Na elaboração do II Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (II PBDCT), houve um sinal claro do que pretendiam os tecnocratas. Havíamos elaborado esse plano tendo por base os principais programas prioritários, em todas as áreas. O ministro vetou o plano programático e exigiu que ele fosse reelaborado, agregando apenas projetos. Inicialmente nos recusamos a desmontar os programas em projetos, porém recuamos ao sentir que ele jamais admitiria um plano verdadeiro. Era uma questão ideológica; elaborá-lo sob a forma de projetos era a maneira de escamotear os reais objetivos nacionais; então, refizemos o plano com os projetos que compunham os programas, sem explicitá-los. As razões desse recuo tático deveram-se ao entendimento de que, na estratégia dos tecnocratas, esse era um ponto crucial, e eles assim o fariam, de qualquer maneira. Nessas horas é válida a sabedoria mineira: “Ao inimigo não se pede nada, muito menos demissão”. Não deixou porém de ser uma clara evidência de que, apesar de volumosos recursos financeiros aplicados em ciência e tecnologia, não se pretendia chegar aos pacotes tecnológicos, que são os resultados efetivos dessas atividades na estrutura produtiva e de poder. Por isso, programas integrados que tornam possíveis esses pacotes não são admissíveis.

Essa evidência ficou confirmada mais tarde quando elaboramos o plano de tecnologia industrial do governo federal, fundamentando-o em programas integrados, entre os quais estava o que posteriormente se tornou muito popular: o Programa Nacional do Álcool. Como era de se esperar, o Ministério do Planejamento, com seus órgãos assessores, Finep e CNPq, vetou o plano da Secretaria de Tecnologia Industrial, o que resultou em excluí-lo do Plano Básico de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, ou, seja excluí-lo também da possibilidade de uso dos fundos federais para o setor. Nem por isso os planos da STI deixaram de ser executados e o Pró-álcool aí está para quem quiser ver – e o senhor Veloso ninguém mais se lembra dele! Identificadas as incompatibilidades em questão de fundo, era impossível continuar trabalhando nessa esfera de influência. Foi quando surgiu o convite para realizar um programa de estudos nos Estados Unidos, com status de professor visitante na Universidade do Texas. Esse programa permitiu-nos regressar ao Brasil poucas semanas antes de Severo Gomes assumir o Ministério da Indústria e do Comércio.

Na Universidade do Texas, nos concentramos no estudo do sistema universitário norte-americano e suas consequências para o desenvolvimento do que veio a ser a maior potência mundial. Para isso tivemos que estudar os sistemas universitários das grandes nações européias e do Japão. Com esses estudos e pesquisas estávamos nos preparando para ocupar alguma função executiva na área da educação, setor ao qual atribuímos alto valor estratégico. Isto, porém, não veio a ocorrer.

Nos seminários de que participamos na Universidade do Texas sobre o papel da educação formal e, principalmente, a informal na condução dos povos, constatamos o modo como as nações hegemônicas utilizam os sistemas educacionais dos países periféricos para tornar seus povos colonizados e sua classe dirigente servil. Isto é levado avante com os chamados programas de cooperação e, sem eles, com a postura da classe dirigente dos países dependentes de mandar a parte mais brilhante de sua juventude, a que já comprovou capacidade de trabalho e competência, receber a orientação político-ideológica final nos centros hegemônicos de poder. Isso é feito praticamente com toda a comunidade acadêmica, atualmente com líderes sindicais, entre outros, e de, maneira especial, com oficiais superiores das Forças Armadas. Assim a educação dos dirigentes brasileiros se orienta por determinado fluxo ideológico, que nada tem a ver com o nosso destino histórico ou com os compromissos que qualquer classe dirigente tem com a nação a que pertence. A natureza ideológica dessa formação é orientada para a manutenção do status quo de poder, tem papel crucial na desideologização relacionada com nossa cultura e nossos interesses, com a perda da auto-estima nacional. Sem auto-estima não há possibilidade de resistir a qualquer tipo de invasão estrangeira militar, cultural ou mercantil. Isto tem efeitos devastadores sobre nossa vida como coletividade organizada, nos transformando em nau à deriva, vítima de ideologias externas espúrias e maldosas, que visam a nosso enfraquecimento crescente e que levam nosso povo à abulia e à desesperança, método prático e eficiente do desmonte nacional. Ou seja, a classe dirigente brasileira, submetida a longo período de submissão colonial, mostra-se condicionada ao servilismo ou à obediência a valores hierárquicos alienígenas hegemônicos; deixa de ter qualquer compromisso com os nossos valores, com a nossa cultura e com o nosso povo. Trata-se de uma classe dirigente apátrida, que traiu a sua própria razão de ser. Uma classe dirigente que promove o suicídio nacional!

“Em setembro de 1973, quando explodiu a crise desencadeada pela Opep, estávamos no Texas”.

A poucos quilômetros da Universidade do Texas, em Austin, localiza-se Houston, a capital mundial do petróleo, onde estão os headquarters das grandes corporações transnacionais do petróleo. A temática “major” dessa universidade é precisamente o petróleo. Ou seja, nesse environment circulam as grandes personalidades do poder mundial no campo energético. Nessa atmosfera, procurávamos identificar a influência da educação na organização dos povos, quando explodiu o embargo do petróleo pela OPEP, em setembro de 1973. Como engenheiro e físico, professor de termodinâmica, nos dedicamos inteiramente a procurar compreender as razões daquele monumental conflito mundial, que até hoje perdura, embora camuflado, aflorando de vez em quando, como da última vez no massacre do povo do Iraque. Desde então, a região que concentra mais de 60% do que resta das reservas mundiais de petróleo já sofreu mais de dez guerras e, na ocasião da pretendida captura dos reféns norte-americanos mantidos pelo Irã, tinha-se iniciado o terceiro conflito mundial com mobilização das tropas da OTAN e do Pacto de Varsóvia. Felizmente, os americanos recuaram do resgate, fundamentando-se em suposto acidente entre seus helicópteros.

A partir da Universidade do Texas, visitamos alguns dos principais centros tecnológicos norte-americanos da área energética, para sentir a opinião dos grandes especialistas mundiais sobre a crise que se agigantava. As opiniões foram unânimes: ela era irremediável, as reservas de petróleo não resistiram por longo tempo aos aumentos de demanda e o mundo hegemônico encontrava-se sem solução para suas graves carências de energia. O presidente do Institute of Gas Technology, de Chigaco, nos afirmava, em dezembro de 1973: “Há vinte anos vimos advertindo ao governo dos Estados Unidos que a economia da maior potência industrial militar é dependente de um combustível fóssil que está se exaurindo”. A crise nos Estados Unidos, decorrente do embargo do petróleo, foi muito séria. Os veículos de elevado consumo de gasolina, que eram a maioria, caíram violentamente de preço. As filas para abastecê-los eram quilométricas. Os conflitos se avolumavam. A sociedade americana vivia uma orgia de uso de derivados de petróleo e não estava preparada para enfrentar a escassez.

Foi nessas condições que regressamos ao Brasil, em fevereiro de 1974, quando Severo Gomes, a quem não conhecíamos, por intermédio de Paulo Belotti, nos convidou para ser secretário de Tecnologia Industrial do Ministério da Indústria e do Comércio. Iniciou-se, assim, o período mais criativo e desafiador de nossa vida, em pleno regime militar, no início do governo Geisel. Esse período, que se estendeu até finais de 1987, quando fomos finalmente exonerados da STI, cargo que ocupamos por três vezes, também se caracterizou pelas maiores adversidades que tivemos de enfrentar. Em 1982 fomos demitidos, sem justa causa, três vezes: do IPEA, da Folha de S.Paulo e da Universidade Estadual de Campinas. Todas por injunção do tecnocrata de plantão. Passamos então sete anos sem emprego fixo, vivendo de pequenas consultorias, pois todas as portas estavam fechadas. Parecia que não havia condições de continuar vivendo no Brasil. Perdemos até o direito à aposentadoria, que somente vimos recuperar com a Constituição de 1988. Tinha chegado a nossa vez de pagar o preço por ter procurado, embora modestamente, os caminhos que levam à autonomia nacional. Viemos a assumir a STI, pela terceira vez, já na “nova” República, em fins de 1986, quando a encontramos praticamente desativada. Resistimos dezesseis meses nessa situação, quando pudemos avaliar o enorme dano que estava sendo causado ao país.

Assumimos pela primeira vez a STI em pleno clima de embargo de petróleo. Nossa balança de pagamentos tinha estourado devido às elevações dos preços internacionais do petróleo e devido a um aumento inacreditável no volume das importações. Depois viemos a constatar que esse incrível aumento de devia a ações programadas de subsidiárias de corporações norte-americanas, visando a reduzir o déficit comercial dos Estados Unidos, provocado pela subida do preço do petróleo; então, já importavam cerca de 50% do consumo. Houve subsidiárias de corporações estrangeiras no Brasil, que nesse jogo importaram naquele ano de crise valores superiores a seu faturamento bruto.

Quando assumimos a STI, em março de 1974, ela tinha pouco mais de um ano de existência e estava em fase de implantação, ocupando quatro ou cinco salas no prédio do MIC, na Esplanada dos Ministérios; contava apenas com uma dúzia de assessores e tinha por objetivo traçar a política de tecnologia industrial do país e supervisionar os órgãos de produção e regulamentação tecnológica então existentes no Ministério: o Instituto Nacional de Tecnologia, fundado nos idos de 1922; o Instituto Nacional de Pesos e Medidas (INPM), que já tinha a si ligados mais de vinte INPMs estaduais e o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo importante e inovador Código da Propriedade Industrial – legislação que regula o setor de patentes, marcas e de transferência de tecnologia, essencial a uma política industrial autônoma – acabava de ser aprovado pelo Congresso, em dezembro de 1971.

Encontrava-se no Congresso, em processo de lento andamento, projeto de lei que permitia a criação de um sistema nacional de metrologia, normas técnicas e qualidade industrial. Com a ajuda do então presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia, deputado Aureliano Chaves, tomamos a iniciativa de confrontar as corporações estrangeiras que procuravam impedir a aprovação dessa importante legislação. O projeto foi transformado em lei em dezembro de 1974. Junto com o Código de Propriedade Industrial, esse sistema recém-criado, que tinha seu comando no Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Conmetro), deram à STI um quadro legal poderoso e adequado para enfrentar o desafio político de um desenvolvimento tecnológico autônomo.

Na STI, tivemos inicialmente de enfrentar dois problemas maiores. Em primeiro lugar, o modo isolado de atuação de seus órgãos, embora todos de âmbito nacional, sem qualquer interveniência na política industrial. Atuavam como órgãos técnicos em questões essencialmente políticas, de papel crucial na competição entre empresas das mais variadas origens, sem levar em conta os fatores de produção e os interesses nacionais e a necessidade de atuarem de maneira integrada – único modo de viabilizar a agregação tecnológica. O segundo e gravíssimo problema, que impede o desenvolvimento tecnológico brasileiro, é a natureza dependente do modelo de crescimento econômico adotado na segunda metade dos anos 1950, na era Juscelino. Por este modelo, como vimos, sintetizado na frase “crescer cinquenta anos em cinco”, o equacionamento do “desenvolvimento” nacional seria provocado pela implantação no país de pacotes tecnológicos exógenos, agregadores de fatores de produção, interesses e políticas dos países hegemônicos de origem. Esse modelo suicida, que vem sendo mantido até hoje, defendido pelos tecnocratas de todas as correntes ideológicas, foi responsável pela implantação de um parque industrial anacrônico e ineficiente como um todo, apesar das enormes vantagens comparativas brasileiras, controlado em seus setores dinâmicos de fora do país. Ele baseia-se em fatores de produção, fontes energéticas, modos de produzir, interesses, diretrizes e políticas vinculadas às corporações de origem dos pacotes, em geral em confronto com as nacionais.

Nessas e em outras questões, vinculadas ao campo da produção e da riqueza nacional, os órgãos que realmente conduzem o poder no Brasil, concentrados na área financeira, demonstram total ignorância e, consequentemente, desinteresse. Em contrapartida, os institutos e centros tecnológicos das Forças Armadas têm sobre elas conhecimento de causa, devido à forte interação com o setor produtivo, especialmente o Centro Técnico Aeroespacial (CTA), do Ministério da Aeronáutica e, mais recentemente, o Centro de Pesquisas da Marinha. Esta é a razão pela qual essas instituições das Forças Armadas sempre foram aliadas incondicionais na luta pela autonomia tecnológica nacional. Os militares, sem dúvida, tiveram sempre papel importante no estabelecimento de marcos decisivos para a industrialização brasileira, no que ela tem de estratégico, centrada na questão tecnológica e diretamente vinculada à soberania nacional.

“O choque entre a linha mestra entreguista da política do regime e a defesa da soberania era paradoxal”.

Assim, foi decisiva a participação de muitos deles na criação da Petrobras, CSN, Fábrica Nacional de Motores, Embraer, Telebrás, política de informática, projeto trópico das centrais telefônicas, programas nucleares autônomos da Marinha e da Aeronáutica, Programa Nacional do Álcool e tantos outros, além de programas específicos relacionados à área militar, quase sempre com envolvimento no campo tecnológico. Por exemplo: o promotor do Código de Propriedade Industrial foi o comandante da Marinha, Thedim Lobo, quando presidente do INPI, e os debates no Clube Militar tiveram papel fundamental na criação da Petrobras e do monopólio estatal do petróleo, estratégia que até hoje tem permitido enfrentar a crise do petróleo sem perigosas vulnerabilidades.

Novamente somos surpreendidos pelo paradoxo entre a evidência desses fatos e as linhas mestras da política entreguista do regime militar, implantado em 1964. E ainda mais, entre a ação dos militares ligados a seus centros tecnológicos ou com visão política mais ampla e independente e a cúpula dirigente do regime, na qual os tecnocratas detinham o real poder, como ficou constatado com o que veio a ocorrer com o fim do regime. Sempre foi clara a dependência dessa cúpula, com nítidas exceções, aos tecnocratas que dominaram o regime, na mesma linha do que vem ocorrendo com os dirigentes civis – e neste caso com maior ênfase –, a partir da chamada abertura “democrática”.

O apoio que tivemos de altas patentes militares na política de valorização do quartzo e do nióbio – matérias-primas de alto valor estratégico no poder mundial ou na implantação, em mãos nacionais, do Programa Nacional do Álcool – é contra-restado pela forte influência no período militar, e no regime civil que se seguiu, dos tecnocratas implantadores da ditadura financeira. Esta vem impedindo, de modo implacável, o aproveitamento de nossas imensas riquezas e a libertação de um sistema colonial que tem conseguido destruir estruturas essenciais à vida autônoma dos brasileiros, algumas delas implantadas ou fortalecidas em determinadas fases do regime militar.

“O período de maior desenvolvimento tecnológico coincidiu com a presença de Severo Gomes no MIC”.

As evidências mostram que o período em que o estratégico desenvolvimento tecnológico nacional alcançou seu mais alto nível de ação e de mudança coincidiu com a presença de Severo Gomes no Ministério da Indústria e do Comércio. Nesse período foi proposto à presidência da República transformá-lo em Ministério do Desenvolvimento Tecnológico e Industrial. Toda sua base já estava construída, era uma questão de formalidade institucional e de consolidação política. Os tecnocratas do Ministério da Fazenda e do Ministério do Planejamento e Coordenação Geral, especialmente deste último, atocaiados no Palácio do Planalto, como sempre, sabotaram a iniciativa, apesar do compromisso assumido pelo presidente. Eles foram apoiados, sem dúvida, por militares entreguistas, também localizados no Palácio do Planalto. Na área internacional, o Brasil estava começando a marcar presença política no campo tecnológico. Pela primeira vez negociaram-se acordos de desenvolvimento tecnológico, de igual para igual especialmente com o Japão e a República Federal da Alemanha. Os interesses do Brasil eram defendidos por equipes competentes nas Nações Unidas, na Organização Mundial da Propriedade Industrial (OMPI), na Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido), na Unctad, na FAO, na Organização dos Estados Americanos (OEA), entre outras.

“Os tecnocratas não sabem como transformar nosso patrimônio em poder para a nação”.

As delegações brasileiras se destacavam liderando as nações do Terceiro Mundo, enfrentando o Primeiro Mundo em defesa de seus legítimos interesses, às vezes secundado por Índia, México e outros países. Documentos importantes foram negociados, como o Código de Conduta de Transferência de Tecnologia, no âmbito da Unctad, pelo Grupo dos 77, sob nítida liderança do Brasil e que exigiu cinco anos de negociações. A famosa Conferência Latino-americana de Ciência e Tecnologia (Cactal), em Brasília, no âmbito da OEA, ou a Conferência para Ministros de Ciência e Tecnologia da América Latina, no âmbito das Nações Unidas, realizada em 1971, em Caracas. Equipes especializadas defendiam permanentemente os padrões dos produtos brasileiros no âmbito da International Standad Organization (ISO). Ou seja, o Brasil marcava presença junto aos organismos internacionais e se fazia respeitar. Tudo isto foi desmantelado impunemente em breve período de tempo, a partir de 1979, certamente devido a pressões externas que não desejavam “um outro Japão ao sul do equador”, mas apoiadas internamente pelo poder cada vez mais concentrado na área financeira do executivo, domínio dos tecnocratas a serviço de interesses externos e referendados pelo regime.

Níveis excepcionais de desenvolvimento tecnológico autônomo se tinham alcançado em estruturas industriais, em áreas estratégicas de vocação brasileira. Seria apenas questão de tempo para que seus resultados aparecessem, o que significava dar ao Brasil alguma condição de negociação com nações hegemônicas, o que carecemos em absoluto. Na realidade tudo se resume, de um lado, em imposições e, de outro, em respostas servis – e as nações hegemônicas não respeitam atitudes servis… Ademais, os tecnocratas estão exclusivamente envolvidos com números que nada significam, com falsos símbolos, todos manipulados pelos centros do poder mundial. Ou seja, eles nada têm a negociar, falta-lhes competência, não conhecem nossas riquezas ou nossa realidade. Desconhecem como transformar nossos imensos patrimônios naturais em bem-estar para o homem e poder para a nação. Não são capazes de plantar uma couve…

Bastou porém a mudança de comando do regime militar, em março de 1979, para que o resultado desse esforço – que teve seu início em 1922, quando foi implantada a Estação Experimental de Combustíveis e Minérios, origem do Instituto Nacional de Tecnologia, o primeiro instituto tecnológico da América Ibérica, e intensificou-se no período 1974-78 – começasse a ser desmantelado. Isto ocorreu pelo esvaziamento da cabeça do sistema, a Secretaria de Tecnologia Industrial, pela retirada de seus recursos próprios e pelo desmonte de todos os seus principais projetos, em número superior a uma centena, entre os quais os relacionados às áreas da biomassa, nióbio, quartzo e tantos outros, para só citar os mais estratégicos. Evidentemente também pela desestruturação das equipes e pelo desligamento dos principais líderes. O melhor centro mundial de tecnologia de motores e turbinas para uso de combustível nacional renovável instalado pela STI no CTA foi imediatamente desmantelado; as principais equipes de especialistas foram dispensadas ou substituídas por outras inexperientes; o Conmetro foi desativado. O desmonte de tudo que havia de sólido processou-se de modo acelerado, na direção do que, mais tarde, o governo Collor veio a designar como “modernidade”.

Deu-se, então, a abertura “democrática” e o processo de destruição teve prosseguimento, desta vez no campo institucional, quer pelo fechamento de alguns de seus órgãos essenciais, como o único de financiamento para o setor de real produção tecnológica – o Funat –, quer pelo deslocamento de seus quadros especializados para outros órgãos, em outras funções. Ainda no primeiro governo da “nova" República, deu-se o fechamento da cabeça do sistema, responsável pelas decisões políticas e pela coordenação essencial na agregação dos pacotes tecnológicos. Órgãos cruciais para uma política técnico-industrial autônoma, como o INPI e o Inmetro/Conmetro, foram jogados no Ministério da Justiça, para engordarem insaciáveis agentes da propriedade industrial, a serviço da infelicidade nacional.

Criou-se, em contrapartida, o Ministério da Ciência e da “Tecnologia” que, embora fosse então entendido como o instrumento na direção da autonomia, até hoje não disse a que veio. Ao estar afastado do comando da política industrial e ao não dispor de nenhum instrumento efetivo de ação, esse ministério transformou-se em comprometedor “faz-de-conta”. Sua história, embora curta, está vinculada, por ação ou omissão, com atos relacionados com a entrega de essenciais patrimônios nacionais: genético, pela Lei das Patentes; nuclear, pelo acordo da salvaguarda quadripartite; mineral, pelas privatizações das estatais e pela revisão constitucional, e assim por diante. Uma plêiade de ministros “fora do ramo”, carreiristas políticos ou agentes explícitos ocupou essa pasta. Esse é o Estado que nos serve? Tudo se dá, porém, de modo gradativo, preparando terreno para que novos passos sejam dados: no primeiro, no segundo e no terceiro governos pós-regime militar, os dois últimos já resultados de eleições diretas, e dando sequência ao último do regime militar, de conotação nitidamente entreguista, quando se iniciou o desmonte do Estado brasileiro.

“O ponto alto da “Nova” República ocorreu no debate da questão nacional na Assembléia Constituinte”.

No segundo governo civil, foram desmantelados todos os ministérios fins de área econômica: da Indústria, do Comércio, das Minas, da Energia, dos Transportes. Como tal, só sobreviveu o fraco Ministério da Agricultura. O resto eram meios ministérios, com ministros enfraquecidos: ministérios de segunda classe. Tudo para dar o poder supremo e único ao superministério da Economia ou Fazenda, dono absoluto do bem e do mal, ao qual devem se subordinar todos os demais, incluindo a Presidência da República. Ou seja, ao ministério do “papel pintado”, da inflação, das dívidas interna e externa, da especulação desenfreada, da dilapidação do patrimônio das empresas estatais, da odiosa concentração de renda, da manutenção e expansão do processo inflacionário como instrumento concentrador etc. Nada com a riqueza real, verdadeira como produção industrial e agrícola, com o subsolo, com a energia, com a capacidade de competir, que depende diretamente da autonomia tecnológica. Nada relacionado com o trabalho e a inteligência dos brasileiros. Tudo isso ficou a cargo dos ministérios de segunda classe, sem capacidade de decisão, sem poder.

O ponto alto, sem dúvida, da “nova” República ocorreu ainda no primeiro governo civil com o amplo debate sobre as questões nacionais que permitiu elaborar, por meio legítimo de uma Assembléia Nacional Constituinte, a Constituição de 1988, uma aspiração de longa data do povo brasileiro. Lamentavelmente, o Congresso que seguiu à Constituinte deixou de regulamentar mais de uma centena de temas centrais da Constituição, dificultando assim sua plena aplicação. E, se isto já não fosse muito, enveredou pela aventura ilegítima e inconstitucional de uma revisão descabida, ao interpretar o Artigo 3 de suas Disposições Transitórias como motivo para uma revisão ampla, quando ele se referia inequivocamente ao ajuste da Constituição à possível mudança de regime ou de governo, como resultado do plebiscito previsto no Artigo 2 dessas disposições. Essa aventura revisionista, felizmente interrompida, reflete o poderio das forças neocoloniais dentro das instituições brasileiras.

Quando o governo Itamar Franco procurou recompor a irresponsável supressão dos ministérios fins, o fez parcialmente, mantendo-os como ministério de segunda classe, sob a égide, superior e absoluta, do Ministério da Fazenda, o sinistro ministério da inflação e da miséria nacional, o verdadeiro poder, dirigido, na realidade, em suas principais políticas pelo FMI e pelo Banco Mundial.

“Sete partidos políticos consideraram a Secretaria de Tecnologia Industrial essencial para o desenvolvimento”.

Nas negociações no Congresso, visando à recriação dos ministérios fins, os partidos majoritários não admitiam a reinstalação da Secretaria de Tecnologia Industrial. Também não davam razões para essa posição. Sete partidos minoritários, entretanto, reivindicavam a STI no âmbito do Ministério da Indústria, Comércio e Turismo como órgão essencial ao desenvolvimento nacional. Sua criação, porém, somente se tornou possível como parte de uma barganha em que o PFL ganhou as atividades de irrigação deslocadas para o Ministério da Integração Regional, em vez de ficarem no Ministério da Agricultura, onde seriam indicados, em troca de criação da STI. Isso ocorreu minutos antes da votação em plenário.

Quais as razões para essa resistência à existência da STI por parlamentares que nem conseguiam explicitá-las? Evidentemente, deve-se à intervenção no Congresso de interesses vinculados ao poder neocolonial. Ou que outras razões poderiam existir? Como explicar ainda que, após dezesseis meses de criada, essa estratégica secretaria não foi implantada? O que estão esperando? Que não sobre nenhuma empresa produtiva nacional, privada ou estatal, como era previsível se a Revisão Constitucional tivesse extirpado esse conceito? Apenas por três votos esse crime não foi consumado na malfadada Revisão!

Como mostramos em nosso livro Soberania e dignidade, raízes da sobrevivência, a tecnologia externa é o grande instrumento estrutural e estratégico para a manutenção do poder neocolonial em países dependentes. Qualquer descuido nesse controle pode transformar uma nação continental como o Brasil, com imensas riquezas naturais, em uma potência mundial. Daí o posicionamento desses parlamentares, contumazes defensores de interesses antinacionais. Por isso, apesar da sua inusitada recriação, a STI ainda não foi reimplantada.

O poder dos tecnocratas começou a ganhar independência dos presidentes militares quando o Ministério do Planejamento passou a controlar todos os fundos nacionais. De planejador passou simultaneamente a executor, substituindo os ministérios fins e, obviamente, enfraquecendo o presidente da República, que foi perdendo gradativamente o poder de decisão. Os ministros titulares dos ministérios fins já passavam a despachar com o ministro do Planejamento, que dava a última palavra porque dispunha de gigantesca máquina de controle, do que o presidente da República não dispunha. Quando veio o Ministério da Economia, e o Ministério do Planejamento foi por ele absorvido, o serviço que visava à centralização do poder na área financeira, de seguro controle externo, estava feito. Por tudo isso, pode-se evidenciar que a herança mais maligna do regime militar foi essa casta de tecnocratas que está levando nosso povo ao genocídio, o Estado a escombros e a nação ao extermínio.

Como o ministro da Fazenda cuida das políticas financeiras, fiscais, tarifárias etc. e da moeda que, a cada passo, está mais afastada do mundo real, substituída por falsos símbolos, por meio da inflação, das dívidas externa e interna, de taxas de câmbio manipuladas, de emissões arbitrárias de moeda de referência e, por tantas outras artimanhas, a “ditadura” do financeiro se estabelece e leva o país ao desastre.

“Resta-nos ver civis e militares brasileiros unidos por compromissos sagrados com a pátria”.

Vivemos, assim, crucial encruzilhada. Sem lideranças aceitas; com o domínio da mente da população absorvida pelo condicionamento do monopólio da mídia – de absoluto controle externo, no que é essencial, naturalmente –; com um sistema político-partidário apodrecido; com o judiciário omisso e corrompido; com a economia sob a égide da ditadura do dólar e arriscando perder os ricos patrimônios naturais mineral, genético e hidrelétrico e os instrumentos essenciais do processo de industrialização, que são as empresas estatais estratégicas; com nosso povo submetido ao genocídio da fome e à morte, ainda no útero das mães; com o desmantelamento e a ilegitimidade do Estado.

Resta-nos juntar todos os brasileiros que têm compromissos sagrados com a pátria, civis e militares, de todas as cores, credos e ideologias legítimas para nossos interesses, de todos os recantos deste solo continental que é nosso, e dar um basta aos omissos, aos pusilânimes, aos corruptos e corruptores, aos apátridas e aos traidores, aos oportunistas e aos vigaristas, concentradores implacáveis da renda nacional, e redimirmos nosso sofrido povo, em esforço supremo de afirmação e de auto-estima, pelos meios que a história ensina, na implantação do Estado justo, poderoso e legítimo, essencial à construção solidária da maior e melhor civilização que o homem já viu, neste nosso planeta de infortúnios.

* Engenheiro e professor universitário. Foi secretário da Tecnologia Industrial do ministro Severo Gomes (governo Geisel). E autor do livro De Estado servil à nação soberana.
** A primeira parte deste artigo foi publicada no número anterior da revista Princípios. Este texto está no livro O desmonte do Estado brasileiro, a ser lançado brevemente. As opiniões emitidas são de exclusiva responsabilidade do autor.

EDIÇÃO 35, NOV/DEZ/JAN, 1994-1995, PÁGINAS 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40