Diz uma lenda romana que, quando Breno, rei gaulês, tomou Roma, impôs um tributo de tal modo arbitrário que os romanos protestaram, ao que ele retrucou: “Ai dos vencidos!” Em outras palavras, o derrotado não tem voz, nem vez.

Um socialismo foi derrotado na passagem dos anos 1980 para os anos 1990, e agora os discursos deitam e rolam contra ele. Foi derrotado não pelos seus princípios, mas por causa das ineficácias internas em seu funcionamento e das pressões externas que se acumularam ao longo dos anos 1980. Com a derrota daquele socialismo, começaram todos a escrever sobre ele e a fazer o seu obituário, com indisfarçável prazer ou com uma visão crítica do que ele fez e deixou de fazer. A mídia tem insistido no fim do socialismo para induzir as pessoas a acreditarem na impossibilidade de seu retorno sob qualquer outra forma, coroando as teses capitalistas (e seus desejos) com a teoria do “fim da história”.

Como resultado, leva o indivíduo a se conformar com o sistema em que vive, pois não lhe mostra alternativas. Trata-se de uma ideologia para fazer esquecer o verdadeiro conteúdo do socialismo e apagar a memória do seu significado. No fim de tudo isso, as pessoas ficam com uma visão arqueológica do socialismo e não compreendem que ele um dia surgiu por um único motivo: os problemas que o capitalismo não pôde resolver, a não ser negando-se estruturalmente.

O problema maior é que alguns intelectuais fazem coro com esse discurso, dando-lhe uma respeitabilidade acadêmica. E, ao escreverem, passam ao público um Marx de “segunda mão”. Tomemos o caso de Claude Lefort, respeitável intelectual francês em atividade, crítico dos totalitarismos, defensor das democracias. Em entrevista para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, no dia 3 de março de 1994, declara que a Rússia quer esquecer o comunismo, que a Revolução de 1917 “é percebida como uma catástrofe” e induz o leitor a pensar que o comunismo foi tão mortífero quanto o fascismo, defendendo a idéia de que os russos não querem nem falar do seu passado. Como é que Lefort pode fazer uma afirmação assim gratuita? O que é que os russos podem saber, lançados como estão num limbo social e ideológico? Até podem sentir que aquele modelo já não lhes serve, mas os mais lúcidos sabem o quanto foi socialmente obtido com a implantação da União Soviética sem um Terceiro Mundo à sua disposição para extrair mais-valia, com todas as falhas internas e ainda enfrentando agressões mundiais contínuas, desde seu surgimento.

“A crítica de Lefort ao totalitarismo se torna absoluta: é feita fora do contexto concreto”.

Lefort fala com desprezo da “utopia”. A palavra tem uma carga aparentemente negativa, suscita, por definição, o que é impossível de se obter. Todavia, ela se fundamenta no solo concreto da história. O direito à utopia é o imperativo de qualquer luta transformadora, nasce de uma relação conflituosa com um presente enfermo, em razão do que, em vez de conceituá-la como “lugar que não existe”, é melhor vê-la, como o fizeram Victor Hugo e Lamartine, como “verdade do amanhã” ou “verdade prematura”. A crítica de Lefort ao totalitarismo se torna abstrata por tirá-lo do contexto histórico, o que nivela Hitler a Stalin, sem considerar que forças sociais estiveram detrás de cada um. Assim, condenar a utopia torna-se um meio de condenar o stalinismo, que foi um fenômeno histórico complexo, cuja análise tem sido feita através de redutores morais de fundo anarquista ou liberal – em qualquer caso, servindo à direita. Stalin tem sido mais condenado do que efetivamente estudado, e por esse motivo a passionalidade tem tomado o lugar da reflexão e do juízo crítico.

Lefort afirma que o leninismo “é uma simplificação extraordinária de Marx” – visão que denota o simplismo do autor. Lênin adaptou o marxismo às condições específicas de uma revolução, num momento específico. Quanto aos riscos, não precisaria um Lefort para adverti-los: antes de Stalin, Rosa Luxemburgo já o fizera, sem deixar de reconhecer o significado daquela revolução, que Lefort, levianamente, negou na citada entrevista. Lefort fala de Marx como se ele fosse um dogma religioso. Marx forneceu uma estratégia para que se compreendesse como as coisas se passam na sociedade; depende da inteligência saber utilizá-la para perceber as nuances da realidade com a qual se trabalha. “A noção de revolução como ruptura radical na história é falsa”, diz Lefort. É uma evidência de desconhecimento histórico. Revolução é ruptura, o que não exclui o aproveitamento do passado. Marx já o sabia quando escreveu que a história é “a sucessão de diferentes gerações, e cada uma das quais explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas por gerações anteriores”.

Lefort imagina que Marx tenha definido o comunismo como uma sociedade sem classes, “homogênea, sem as dimensões jurídica e política”. Na verdade, Lefort, que acusa o marxismo e Lênin de simplistas, é quem se revela simplista e primário. Marx nunca se preocupou com o que seria uma sociedade comunista – literalmente, ele disse: “o comunismo não é, para nós, um estado que deva ser estabelecido, um ideal para o qual a sociedade deve se dirigir”. E acrescenta: “Denominamos comunismo ao movimento real que supera o estado de coisas atual”. Logo, ao contrário do que diz Lefort, Marx jamais imaginou um único modelo de sociedade “a ser aceito por todos os povos da Terra” e muito menos uma sociedade “homogênea”. Seria muita ingenuidade de Marx supor a restauração do Paraíso bíblico. Quanto a Cuba, Lefort, embora não possua “os meios para afirmar”, chama o regime de “equivocado” e frisa que ele “só” se manteve graças ao auxílio russo. Mais ainda, Cuba se construiu “sob a justificativa de que era socialista”. Em outras palavras, Lefort não sabe nada do que há de legítimo naquela revolução – o que não invalida seus pontos frágeis. Quanto ao socialismo cubano, a história não lhe negará o saldo positivo, como não deixará de destacar os responsáveis por sua queda, se ela ocorrer. Com certeza, o equívoco de avaliação de Lefort é maior do que os cometidos pelo funcionamento de uma sociedade construída num vasto mutirão popular.

Lefort é um desses pensadores que, como decorrência de um entranhado ceticismo, servem à direita atualmente. Acredita que os efeitos destrutivos do capitalismo são atenuados pela democracia, que estabelece regras para proteger a sociedade. Eis aí a cantilena social-democrática, a nova proteção do liberalismo, a ideologia maquiada da livre iniciativa. Lefort é mais um que não aprendeu que a finalidade do capitalismo não é o aumento da produção, e sim do lucro, e que a social-democracia só funciona dentro dos limites de classe a que serve em tempos de prosperidade. O problema é que Lefort fica manipulando idéias que iludem a sociedade e acusa o comunismo de fazê-lo. A perfumaria social-democrata não esconde que a sociedade continua tendo uma burguesia dominante; logo, de nada servem as regras que ele imagina para a sua bem-aventurada democracia. Novamente o desconhecido (para ele) Marx afirma: “Como o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns (…) segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado e adquirem, através dele, uma forma política; daí a ilusão de que a lei se baseia na vontade, (…) destacada de sua base real”.

Lefort tem medo da irrupção dos nacionalismos, que ele aponta como força desintegradora no Leste europeu. Não diz que eles apareceram no vácuo deixado pela falência de um projeto socialista (ou, como ele diria, do projeto socialista). E não frisa que tais nacionalismos também existem na Europa que é sua vitrine de prosperidade, embora reconheça “os fenômenos de exclusão social” na França. Referimos-nos aqui à Europa ocidental: a Inglaterra, com o IRA; a França, com os separatistas corsos; e a Espanha com o ETA. Lefort também não fala dos muros que se ergueram entre as duas Alemanhas, após a queda do muro de Berlim, do preconceito, da desconfiança, do conflito por empregos, da intenção de suprimir os avanços sociais na Alemanha do Leste e reduzi-la a um Terceiro Mundo da Alemanha do Oeste.

No fim das contas, Lefort elege o que o capitalismo tem de dinâmico e, no máximo, acredita em instituições democráticas para conter o que ele tem de predatório. Entretanto, as instituições democráticas não operam no vazio, operam no âmbito do Estado. Como Marx referiu, o Estado não é uma entidade abstrata, mas um instrumento de classe, e essa classe dominante detém as decisões econômicas e o controle das decisões políticas. A democracia limitará o capitalismo até onde ele deixar e nas circunstancias em que ele o permitir. Lefort simplesmente ignora o que Robert Kurz percebeu tão bem: se o capitalismo fornece à economia regras de funcionamento e eficácia, bem como a tecnologia, é o socialismo que lhe fornece a destinação moral e controla o seu potencial anárquico, embutido no privilegiamento do individualismo.

“O liberalismo postulou liberdades civis apenas por servirem às liberdades econômicas”.

Lidando com as abstrações e perdido devido a seu envolvimento emocional com o problema do totalitarismo, Lefort não se dá conta do simplismo conceitual de suas colocações e da fragilidade de sua abordagem quando confrontada com a realidade histórica. Ele diz, por exemplo, que na origem, o liberalismo não era apenas uma teoria econômica, “mas uma preocupação com a emancipação em relação à autoridade religiosa e a obtenção do reconhecimento das liberdades civis e individuais”. Tal visão seccionada da realidade leva à distorção do pensamento, pois o liberalismo postulou liberdades civis por servirem às liberdades econômicas, que constituíam a libertação do potencial de produção e lucro de um sistema capitalista que estava em expansão.

“A teoria marxista não resiste”, diz ele. Não resiste a quê? “Os russos têm consciência de que o comunismo era um regime ditatorial, baseado, não no terror, mas no medo: da política, da repressão e do poder”. Já vimos como Marx definiu o comunismo. Ao falar da Rússia soviética, suas frases funcionam como clichês, tanto quanto as propagandas que a União Soviética fazia quando se declarava uma “democracia popular”. Não há nenhuma avaliação de tudo o que foi conseguido com aquele socialismo de cima para baixo e, o que é mais sério, não há nenhum estudo sobre as pressões do Ocidente em relação à relação à União Soviética: as sabotagens, as agressões, as ameaças, os boicotes. A paranóia da insegurança e o imperativo de um desenvolvimento rápido levaram a União Soviética a construir uma carapaça protetora, e nada disso é avaliado por Lefort, que reduziu tudo a um bando de sádicos, dos quais, finalmente, os russos se libertaram. Hitler, Mussolini, MacCarthy e Pinochet assinariam embaixo do que Lefort qualifica como comunismo russo. O democratismo de Lefort se harmoniza com a pieguice liberal e com a histeria anarquista e afina, perigosamente, com o fascismo à solta.

Lefort pretende entender Marx. Mas não entendeu que, para Marx, comunismo não se reduz à idéia de utopia e que o conceito de utopia também não pode ser assim reduzido. Defende a democracia como um meio para conter o capitalismo, mas não percebeu qual é a natureza do Estado capitalista. Reduz o significado do que aconteceu na Rússia e em Cuba e revela uma estreiteza de visão histórica. Em momento algum o conceito de classe social surge no horizonte de Lefort.

“A classe que é a força material dominante na sociedade é sua força espiritual dominante”.

Eis um intelectual ideologizado pelas circunstâncias. Mas, como igualmente falou Marx, as circunstâncias fazem os homens na mesma medida em que são feitas por eles. Todavia, saberá Lefort o que é ideologia? Seguramente, é um daqueles que a definem como um modo “radical” de pensar, o que seria coerente com um social-democrata que se pretende equidistante das classes e, sem o saber, fornece o verniz necessário à continuação da dominação de uma delas. Afinal, como bem observou Marx, “a classe que é a força material dominante na sociedade, ao mesmo tempo, é também a sua força espiritual dominante”. Portanto, devido à ideologia, a história sempre tem sido escrita de acordo com um critério situado fora dela. Segundo Marx, “a produção da vida real aparece como algo separado da vida comum, como algo extra e supraterrestre”. É essa questão que Marx pretendeu reverter, mas estes tempos de recuo da esquerda têm permitido à direita eufórica espaços para contar as coisas de modo exatamente oposto ao de Marx – e ainda com o auxílio de intelectuais como Lefort e tantos outros.

Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência, disse Marx. Ela é, portanto, na base, um produto social. Para que serve a consciência de um Lefort? No mínimo, para ampliar a confusão na análise e na percepção.

As ideologias não têm história nem desenvolvimento, “mas os homens, ao desenvolverem sua produção material, transformam também, com esta realidade, o seu pensar e os produtos do seu pensar”. Isto é Marx, cuja teoria continua sendo um modo de compreender a realidade, inclusive o desmoronamento de um projeto social construído em seu nome. E isto não é um artigo de fé, conforme disse Lefort.

Segundo Marx, para compreender a realidade, “não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco de homens pensados, imaginados e representados (…), parte-se dos homens realmente ativos e, a partir do seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida”. Enfim, desnudar a ideologia é mergulhar no fundo da realidade aparente e transformar a realidade apresentada em realidade desvelada. A ideologia leva o indivíduo a um reconhecimento do seu mundo que, no fundo, produz um desconhecimento. E faz uma alusão à realidade que, na verdade, conduz a uma ilusão.

Estamos convivendo com esse tipo de discurso, do qual Lefort é um bom exemplo. Um discurso de verdades aparentes, um horizonte reconhecível, mas que deixa de herança a ilusão e o desconhecimento. O indivíduo desinformado nutre-se dessas palavras e não tem condições de submetê-las ao crivo da crítica, não faz interrogações, não as coloca em dúvida, não pergunta a que e a quem servem tais idéias, repete-as a terceiros e, desse modo, cria uma reação alienatória em cadeia. Ruiu um socialismo no âmbito real, mas no âmbito do imaginário tenta-se: afirma-se que ruiu o socialismo, que ele já é passado e o futuro pertence ao mercado – eis um discurso que escamoteia as realidades predatórias de capitalismo e procura convencer as pessoas de que não há mais por que lutar, que o sistema capitalista é que está destinado a perdurar e se revelou, finalmente, a melhor alternativa.

“As releituras de direita do passado, como a de Lefort, é uma séria ameaça ao futuro”.

O sistema em que vivemos aproveitou-se da derrota de uma alternativa histórica do socialismo para fabricar a ideologia de sua inviabilidade absoluta. É uma deformação da memória. Lefort está fazendo esse trabalho ao falar da Rússia, de Cuba, da revolução e de temas correlatos. Com o tempo, se essa ideologia imperar, os conceitos serão desconectados de sua historicidade e, portanto, de sua concretude. Num caso assim, como pensarão as pessoas sobre termos como liberdade, revolução, democracia, classe social? Se a historicidade de semelhantes conceitos desapareceu do horizonte das pessoas, igualmente desaparecerá a sua realidade. Já se diz comumente que Marx pretendia a utopia da sociedade sem classes – diante da extensão e da profundidade de seu pensamento, esta frase é de um inaceitável simplismo. De resto, todas as suas análises voltaram-se ao estudo do capitalismo. O que seria o comunismo? Aprofundar este tema seria para Marx uma especulação, e ele não se detinha em especulações. Estudar a realidade debaixo dos olhos já lhe dava bastante trabalho para uma vida.

Com a derrota daquele socialismo que se conheceu, a tendência a simplificar a visão de Marx, por meio de incompreensivas, indevidas e até mal-intencionadas releituras de seu discurso, certamente vai aumentar, o que aumentará a legião dos desinformados – por ficarem medianamente (porque ideologicamente) informados. E, considerando a atual conjuntura, os portadores do estilo Lefort seguirão intelectualmente impunes. Tudo isso é bastante grave. Conduz a uma reinvenção do passado, que é igualmente uma ameaça ao futuro.

* Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

EDIÇÃO 35, NOV/DEZ/JAN, 1994-1995, PÁGINAS 48, 49, 50, 51