceira confrontação mundial.

Nesta realidade tão ameaçadora, espalhar ilusões sobre uma paz duradoura e sobre uma nova era de colaboração entre os poderosos, como faz Gorbachev, só serve para anestesiar a capacidade de luta dos povos e desviá-los do caminho da luta revolucionária.

Para que as massas elevem a sua compreensão, é essencial que saibam que as guerras fazem parte da essência do capitalismo. Que enquanto vigorar este modo de exploração, haverão guerras de disputa entre as próprias potências imperialistas e destas contra os povos e nações oprimidos. E haverão guerras que os povos e nações serão forçados a empreender, contra seus opressores.

As guerras sempre causam sofrimentos e horrores. Neste sentido, é inteiramente justo fazer todos os esforços para evitá-las. Mas, enquanto existir o sistema de exploração e competição capitalista a tendência ao uso da força bruta está presente. Em determinados momentos, os povos também não dispõem de outro recurso para se defenderem de seus opressores. Nestas condições a violência pode representar um papel progressista, ao ajudar a destruir instituições arcaicas, que sufocam o progresso social e sustentam regimes despóticos da burguesia. No mundo burguês, portanto, é preciso estudar cada guerra em particular e seu conteúdo, identificar a que política serve, e não tomar posição a priori contra todos os combatentes.

Rogério Lustosa é editor da revista Princípios.

EDIÇÃO 21, MAI/JUN/JUL, 1991, PÁGINAS 14, 15, 16, 17