O México, que nos últimos anos foi estrela emergente do projeto neoliberal, virou “uma emergência”, reconheceu The Wall Street Journal no começo de janeiro, e “está aprendendo o quanto pode ser perigoso confiar em amigos estrangeiros” (1).

A bíblia dos financistas do mundo inteiro tocou assim num aspecto dramático do fracasso mexicano: a fragilidade de um modelo de desenvolvimento ancorado nas economias dominantes do mundo capitalista e que despreza a base mais sólida representada pela produção voltada para o mercado interno.

O impasse mexicano, mais do que falência material daquele país, proclama a ruína moral da tentativa de superação da crise do capitalismo através da crescente subordinação de povos e nações aos Estados imperialistas e seu poderoso sistema financeiro.

Antes do reconhecimento desse fracasso, foram anos de insistentes elogios das pretensas virtudes
desse modelo. Desde altos dirigentes das nações imperialistas, como Mitsuhide Yamaguchi, presidente do Eximbank do Japão, que, em 1991, apresentava o México e o Chile como “modelos de sucesso no ajuste econômico para a região latino-americana”. Ou o Banco Mundial que num estudo de outubro de 1994, intitulado “Tirando as amarras do setor privado – caso da América Latina”, elogiava o México por ter, juntamente com outros países latino-americanos, adotado há mais tempo e de forma mais consistente políticas de combate à inflação. Estudo que, é claro, recrimina o Brasil pelo atraso em seguir esse caminho! (2).

The Economist, outro evangelho dos banqueiros e financistas mundiais, em janeiro de 1994, via na entrada em vigor do NAFTA, em 1º-01-1994, a promessa de um “desenvolvimento econômico forte o suficiente para levar o México ao mundo desenvolvido muito cedo no próximo século”, apesar dos problemas que já eram visíveis. Às vésperas do desastre que reduziu a pó o milagre mexicano, em dezembro de 1994, The Economist continuava nessa toada, e garantia que o país havia dado “um grande passo à frente recentemente, permitindo o ingresso de 46 bancos, seguradoras e corretoras de títulos estrangeiros” (3). Isto é, justamente aqueles que iriam ajudar a cavar o buraco onde o México caiu.

Na imprensa brasileira, a defesa do modelo mexicano foi um verdadeiro carnaval. Júlio de Mesquita Neto, diretor de O Estado de São Paulo, num seminário em 1991, sugeriu que o Brasil adotasse o caminho já trilhado por México, Venezuela, Argentina, Bolívia e Chile (4). Algumas manchetes de jornais demonstram uma adesão entusiástica: “México hoje é exemplo para o Brasil” (Jornal do Brasil, 18-06-1991); “México toma o rumo do Primeiro Mundo”, em matéria apresentada na seguinte forma: “Integração com os Estados Unidos, estabilidade, privatização e liberdade de mercado, as armas da modernização” (O Globo, 09-02-1992); “México, Chile e Argentina brilham no fórum onde o Brasil é o “patinho feio” (Jornal do Brasil, 02-05-1992). Em 15-07-1992, um dos títulos da revista Veja dizia: “Sempre atrás do México”, na matéria sobre o acordo da dívida externa assinada pelo governo Collor de Mello. Em maio de 1993, o cronista econômico Joelmir Beting, um dos grandes propagandistas do ajuste neoliberal no Brasil, dizia que “anta não é tigre”. Repetia a avaliação do Council of the Americas (uma entidade destinada a defender os interesses do imperialismo da região), segundo o qual os tigres seriam México, Bolívia, Argentina, Chile e outros moldados pelo figurino do imperialismo e a anta, é claro, só poderia ser o Brasil.

Em maio de 1993, outra reportagem de Veja, intitulada “O último da classe”, prometia esclarecer “por que o Brasil anda para trás enquanto a América Latina cresce e escapa da inflação”. O elogio não escondia a possibilidade de problemas no futuro; o maior problema do México, dizia, é o “déficit comercial de US$ 19 bilhões, muito para o tamanho de sua riqueza”. Mas os problemas pareciam superáveis. “Em comparação com o caos brasileiro, no entanto, esses são problemas de gente de bem”, dizia a revista (5).

Se havia tão grande consenso em torno daquele modelo, o que é que deu errado então? Por que o primeiro da classe, que seguiu rigorosamente a cartilha, se deu mal? Quem estava errado, o aluno, os professores ou a lição? Ou todos?

A fantasia começou a desmoronar em 20 de dezembro de 1994, quando o governo mexicano desvalorizou o peso em 50% para corrigir uma defasagem cambial que cresceu desde a implantação das reformas recomendadas pelo FMI. Os apologistas diziam que o ajuste neoliberal traria uma enxurrada de dólares para os países da América Latina, deixando os problemas da dívida externa e da instabilidade econômica na poeira histórica, e iniciando um período de prosperidade com a integração no mercado global, mesmo que sob condições subordinadas e vexatórias para a soberania nacional.

Mas a realidade desmascarou a fantasia. Desde 1988, o México importou muito mais do que exportou, acumulando déficits comerciais, situação facilitada pela valorização artificial de sua moeda. Ao mesmo tempo, acumulou déficits no balanço de pagamentos, agravando suas contas externas. Entre 1991 e 1994, o déficit nas transações correntes chegou a US$ 89 bilhões.

O que segurava as pontas era a entrada de capitais externos de curto prazo, crescente desde 1991. Atingiu a casa dos US$ 20 bilhões em 1992, e manteve-se alta ao longo de 1993; foi superior a US$ 35 bilhões no último trimestre desse ano.

Quando a crise eclodiu, os economistas – da esquerda à direita – jogaram a culpa no movimento dos capitais de curto prazo, os chamados capitais especulativos. Uma legião de especialistas repetiu explicação semelhante através da imprensa: Roberto Campos, Delfim Netto, Bresser Pereira, André Lara Resende, Gustavo Loyola, Pedro Malan, Michel Camdessus (do FMI), a revista The Economist etc.
O consenso anterior, de loas ao México, repetia-se agora, na perplexidade com seu fracasso. Foram descobertos, por encanto, os malefícios da escalada dos juros americanos, desde abril de 1994, para a economia dos chamados mercados emergentes; os efeitos perversos da sobrevalorização cambial (que, no Brasil, é vendida no varejo da apologia do programa de Fernando Henrique Cardoso como real forte versus dólar fraco); o custo social e político do ajuste neoliberal, traduzido, no México, pela rebelião zapatista de Chiapas e pelas divisões no partido dominante; a temeridade de financiar gigantescos déficits em conta corrente com capitais de curto prazo.

A chamada farra consumista é apenas um dos aspectos da situação que levou à crise. É a face visível do ajuste, aquela que dá seu brilho mais sedutor. A abertura dos mercados, apregoada pelos que defendem políticas dessa natureza, permite que os endinheirados de nossos países se ataviem com badulaques vindos de toda parte do mundo. Tivemos um pouco disto no Brasil nos últimos tempos. As ruas se enchem de carros importados, os templos do consumo chamados shopping centers oferecem todo tipo de produtos eletrônicos, alimentos, roupas, produtos de luxo, com etiquetas de todas as partes do mundo. A festa mexicana foi assim.

Essa é a fase risonha do modelo neoliberal. Sua contrapartida é o rosto amargo exibido para a imensa maioria que não foi convidada para a festa. Exemplo eloquente da tendência do desenvolvimento capitalista, que cria pobreza num pólo e concentra riqueza em outro: sob o governo Salinas o número de mexicanos donos de mais de US$ 1 bilhão passou de 1 para 24. O outro lado, invisível para quem só enxerga o brilho, e não a jaça, do neoliberalismo, são o custo social do ajuste, as pesadas taxas de desemprego e as modificações brutais no mercado de trabalho, consequência da desindustrialização (como na Argentina e no Chile) ou da transformação da indústria (como no México, onde as maquiadoras ocuparam a ponta do setor industrial). Em todos esses países, o arrocho salarial alcançou níveis nunca vistos. No México, os salários conservavam, no final de 1993, apenas 40% do seu valor no início da crise, em 1982.

Nesse quadro, a rebelião de Chiapas, iniciada no dia em que o tratado do NAFTA entrou em vigor, constitui uma reação pequena frente aos males infringidos ao povo mexicano. O próprio embaixador americano no México, James Jones, declarou-se “admirado com a forma como o governo Salinas conduziu seu país sem maiores distúrbios através dessa transição econômica turbulenta” (6).
A farra consumista pode ter agravado o rombo das contas externas mexicanas, mas não foi a única responsável. As importações mexicanas saltaram de US$ 19 bilhões, em 1987, para US$ 65 bilhões, em 1993; em 1994, o déficit em conta corrente foi de US$ 28,5 bilhões, atingindo 8% do PIB mexicano. Dos US$ 28 bilhões recebidos pelo México em 1994, apenas 5 bilhões foram de investimentos diretos. Os demais 23 bilhões, isto é, 82% do total do dinheiro estrangeiro que entrou em 1994, eram de capitais de risco, voláteis, especulativos. Dinheiro que sai com a mesma facilidade como entrou (7).
“Qualquer oscilação no ritmo de crescimento dos EUA tem reflexos negativos no México”.

Assim, as reservas mexicanas, que atingiram o recorde de US$ 28,6 bilhões em fevereiro de 1993, caíram para 23,4 bilhões no começo de 1994 e para 11 bilhões nos últimos meses do ano. Foi “a maior fuga do século”, registrou o jornal mexicano de oposição La Jornada. Nos primeiros dias de 1995, chegaram a apenas 5,5 bilhões. Esvaíram-se; desmancharam-se no ar. Caíram ainda mais, chegando a 3,48 bilhões no começo de fevereiro de 1995, nível mais baixo desde a primeira crise da dívida, em 1982. Um alerta para quem, como muita gente no governo brasileiro – e mesmo na oposição – pensa que reservas internacionais constituem ancoradouro sólido para a estabilidade econômica do país (8).
O ajuste neoliberal aumentou a vulnerabilidade das contas externas do México ao abrir a sua economia à concorrência internacional, por outro lado, e ao piorar os termos de suas relações de troca com o exterior, levando as mercadorias mexicanas à concorrência externa num ambiente altamente adverso: 70% das exportações mexicanas destinam-se aos Estados Unidos, e qualquer oscilação no ritmo de crescimento da maior economia do mundo tem reflexos negativos imediatos sobre as vendas externas mexicanas. Além disso, como mostram os dados a seguir, o preço das mercadorias exportadas pela América Latina (inclusive o México) tiveram uma queda acentuada, prejudicando severamente os esforços de equilíbrio da balança comercial.

Esses fatores somaram-se à sangria crônica representada pela dívida externa. Apesar do acordo de 1989, a dívida, de US$ 89 bilhões, continuou sangrando o México. Houve uma redução (pífia, segundo Bresser Pereira) decorrente do acordo feito sob as asas do Plano Brady. Desde então o México pagou US$ 13 bilhões de juros e amortização, mas a dívida cresceu, chegando a US$ 109 bilhões em 1993. E pode crescer ainda mais; há previsões que chegará a 160 bilhões em 1995.

“O capital estrangeiro é essencial para o crescimento da economia”, afirmam os neoliberais.
Os efeitos devastadores da dívida esterna na América Latina – e o México, em nenhum momento, ficou livre deles – foram avaliados pelo economista Ricardo French Davis, ex-diretor do Banco Central do Chile (1990-1992) e assessor regional principal da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina), um organismo da ONU. Segundo ele, na década perdida, “as perdas de produção (…) podem ser calculadas em aproximadamente US$ 40 bilhões anuais. A isso se acrescentam as perdas causadas pelas quedas reais dos preços de venda das exportações e pelas transferências de capital ao exterior”. A transferência líquida de fundos para o exterior entre 1983-1989 – que se denominou exportação de capitais – foi equivalente a algo entre metade e dois terços da formação líquida de capital registrada durante esses anos”. E ainda tem gente – como o apologista do neoliberalismo, o cronista econômico Alberto Tamer – que diz não haver formação de capital em nossos países, e que por isso o capital estrangeiro é essencial para o crescimento da economia! Mas a sangria não pára nisso. Ffrench Davis mostra que “entre 1990-1991 a América Latina perdeu, em média, US$ 47 bilhões por ano devido à baixa dos preços de seus produtos de exportação. Essa perda esteve presente durante todo o período, acentuando-se com o decorrer do tempo”. A baixa dos preços internacionais exigiu um esforço redobrado dos países pobres para equilibrar suas contas com a venda de mercadorias para o exterior.

“Diante de um volume e uma demanda reprimida, os preços dos produtos de exportação sofreram quedas pronunciadas. Com isso, um aumento de 99% do volume de vendas ao estrangeiro foi acompanhado de uma alta de somente 50% do valor exportado: a metade do intenso esforço dos países devedores na forma de maiores exportações de produtos latino-americanos perdeu-se pela deterioração dos termos do intercâmbio comercial” (9). Os mexicanos deixaram-se seduzir pelo canto das sereias da Wall Street e outros centros financeiros mundiais, acreditaram poder equilibrar suas desequilibradas contas com a volatilidade dos capitais que correm o mundo atrás de juros altos.

Estima-se que os investidores da Wall Street representam 87% das aplicações no México (10).
“Déficits e dependência: já havia indícios de que o México não ia bem. Mas a ilusão continuava”.
Em ilusão foi possível enquanto durou a baixa nas faixas de juros nos Estados Unidos. Elas ficaram na marca de 3% ao ano de setembro de 1992 a fevereiro de 1994. Então começaram a subir. Passaram para 3,25%; chegaram a 5,5% em novembro de 1994 e, em 1º-02-1995, na sétima elevação num período de 12 meses, chegaram a 6% – dobraram em apenas um ano (11). A alta dos juros nos Estados Unidos tem o dom de inverter o fluxo de capitais do mundo, como ocorreu no final dos anos 1970 e início dos 1980. Agora a situação é semelhante. Como diz Roberto Teixeira da Costa, da Brasilpar e um dos dirigentes do Conselho de Empresários da América Latina (CEAL), se “o mercado americano, o mais seguro do mundo, está dando 6% ao ano, os investidores não se sentirão estimulados a trocar a segurança pela rentabilidade” (12).

Mesmo antes disso tudo, havia indícios de que o México não ia bem. Já se notavam os riscos do crescente déficit em conta corrente e a vulnerabilidade que representava a crescente dependência de investimentos estrangeiros. Em janeiro de 1994, a revista The Economist avaliou as taxas de crescimento desde 1988 e constatou a sua queda a partir de 1992; no último semestre de 1993 o crescimento lento havia se transformado em recessão aberta, e a economia do México passava a encolher. Antes, portanto, do levante de Chiapas, iniciado no dia 1º de janeiro de 1994, e do assassinato do candidato oficial à presidência da República, Luis Donaldo Colosio, ocorrido em março de 1994. Em abril de 1994, a situação do México já era tão grave que o governo americano providenciou um socorro de US$ 6 bilhões para equilibrar as sua contas. Apesar disso, o secretário do Tesouro dos Estados Unidos dizia que o México possuía “reservas mais do que necessárias”.

A explicação para a ajuda, entretanto, talvez possa ser encontrada no campo da política e não da economia. O México estava em plena campanha presidencial, e a perspectiva de eleição de um presidente de esquerda, acentuada depois do assassinato do candidato oficial, inquietava os meios financeiros mundiais. Para o economista mexicano Leon Bendeky, os Estados Unidos “sabiam que o governo estava financiando importações supérfluas de curtíssimo prazo e nada fizeram por medo de que a esquerda ganhasse as eleições”. Talvez tenha sido a eleição mais cara da história de toda a América Latina! (13).

Além do México, também já estava em jogo a credibilidade do modelo neoliberal. Essa outra corda sensível foi tocada pelo secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Robert Rubin, ao dizer – no contexto da crise iniciada em dezembro – que se o México quebrar, “toda a proposta de economia liberal estaria morta e enterrada no Terceiro Mundo”. Rudiger Dornbush, um economista americano especializado na América Latina, concorda: ele pensa que o fracasso do México também pode significar a perda de credibilidade do modelo neoliberal (14).

“Existe o temor de que a crise se espalhe pelo mundo e fuja ao controle dos países ricos”.
Este é um temor muito tangível nessa crise. Qualquer passo em falso poderá fazer desmoronar esse edifício cuidadosamente construído pelo imperialismo, a chamada nova ordem internacional, cuja pedra de toque com o fim da ameaça representada pela antiga União Soviética, são a derrubada das fronteiras nacionais e o desmonte da soberania das nações, num mundo globalizado dominado pelos países imperialistas.

Existe também o temor muito concreto de que a crise se espalhe pelo mundo, fuja ao controle dos governos dos países ricos e dos grandes financistas. A idéia de um efeito dominó correu como um calafrio pela espinha dos financistas internacionais e dos altos funcionários dos governos e das instituições que defendem os interesses do grande capital. Esse medo foi registrado, por exemplo, no discurso televisado pelo presidente Bill Clinton para o 25º Fórum Econômico, realizado em janeiro de 1995, em Davos, Suíça. Michel Camdessus, do FMI, disse que a crise mexicana é “a primeira grande crise do nosso novo mundo de mercados globalizados” e pode levar a uma “catástrofe mundial”. Muita gente pensa que a crise poderia atingir países como Suécia, Bélgica, Canadá e Itália, cuja dívida é de US$ 1,2 trilhão (isto é, 1,2 vezes o PIB italiano), dos quais 30% vencem em 1995. Também em Davos, o mega-especulador George Soros temia uma crise mais grave e arrasadora do que a de 1929, na Bolsa de Nova Iorque (15).

Michel Camdessus pode ter suas razões para supor que esta seja a primeira crise de um mercado globalizado. Mas ela continua sendo uma crise do capitalismo, como todas as outras ocorridas desde a primeira crise, de 1825.

Antes disso, o mundo sempre conheceu crises, mas elas eram de outra natureza. Afetavam diretamente a produção agrícola, o esteio do mundo antigo; ou eram provocadas por epidemias, terremotos, ou outras catástrofes naturais que desorganizavam a produção em larga escala. Depois das guerras napoleônicas, o mundo passou a conhecer “o drama periódico das grandes altas e quedas”. Na década de 1830-1840 já se reconhecia, vagamente, que elas eram um “fenômeno periódico e regular” (16).

Foram os críticos socialistas do capitalismo que começaram a desvendar sua natureza. Ao contrário das crises dos modos de produção anteriores (que eram principalmente crises de escassez), agora elas lançavam milhões na miséria em meio a uma riqueza até então nunca vista: tratava-se de um fenômeno que faz parte da essência do novo modo de produção que se impunha, o capitalismo. E que o acompanharia através de toda sua história futura.

As crises, diz Marx, “não são mais do que soluções momentâneas e violentas das contradições existentes, erupções bruscas que restauram transitoriamente o equilíbrio desfeito” (17). Elas fazem parte da natureza do capitalismo e só poderão ser superadas quando esse modo de produção for também uma página superada na página da história humana.

“Nem mesmo os países imperialistas estão a salvo das crises típicas do capitalismo”.
Marx mostrou o papel fundamental do crédito na economia capitalista; uma de suas façanhas é permitir e expansão mundial da compra e venda de mercadorias, que envolve todos os continentes na voragem capitalista. O crédito permite, também, que os capitais pequenos, incapazes de aplicarem-se sozinhos à produção, sejam acumulados em mãos capazes de controlar volumes de recursos na escala necessária para mover os cada vez mais dispendiosos investimentos. Assim os financistas adquirem papel de relevo na economia capitalista, e o capital que controlam passa a se deslocar dentro dos países ou entre os países, em busca de taxas de juros mais altas.

As crises capitalistas do século XIX, estudadas em O Capital, diferem das crises do nosso tempo devido à tecnologia empregada na transmissão de dados, que permite a circulação de informações, contabilização de perdas e ganhos, em uma velocidade nunca sonhada poucas décadas atrás. Mas sua natureza era a mesma das atuais, das quais nem mesmo os países imperialistas estão a salvo.

A Inglaterra, por exemplo, onde o neoliberalismo teve aplicação pioneira, sob Margareth Thatcher (com o mesmo rastro de desemprego, violências contra trabalhadores e os sindicatos, descaso com as necessidades do povo, característica desse modelo em toda parte), viveu crise semelhante, diz Ronald I. MacKinnon, professor de economia da Universidade de Stanford, Estados Unidos. No início da década de 1980, a desregulamentação da economia britânica e as privatizações pela primeira-ministra Margareth Thatcher atraíram investimentos estrangeiros, o que provocou forte expansão nos mercados de ações e imóveis de 1986 a 1988. “A explosão inevitável aconteceu em 1990 e provocou a saída da libra do Sistema Monetário Europeu, em setembro de 1992”, diz ele (18).

“Controlar o petróleo mexicano e salvar os investidores de Wall Street: eis os anseios dos EUA”.
Mas a Inglaterra faz parte do clube dos países ricos, é uma das nações imperialistas de maior tradição. Sua moeda é usada como reserva, é moeda forte de verdade, e por isso – ao contrário do México – a ajuda internacional para salvá-la da crise teve outra natureza. Lá estão sediados alguns dos grandeS bancos internacionais, e os governos dos países ricos e os grandes financistas correram para salvar, não a Inglaterra, mas o próprio sistema do qual ela faz parte. Já o México (tão perto dos Estados Unidos e tão longe de Deus, como muitos já disseram) é uma nação de passado colonial, apesar de dona de uma brilhante trajetória de luta pela afirmação nacional durante quase todo o século XX. Desde os anos 1980, tornou-se, no máximo, um campo de caça dos grandes capitalistas internacionais. Há um esforço para salvar os investimentos ali feitos, que é essencialmente diferente do que se fez para segurar moedas européias em crise nos últimos anos. Nestes casos, os bancos centrais dos países ricos compraram bilhões nessas moedas para assegurar o seu valor e contornar eventuais crises monetárias. No México, ao contrário, a ajuda vincula-se a uma indisfarçada sanha de pilhagem neocolonial: o governo e o Congresso dos Estados Unidos exigem como garantia para a ajuda que o presidente Bill Clinton articulou, de US$ 50 bilhões, que a receita das exportações do petróleo mexicano seja depositada em um banco nos Estados Unidos e controlada pelas autoridades monetárias desse país. Pretendem dirigir a economia do México em total desprezo à soberania, como contrapartida ao empréstimo. Um funcionário do Tesouro dos EUA diz que “vamos monitorar todos os passos do governo mexicano, que se compromete a não emitir dinheiro, cortar gastos, evitar déficits, segurar a inflação e investir em áreas produtivas. Se o México seguir a receita, em cinco anos poderá voltar a caminhar sozinho”. Querem também que o governo mexicano reprima a imigração clandestina aos Estados Unidos (300 mil trabalhadores mexicanos, por ano, tentam a sorte nos Estados Unidos) e combata o narcotráfico (19).

Os arautos do neoliberalismo não se acanham com essa perspectiva. Um dos mais descarados deles, Alberto Tamer, diz que o México não está em condições de discutir a ajuda americana “com melindres nacionalistas”. É preciso, diz ele, “mão firme contra os slogans que ressurgem, levantando temas de soberania e querendo projetar imagens destronadas” (20).

Além de tomar o petróleo mexicano, os norte-americanos estão, na verdade, tentando salvar os investidores de Wall Street que arriscaram dinheiro no México. Afinal, 85% dos bônus do Tesouro mexicano, os tesobônus, estão nas mãos de investidores americanos.

Esta é uma das contradições do neoliberalismo e revela suas razões mais profundas. Seus acólitos apregoam, aos quatro ventos, que o Estado deve deixar de investir na economia e, com esse pretexto, corta as verbas destinadas a programas de atendimento às necessidades da população. Não revelam, mas suas ações destinam-se a viabilizar a exploração capitalista no mais alto grau. Por isso, ao mesmo tempo em que pregam o antiestatismo, empenham-se em salvar aqueles que, pelas regras do capitalismo, perderam dinheiro em investimentos arriscados.

“A democracia de fachado dos ricos deve ser substituída por uma democracia verdadeira”.
Outra contradição que fica transparente nos desdobramentos da crise do México está ligada à alegada liberdade por eles defendida. Os países imperialistas pregam a queda de barreiras nacionais ao comércio e à circulação de seus capitais, mas exigem o reforço das barreiras à circulação de outro fator de produção, a força de trabalho. Tratam, assim, de resguardar as diferenças nacionais na exploração da força de trabalho, que é a base da produção material direta e gera as riquezas efetivas, materiais e concretas, apropriadas de forma concreta através das formas abstratas, simbólicas, representadas pelas moedas nacionais (e moedas fortes dos países imperialistas) e pelas diferentes taxas de juros entre nações. Apropriação que, em última instância, alimenta a voragem capitalista.

The Wall Street Journal tem razão. O México e os demais países pobres podem aprender com a crise, o preço da confiança em certos “amigos” estrangeiros tão poderosos e movidos pela avidez que caracteriza as nações imperialistas.

A agonia mexicana e as crescentes dificuldades da Argentina e do Brasil evidenciam que não há solução econômica possível separada da questão democrática e do problema social.
Quem decidiu pelos mexicanos a adoção de um plano econômico que os fez retroceder à condição de colônia informal de seu poderoso vizinho? Quem autorizou o pagamento de US$ 18,812 bilhões de dívida externa brasileira apenas em 1994? Quem define a criação e a desvalorização das moedas? Quem estabelece as taxas de juros? Os tecnocratas perfumados, como os denominou uma revista norte-americana, agentes diretos do poder econômico dentro das instituições governamentais. Tudo decidem, contra o povo e longe do povo. Já na Antiguidade o filósofo Platão aconselhava o afastamento dos homens de negócios da administração pública. Platão achava improvável que alguém juntasse ao mesmo tempo riqueza e honestidade. A democracia da fachada dos milionários deve ser substituída por uma democracia nova e verdadeira, que transfira dos gabinetes perfumados para as ruas o debate e as decisões dos cruciais problemas da economia.

Notas

(1) Gazeta Mercantil, 10-01-1995.
(2) Gazeta Mercantil, 08-04-1991 e 14-10-1994.
(3) The Economist, 22-01-1994 e 05-12-1994 (traduzidos no Brasil pela Gazeta Mercantil).
(4) Jornal do Brasil, 08-12-1991; Jornal da Tarde, 10-12-1991. Ver também entrevista com José Serra na revista Veja de 08-07-1992.
(5) Jornal do Brasil de 18-06-1991, 05-01-1992 e 02-05-1992; O Estado de S. Paulo (“Anta não é tigre”, Joelmir Beting); O Globo, 09-02-1992; Veja, 15-07-1992 e 19-05-1992 (“O último da classe”).
(6) Newsweek, 07-03-1994. Veja também, nesta edição da Princípios, a avaliação da Rede Mexicana de Ação Frente ao Livre Comércio.
(7) CAMPOS, Roberto. “A submersão dos emergentes”, O Estado de S. Paulo, 05-02-1995; O Estado de S. Paulo, 26-01-1995; Folha de S. Paulo, 15-01-1995.
(8) Folha de S. Paulo, 15-01-1995; O Estado de S. Paulo, 08-01-1995 e 03-02-1995.
(9) DAVIS, Ricardo Ffrench. “As políticas de ajuste e suas repercussões sócio-econômicas”, Política Externa, n. 3, dezembro de 1994, v. 3, p. 39-42.
(10) MCKINNON, Ronald I. “Ajuda externa e os países em desenvolvimento”, O Estado de S. Paulo, 27-01-1995; O Globo, 31-01-1995.
(11) O Estado de S. Paulo, 02-02-1995.
(12) O Estado de S. Paulo, 05-02-1995.
(13) Jornal do Brasil, 27-04-1994; Jornal da Tarde, 25-03-1994; Veja, 08-02-1995.
(14) DORNBUSH, Rudiger. “Sob o guarda-chuva do Tesouro norte-americano”, Folha de S. Paulo, 22-01-1995; Veja, 08-02-1995.
(15) Folha de S. Paulo, 27-01-1995 e 22-01-1995; O Estado de S. Paulo, 1º-02-1995, 05-02-1995 e 08-02-1995; Veja, 08-02-1995; O Globo, 1º-02-1995 e 03-02-1995.
(16) HOBSBAWN, E. J. “Las revoluciones burguesas”, Barcelona, Guadarrama/Punto Omega, 1982, p. 80-81.
(17) MARX, Karl. O Capital, Livro 3, p. 287.
(18) MCKINNON, Ronald I. “Ajuda externa e os países em desenvolvimento”, O Estado de S. Paulo, 27-01-1995.
(19) O Globo, 02-02-1995.
(20) TAMER, Alberto. O Estado de S. Paulo, 02-02-1995.

EDIÇÃO 36, FEV/MAR/ABR, 1995, PÁGINAS 4, 5, 6, 7, 8, 9